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Ok?

domingo, 10 de maio de 2015

As Três Faces da Moeda

(Uma Nuvem Transparente)
f.n.
Você está na garagem esperando o carro novo que encomendou. Quando finalmente chega, você descobre que é o seu maior inimigo quem está ao volante. Ele abaixa o vidro, sorri e pergunta: "Surpreso?"
Enquanto a porta da garagem fecha-se lentamente, você pensa: "Isso já aconteceu, acontece toda hora nos filmes, nas séries, no cinema, na TV, senão exatamente assim, algo bem parecido", mas você não vai mais pensar nesse tipo de coisa, esse tipo de coisa não vai mais encarcerar seus pensamentos, Ernest.
Os ratos embarcam nos navios subindo por aquelas cordas que chamam de amarras, aquelas que não deixam o navio se afastar do porto, levado mansamente ao sabor das ondas. Os ratos não pertencem ao navio, não são daquele mundo. Usam o navio para visitar outras cidades, conhecer novos países, quem sabe até longínqüos continentes... Enquanto isso, comem a comida do navio (muitos dizem que é só a fome que os leva a bordo, mas o deus-dos-ratos sabe que não é verdade, eles também têm um lado místico e sentem-se atraídos por terras e gentes estranhas, jantares exóticos, misteriosas aventuras, envolvendo ratinhas charmosas). 
Pesa sobre o caráter dos ratos uma séria acusação, a de que seriam eles os primeiros a abandonar o barco em caso de perigo. Mas, como lhes disse há pouco, os ratos não pertencem àquele mundo. Creio que não se sentem à vontade mastigando restos e se aglomerando nos porões, enquanto outras ratazanas de lindas pernas e virilhas depiladas tomam sol à beira da piscina. Pra ninguém julgar que os pobres ratos são torpes machistas, saibam que eles também acham repugnantes e desprezíveis os roedores graúdos, com suas barrigas imensas encostadas no balcão do bar, sorvendo drinques coloridos e contando piadas sujas sobre as ratazanas dos outros.
Escrevi isso dormindo, ou quase. Quando acordei, Mari esfregava suas coxas na altura do meu queixo. Ao me ver abrir os olhos, disse: “Vem, ratón... seu bêbado”. Aquela puta, falsa gringa, tinha mesmo o dom de estragar a história dos outros.
Nessa época eu estava interessado em pesquisar e patentear uma técnica que transformasse as palavras em imagens polidimensionais  em movimento, diretamente na cabeça do leitor, ou do freguês, melhor dizendo. O cara lia e a história se descortinava no interior de seu cérebro abestalhado. Seria, no meu modo de ver, a única saída para a literatura equilibrar a “guerra” perdida para o cinema e as telenovelas. No início achei que deveria ser um dos ramos da semiótica, com aquele papo de transcrição de linguagens, coisa e tal... Depois concluí que semiótica era o caralho, tinha que ser uma coisa objetiva, algo diferente de tudo que os humanos já tinham pensado ou imaginado em suas vidinhas teóricas.
Cheguei a resultados surpreendentes, mas é claro que não os revelarei aqui. Por enquanto só posso dizer que o centro da pesquisa referia-se a algo como a “aceleração da palavra”, um método destinado a evitar a defasagem entre o pensamento escrito e o mesmo pensamento no interior do cérebro humano (dizem que a palavra, a descrição lógica, não tem a mesma velocidade dos pensamentos, daí as desvantagens da literatura).  Um dia, talvez muito antes do que se pensa, vocês terão acesso a descobertas de cair o queixo, por falar em queixo, a puta Mari (ou era Marli, sei lá...) acabou gozando na minha boca.
“É isso que você deseja? A ausência, o desprezo, a cara de quem nunca te viu na vida e nem sequer sabe quem você é?”
Certas perguntas aparecem de repente, como um flash interior, voltado para o olho do fotógrafo. Ocorre sem a gente querer, sem que se possa impedir, barrar, filtrar. É uma pergunta que já vem com a resposta, ou respostas, te reduzindo a zero.
