atebrreve@gmail.com

Ok?

domingo, 11 de julho de 2010

Vagas Luzes - II

Aquela casa de janelas verdes e paredes brancas, a terceira, contando da esquina para o meio da quadra, é ela que está sendo vigiada, dia e noite, madrugada adentro, semanas a fio, meses, séculos, se necessário for. Por que?, ele ainda não sabe, talvez nunca venha a saber. Sua missão é vigiar e enviar mensagens, fotos, vídeos, relatos, ao menor sinal de movimento, uma luz mortiça, que pisca na janela, já seria o bastante. Não parece uma casa verdadeira, está mais para cenário de telenovela: as rosas no pequeno canteiro, pintadas de vermelho berrante, artificial, ele resmunga e cospe o palito. De onde está, pode ver um pedaço do telhado e o muro lateral, além das janelas verdes, da porta de vidro fosco e das paredes brancas. Na frente da casa, há também um portãozinho e uma grade de ferro não muito altos. Não sabe há quanto tempo está ali, sem que nada, absolutamente nada, tenha acontecido. Sabe que lá se vão horas, dias sem fechar os olhos, só ele pode dizer o quanto lhe custou domar o impulso, segurar a tentação de enviar uma mensagem, uma foto, um vídeo relâmpago, algo que captasse o nada que era aquilo, pensava ele, só para ver se alguém respondia ou se o silêncio ia ser o mesmo que martelava seu crânio vazio, porque acontecer algo, isso não acontecia mesmo, nenhum ruído, nenhum miado de gato vadio, só uns latidos, tarde da noite, mas vinham lá de longe, pra cutucar a solidão de quem não dorme, nem na cama. De manhãzinha, ele se lembra do pouco que aconteceu na vigília da madrugada, sabe que uma garota passou na calçada lá embaixo, sabe que pensou no que ela pensaria se tivesse certeza das sujeiras que muitos cogitam ao vê-la passar, mas e ela?, gosta ou não gosta?, ficou com aquilo de um lado para o outro, do lobo direito para o lobo esquerdo, um ping-pong imaginário, a garota, quem sabe, seria a bolinha, branca e saltitante, feliz por ser olhada, foi feita pra isso, pensa ele. Um dia antes de receber a ordem para vigiar a casa, ouviu alguém comentar que havia fantasmas, era só o que havia, mal-assombrada?, perguntou, os outros riram e disseram em troca, tá com medo, Virgílio?, mas nem isso. Depois, como para confirmar o que disseram, duas velhinhas passaram cochichando, ouviu quando uma delas sussurrou para a outra, já estão de novo vigiando a casa, alguém vai ter que dar parte, e a outra respondeu, o futuro, cada um que cave o seu, algo assim, meio incompreensível. Devia ele ficar atento a tudo, até mesmo a cheiros que porventura brotassem da referida casa, o problema, pensava ele, resumia-se em distinguir o que seria um cheiro real de enxofre de um outro imaginário breu, que começou ele mesmo a farejar a partir do momento em que mencionaram os tais fantasmas, um cheiro que impregnava sua roupa, seu casaco de lã, seu cachecol xadrez, suas luvas pretas, a tal ponto que não podia sequer coçar o nariz. As horas se arrastavam, era um teste, pensou ele, devia ser, por isso mesmo nem lhe passou pela cabeça avisar que já estava mais do que na hora da troca de guarda, na verdade já havia passado e muito, mas queriam, na certa, ver o quanto ele era capaz de aguentar sem dar um pio, queriam ver se era fiel e resistente, forte o bastante para afastar ideias loucas como aquela de trocar de lugar com a casa, mudar o status de vigilante para vigiado, imaginar que alguém lá embaixo, escondido, atrás das paredes brancas, observava seu corpo balançar levemente, olhando através de um binóculo infravermelho, idêntico ao que lhe deram para bisbilhotar a casa, ou talvez uma luneta adaptada a um furo invisível na janela, algo assim meio inacreditável. A solidão parece incomodá-lo ainda mais do que as dores que apertam todos os seus músculos e nervos. Nessa hora, não há como encadear pensamentos, surgem apenas flashes, descargas de neurônios, uma delas detona a paranoia, que traz consigo a lembrança de uma voz longínqua a dizer que havia na praça uma novíssima profissão, a de fornecedor de DNA, algo assim, daí foi um pulo para achar que tramavam contra ele, o fiel Virgílio, inventaram aquela missão para que não tivesse álibi algum, isso enquanto armavam a bomba que deveria explodir no seu colo. A casa parecia rir da sua inocência.

Seguidores

Arquivo do blog

Ahn...?

Minha foto
Filial do Eu, Liquidação de Neurônios, Churrascaria Almaminhadealcatra Dúvidas, críticas, reclamações, elogios? atebrreve@gmail.com