Já teve gente que escrevia soltando o verbo e achava que isso era o máximo, a onda de pôr pra fora sem pensar. Não levou a nada. Acho eu que a razão é meio óbvia, o que é vomitado por um tem que ser deglutido por outro, e quase nunca a intenção corresponde ao resultado, sem falar numa certa náusea que acaba provocando. Também não levou a nada aquela onda de ficar revolvendo a cabeça e o passado, é bom para engordar psiquiatras, psicanalistas e suas lindas recepcionistas. Teve os “fotógrafos”, ainda tem, são os que mais tem. Hoje são “diaristas”, pensam que só o real existe, ainda não foram apresentados aos dólares e aos euros, kkkkk... (ou rs...)  Boa essa. Eu por mim quero que se foda, não tenho nada a ver com isso. Cada um que faça as confissões que bem ou mal entender. Como já lhes disse, meu negócio é outro, embora tenha horas que eu mesmo esqueço de tudo e já nem sei direito qual é esse meu negócio de que lhes falo. “É isso que você deseja? A ausência, o desprezo, a cara de quem nunca te viu na vida e os ouvidos que nunca te escutaram?”
Voltando ao tema da pesquisa, digamos que seria necessário proceder a uma pré-raspagem na memória da cobaia. Não se trata de uma lavagem cerebral, uma lavagem não seria suficiente, nem que fosse à Wap. Acho que tem de haver uma raspagem mesmo, uma espécie de curetagem, semelhante à que os ginecologistas fazem no interior de algumas mulheres. Digo isso porque não pode existir imagem de referência, pois ela própria seria uma barreira, um anteparo.
Marian mais uma vez pegou minhas anotações. Leu, balançou a cabeça e perguntou: “Tu és loco ou o quê?” Eu respondi: “O quê” E ela: “Eu preguntei si tu és loco ou o quê? És surdo?” Eu disse, com a voz bem calma: “Então... Você me deu duas alternativas: na primeira eu seria louco; na outra “o quê”... Eu escolhi “o quê”. Não estava fazendo uma pergunta, tava dando uma resposta, entendeu?” E lá ficou a puta me olhando com aquela cara de quem lambeu e não gostou.
Um vulto de mulher encostada na porta de um pequeno prédio de três andares; um pequeno vulto de mulher encostada na porta de um prédio de trinta andares; um vulto de três andares encostado na porta de uma pequena mulher. Quantas vezes você já registrou imagens como essas no interior da sua, digamos, saturada mente? Daí a necessidade da mencionada raspagem, uma boa aspirada industrial talvez desse conta, quem se habilita?
Ela quis ser simpática, acho eu. Mandou uma carinha esdrúxula. Eu respondi, delicadamente, com um avatar socando o outro, ou melhor, a outra, e perguntei. O que é que vc escreve qdo cai na gargalhada? ahuashuahuaaaa...? Ou isso nem adolescente digita mais? Agride sua improvável maturidade?” Ela não mais quis ser simpática e devolveu: “Vc tbm fala desse jeito? Com essas palavras estranhas?”  Eu acertei um cruzado de direita na ponta do queixo (olha o maldito queixo aí de novo, só que dessa vez não era o meu): “Palavras, sílabas, letras... Td isso eu qro fragmentar aí dentro da sua kbça” Mas não será através de gírias incompreensíveis nem de abreviaturas insignificantes.
É triste se apaixonar pela pessoa errada, mas, quando alguém ama e não é correspondido, está aberto, vulnerável a sentimentos torpes e atitudes desprezíveis, como, por exemplo, sorrir ao saber que a pessoa errada também se apaixonou por uma outra pessoa igualmente errada. Trata-se de pura vingança; embora estéril, reconfortante. Em alguns casos, renova esperanças.
Quando te abandonaram o que é que doeu mais: a rejeição ou o medo da solidão?
“Como você pode ter certeza de que está apaixonado se nunca olhou nos olhos nem tocou na pele?”, disse ela.
A resposta, como não poderia deixar de ser, veio no estilo autoajuda romântica: “Acha que o amor se alimenta de superficialidades, como a cor dos olhos e a suavidade da pele? Isso vale para comerciais de lentes de contato e sabonetes hidratantes. O amor vem de outras substâncias e essências, que só existem aqui dentro de nós dois. Você com as suas; eu com as minhas”.
Incrível essa capacidade de “transcender” na banalidade.
Regra de Ouro: Nunca se meta em encrencas que não pode resolver.
Parágrafo Único: Não é à toa que “encrencas” é feminino plural (plural no sentido de mais de uma, entendeu, né?).
Em tempo, “Só pra pensar” não é o mesmo que “Pra só pensar” ou “Pra pensar só”.
Eu andava mesmo precisando de alguém que me ajudasse com a rotina do escritório. Não que o trabalho fosse muito ou o dinheiro graúdo, a verdadeira causa era minha desorganização, a incapacidade de atender o telefone, anotar o nome da pessoa, o que ela queria, o que pretendia de mim, comunicar que o serviço ia custar cem dólares por dia mais despesas, essas coisas elementares para qualquer profissional do ramo. 
Contratei a moça não só por isso, mas também porque, devo confessar, não consigo viver sem elogios, e há muito tempo eu não resolvo um único caso, até porque não tenho um só cliente.
Feitas as apresentações, aqui estou eu, amassando folhas de papel e arremessando em direção à cestinha de Glenda, que apenas sorri e fala com voz de adulto imitando criança retardada: “Ainda não foi dessa veeez...” Desconfio que ela tenha medo de que, nesse andar da carruagem, no final do mês não verá a cor do seu merecido salário.
Como deu pra perceber, não passo de um detetive-particular, particularmente falido, ou quase. (Personagem batido, desgastado... Quem é que já não escreveu pelo menos uma short story tendo como protagonista um “detetive-particular-quase-falido”?)
Vem cá, escuta: há uma diferença entre o que você diz que é e o que você pensa que é. Claro que os dois conceitos não têm nada a ver com o que você é  de verdade.
A diferença pode ser grande, pequena, ínfima, isso depende. Mas que existe, lá isso existe.
Você pode achar que tem a boca da Julia Roberts, mas na verdade seus lábios são iguais aos da Angelina Jolie (Melhor pra você?).
Por outro lado, você pode achar que canta como a Kid Abelha, mas, infelizmente, sua voz é igualzinha à do Chico Buarque.
Você pode pensar que dribla como um Garrincha, mas não passa de um Mané (ou dois).
O que fazer?
Melhor não pensar.
melhor não ser.
Tudo o que eu penso fazer, alguém já fez antes, e isso é uma merda. É uma merda saber que alguém já fez a novidade revolucionária que você apenas imaginou. Não refresca nada saber que a tal novidade revolucionária não passa de uma boa merda. Por mais incrível que pareça, do mesmo jeito que eu não teria participação alguma na boa idéia, me sinto cúmplice da merda que outros fizeram e que um dia eu julguei ser uma boa e revolucionária idéia, mas que merda...
Ontem, no bar, a jovem garçonete ficou me olhando espantada enquanto eu procurava os óculos em cima da mesa, no bolso da jaqueta... Quando percebi que já estava com eles, tentei disfarçar, mas não deu. Ela sorriu  e me disse: “Tá ficando velho, hein, tio...”. Pensou que eu fosse reclamar do “velho” ou do “tio”, eis que me insurjo: “Tô ficando é o caralho... faz tempo que já sou”. Tem sempre alguma coisa nova que a gente acha que ninguém ainda fez. Mas é só pôr os óculos para ver o quanto isso é falso.
Agora para um pouco e pensa: o que é te falta? Eu sei que alguma coisa deve estar faltando. Senta e pensa, antes de responder. Ah... é dinheiro o que te falta. Tá bom, dinheiro pra quê? Sei, com dinheiro você pagaria as dívidas, compraria tudo que precisa e nada mais te faria falta. Uma casa? Um carro? Talvez um iate todo branco? E aí? O que mais você ia querer que o dinheiro não compra? A mulher dos seus sonhos, um príncipe encantado ou a eterna juventude?
Palavras são pessoas, seres vivos. Não necessariamente aquelas palavras que saem da boca e entram nos ouvidos; não aquelas que se vestem de adjetivos raros, lantejoulas coloridas e purpurinas esvoaçantes, toda essa frescura é só para esconder seus podres. Também não são as palavras necessariamente aquelas pessoas que se despem de toda a roupa e ornamentos até que se transformem em solitários monossílabos.
Palavras são seres vivos, palpáveis. Aperta pra ver.
As palavras enganam?
“Falo, com a maldição dos não-agraciados...”
“Falo”, se for verbo, quer dizer uma coisa; se for substantivo, a frase tem outro significado, bem diferente.
Não sei qual dos dois é melhor ou pior. Só sei que se trata de uma autêntica discussão semântica.
O que vem depois poderá esclarecer? Talvez um dia as palavras tenham que fazer um teste de DNA, para descobrirmos o que se quis dizer com elas.
Pode parecer piegas, mas não sei mesmo o dia, a hora, o momento exato em que converti você em nome próprio, simples palavra solta,  agonizante, já-meio-sem-vida, natimorta, quem sabe...
Seus olhos sempre demonstravam uma certa angústia. Pra dizer a verdade, não eram os dois olhos, mas sim o esquerdo; o olho esquerdo sempre demonstrava uma certa angústia. O direito, não. Fazia tempo que eu não via uma pessoa assim, com dois olhos tão diferentes um do outro. Seu olho esquerdo era angústia, insegurança; o direito, arrogância pura.
Na última vez que eu tinha visto algo parecido, o olho esquerdo era  arrependimento; o direito, submissão. Talvez uma coisa leve a outra, vai saber...
Vieram me falar contra os três pontinhos, esses aqui, ó: “...”. Representado assim até parece o inesquecível moita. Agora, não sei por que a turma odeia tanto os três pontinhos (alguns ainda insistem em chamar de reticências). Dizem que eles deixam as pessoas na dúvida, mas desde quando é ruim ficar em dúvida? Já viram uma corrida de cavalos? Já apostaram em algum pangaré azarão? Ali é que a gente sabe o verdadeiro valor de uma dúvida, aquela que nos atormenta até o disco final... (três pontinhos pra todos vcs).
Não posso dizer que o leitor, para assimilar a nova técnica, não tenha que ingerir algo. Tudo indica que sim, embora alguns insistam na tese oposta, isto é, não é o texto que entra no cérebro sem barreiras, mas sim o cérebro que envia ao texto o que ele quer ouvir. Dessa forma, estariam quebradas a priori as antigas barreiras. Sutil divergência: eu quero o que você quer, desde que você não queira o que eu também não quero. Dá pra pensar num monte de coisas...
Teve uma noite, negra madrugada, faltou luz. A puta Meire dava pulinhos sobre as poças na calçada. Os carros pontilhavam as ruas de riscas vermelhas e amarelas, parecia uma foto premiada, dessas que ganham concursos em Singapoore e daí correm o mundo. Eu vi da janela todos os fotogramas. Já no quarto, Meire quis saber se eu a amava. Sonado, grunhi que sim, quem sabe, talvez. A puta não se deu por achada. Desandou a filosofar: “Uma coisa é gostar; outra, bem diferente, é não ter motivos para não gostar. Você gosta? Ou não tem motivos?” Mas nessa hora meus sonhos já iam longe, pra lá da Malásia, Kwala Lumpur, elefantes indianos com seus dorsos atapetados, mandalas bordadas a ouro...
  
Por falar em imagens, encontrei um amigo na rua, bem na hora em que fazia umas fotos de um prédio de luxo, isso porque me arranjaram um cliente misterioso que desconfiava que a sua muher frequentava o nono andar daquele edifício. O amigo me disse: “Fulano, quanto tempo... Como é que vai, cara? E a Márcia? Tudo bem com vocês?”
Por pouco, não respondo com outra indagação: “A Márcia que você tá falando é a puta da Meire?”
Desisti. Disse com a cabeça que estava tudo bem, mas que ele me desse licença porque estava no meio de um trabalho, coisa e tal... Ele sorriu e disse: “Lembranças a Meire.” Ou foi “Márcia” que ele disse? Não sei como alguém pode ter ciúmes de uma puta, mas devo confessar que foi só isso que senti naquela hora.
Meire devia estar fodendo com aquele meu falso amigo e foi por essa razão que ele veio me sondar. O sorrisinho do cara, algo escondido havia ali.
A pesquisa começou com uma jovem de seus 18, 19 aninhos. Universitária, bonita, bem-nascida, cuidadosa, simpática, detalhista, atenciosa, dessas que sabem aonde querem ir e como irão voltar. Primeiro perguntaram se ela tinha o hábito de ler. Ela respondeu: “Mais ou menos...” Com o desenrolar da entrevista, ficou claro que “mais ou menos” era um eufemismo para “quase nada” ou, em linguagem chula, “porra nenhuma”. Depois quiseram saber por que motivo rejeitava a leitura. Ela disse que se sentia sozinha toda vez que pegava um livro. Podia ser um romance, um livro de contos, poesia, teatro, qualquer livro, menos os de matemática, que ela odiava acima de tudo na vida. A solidão se instalava já nas primeiras páginas. Ela não sabia explicar a razão, mas eu penso que o ato de ler remete algumas pessoas para dentro de si mesmas. Aí encontram o vazio em suas vidas, e é a isso que chamam de solidão. Ler não vai criar uma vida nova dentro de ninguém. Muitas vezes incomoda mais do que dá prazer, mas nem por isso a nova literatura deve inventar saídas do tipo “vamos trazer os personagens para a cama da menina. Talvez assim seja mais excitante.” A saída é antiga, mil vezes testada nunca levou  a nada.
Como há cada vez mais escritores e cada vez menos leitores, creio que em breve haverá um escritor para cada leitor. Quando isso acontecer, as estórias serão exclusivas; as mensagens, únicas, tal como a que eu envio pra você agora: “Achei que podia amá-la. A verdade é que achei que você poderia, quem sabe, um dia, me amar loucamente. Os fatos não vieram ao encontro dos sonhos, mas sim de encontro às ilusões. O pior de tudo é que pensei que você ia ler essas confissões e concordar comigo, sem nenhum preconceito, mas vejo, daqui de dentro do meu casulo, que há um terno sorriso em seus lábios, tão terno que chega a me ofender. Em seus brancos dentes leio que perguntas: para que século desejas voltar? XVIII? XVII?  Eu te devolvo: até quando as ilusões vestirão trajes de verdadeiros sujeitos, usurpando a vida de quem não sabe se fingir de sábio? É nessa hora que o teu sorriso se transforma em nervosa gargalhada, depois em choro convulsivo, em compassos de soluços... para em seguida virar pó, como toda e qualquer falsidade.
Meu cliente, aquele que me pagava para vigiar sua mulher, tinha ele mesmo uma amante. Um dia, sua amante amanheceu morta, talvez assassinada, no quarto do motel onde ela e meu cliente haviam passado a noite. Meu cliente não era o culpado, é claro. Como eu sei? Porque era meu cliente, porra... A polícia tem uns métodos modernos, analisam a voz da pessoa através de um aparelhinho que um gaúcho inventou,. O objetivo não é provar que o sujeito é culpado, apenas querem encontrar o caminho a seguir. Se a voz do suspeito o acusar, sabem que ele está mentindo. Daí começam a pressionar e a devassar a vida do cara. Foi o que fizeram com o meu cliente. Como ele era inocente, passou ileso no teste, certo? ERRADO! A esposa do pobre convenceu o infeliz a fazer um tratamento contra insônia com um mágico, uma espécie de hipnotizador, que por sinal, depois descobri, era seu amante, o tal que encontrava com ela no nono andar daquele prédio que eu vigiava. Meu cliente foi, coitado. Depois de três sessões, saiu convencido que tinha sido ele mesmo o assassino de sua amante. Foi aí que fizeram o teste e não deu outra: o timbre da voz não deixava dúvidas: estava mentindo. Pode? Hipnotizaram o sujeito para que ele se sentisse culpado, convencido de que ele mesmo cometara o crime. Uma vez “culpado” sua voz se alterava na hora de negar a autoria. O aparelho registrava a alteração e os tiras vinham com tudo pra cima do infeliz. Por pouco não assina a confissão. Só escapou porque o legista descobriu que a mulher morrera de causas naturais, um infarto, um derrame, uma coisa assim... Acredita que ainda teve um tira vagabundo que queria acusar meu cliente de ter dado um susto na mulher, de propósito, e que por isso ela morreu? Homicídio culposo, vê se pode. Ninguém levou a sério.
Fui com meu cliente a um mágico de circo amigo meu que desfez o trabalhinho do outro. Depois eu e meu cliente demos um flagra na mulher e no hipnólogo. Foi até engraçado, o cara se cagou todo, só faltou esconder a vara  ahahaha... A mulher? Fingiu que não sabia de nada, que nem era com ela, quase me convenceu, tem mulher que é boa nisso.
Por falar em mágico, assisti na TV paga a um vídeo em que as pessoas trocam de roupa atrás de um biombo e em poucos segundos aparecem totalmente mudadas. Algumas saem como verdadeiros reis ou rainhas; outras surgem transformadas em antigas camponesas do Tirol. Como se trata de um vídeo deve ser (ou pode ser) edição, câmera travada, ilusão de ótica, efeitos especiais, essas coisas. A nova literatura vai fazer isso na real. Editar, parar o tempo e reformular o que acontece, mas sem truques. Vai ser ali na frente de todo mundo, a pele roçando na pele, o mau hálito saindo de algumas bocas e invadindo milhões, bilhões de narinas dilatadas. Tive uma namorada que me dizia: “O que te estraga é puxar sempre o lado negativo das coisas, Luís.” Pode ser...  deve ser.

Sinto, mas não posso aceitar o argumento de que existe no mundo lugar para todos. Primeiro porque as evidências nos levam a acreditar que o espaço está sendo permanentemente comprimido, enquanto o tempo insiste em retroceder. Explico melhor: já não teve o senhor ou a madame a sensação de que estamos todos nos espremendo dentro de um ônibus que nunca chega a lugar algum? Pois é a isto que eu e outros estudiosos do assunto chamamos de efeito “Dr. Smith”, aquele sujeito traiçoeiro, personagem da série “Perdidos no Espaço”, sempre pronto a fazer uma sacanagem com os outros e tirar o dele da reta, lembra?
(Tá achando estranho? A idéia é abrir um espaço onde cabe tudo, até aquilo que eu não quero contar...)
Arrumar encrenca a troco de nada funciona mais ou menos assim: você cruza com uma amiga sua e sem querer olha para os peitinhos dela, isto sem saber que ela estava naqueles malfadados dias. Pronto, é o bastante para ela te fuzilar com os olhos (em casos extremos pode até te fuzilar com outras armas que não os inocentes e odiosos olhinhos). Quer um conselho? Aqui vão dois: 1 – Não tente fingir que não olhou, não se faça de desentendido; 2 -  Qualquer atitude sua que insinue que não reparou no que ela achou que você estava olhando e cobiçando vai ser ainda pior, entendeu? Algumas mulheres naqueles dias (não são todas, felizmente) detestam que olhem para elas, embora gostem menos ainda que não reparem nos seus atributos.
O que eu faço pode não ser bom, mas não será “bom” só porque alguém gosta, não importa quantos. O parâmetro têm de vir de dentro, ou, pelo menos, possuir algum correspondente interno. Solidão pode doer, mas é a fôrma (aboliram o diferencial, mas se eu escrever "forma", todo mundo vai ler "fórma", e não era essa a palavra que eu queria escrever) da consciência. O resto é marketing.
P.S. Minha avó sempre dizia: “Baixa essa crista, menino...” Até hoje não adiantou. Meus problemas, pelo menos o núcleo dos mais importantes, fui eu mesmo quem criou. Por enquanto, posso me vangloriar: devo muito pouco à fatalidade. 
Mr. John ligou para o escritório e fez Glenda anotar o recado: “Diga a ele que Mr. John precisa vê-lo com urgência”. Quando cheguei, logo depois do almoço, Glenda me mostrou o papel, sorrindo. Eu li. Estava escrito: “Diga a ele que Mr. John precisa vê-lo com urgência”. Eu perguntei: “Ele quem, Srta. Glenda?” E ela respondeu com uma cara de quem está sendo posta à prova: “Acho que é para o senhor, ué...” Fiquei imaginando por que razão ela não escreveu apenas: “Mr. John precisa vê-lo com urgência”? Por que diabos teve que incluir o “Diga a ele...” Deduções não eram o forte da moça.
A nova e revolucionária literatura, aquela que vai arrasar com o cinema, com a TV, com o teatro.... e com tudo o mais à sua volta, tratará meu encontro com Mr. John mais ou menos assim:
10:30 da manhã de sexta-feira: Mr. John e o detetive-quase-falido encontram-se no saguão do Hotel Royale. (Não há imagens, apenas um burburinho de vozes alcança a mente do, digamos, “ilustre leitor”, que pouco a pouco vai se acomodando ao clima de entra-e-sai do hotel)
9:27 daquela mesma manhã de sexta-feira: 
(Reparem que ainda estou usando as palavras, mas isto será por pouco tempo, até que eu possa vos revelar a técnica do futuro. Por enquanto só posso dizer que leio em vossos olhos um certo desencanto, porque achais que sereis convocados a entrar na estória que porventura está sendo contada. Mas não é nada disso. É preciso lembrar que os raros leitores de hoje em dia não querem se incomodar, detestam ter de tomar qualquer tipo de atitude ou posição. Sentem-se cobrados, e muitos devem além da conta. É exatamente aí que reside um dos principais fulcros da velha e carcomida literatura. As pessoas não querem ler, porque ler exige uma participação ativa. Quem lê, de um jeito ou de outro, “entra” na estória, passa a fazer parte da trama, não importa se está ou não se identificando com algum personagem. No teatro, na TV, no cinema, até nas artes plásticas, é possível ser apenas passivo, simplesmente receber o que entregaram pronto, sem passar recibo. Posso adiantar que a nova literatura vai “entrar” nas pessoas e não o contrário).
Muito antes do que previa, chegou a hora de revelar-lhes alguns detalhes do novo e revolucionário gênero. Antes de mais nada é preciso que aceitem o fato de que a novíssima técnica não terá meio físico para se propagar. É isso mesmo: não haverá papel, nem espaço virtual em discos gigantescos, muito menos a voz de um rapsoda ecoando através dos séculos. As ideias serão transmitidas de cabeças para cabeças, em proporções e velocidades jamais alcançadas. Comecem a estudar a teoria das cordas, levem em conta o maravilhoso mundo das partículas sub-atômicas, mesmo assim, acho eu que não avançarão grandes coisas. As idéias gravitam, é bem verdade. Algo deve atraí-las. Pensem nisso.
Marian começou a me contar uma estória escabrosa, quase inacreditável. Disse ela que eram três os personagens: um casal sem filhos e uma jovem empregada, que o marido às vezes comia.
Depois de um certo tempo, a menina, cansada daquela vidinha sem futuro, resolve radicalizar. Primeiro deixa algumas pistas materiais na cama da patroa, entre elas incluía-se uma calcinha preta debaixo do travesseiro imaculado. Como não surte efeito, inicia uma fase de bilhetes anônimos e telefonemas misteriosos, tentou até mesmo uma sucessão de e-mails provocativos. Contudo, a mulher parece não querer tomar conhecimento do que estava acontecendo entre seu marido e a jovem empregada.
Os dois continuam a se amar explicitamente, de uma forma cada vez mais audaciosa. Transam na mesa da sala de jantar, no banheiro do quarto de casal, em cima do tanque na área de serviço, até na escada do prédio tiveram algum tipo de contato, isso de noite, à tarde, em plena madrugada. “Quero ver até onde vai toda essa indiferença”, pensa a menina, louca de ciúmes.
O mais incrível são os sinais que continua deixando intencionalmente: pêlos pubianos, odores do erotismo, peças de roupa, brincos, anéis, fotos, mensagens gravadas no pc e na secretária eletrônica, declarações de amor eterno... Tudo isso era colocado em lugares e horários estratégicos, para que à esposa traída não  restasse sombra de dúvida.
Parece que nada daquilo ia surtir efeito, até que um dia, quando ela menos esperava, eis que sua patroa invade o pequenino quarto que lhe era destinado nos fundos do apartamento. Não está zangada, nem possessa, nem ao menos vestida... Tudo que faz é uma singela pergunta: “Até quando você vai fingir que está apaixonada pelo meu marido só pra me fazer ciúmes?”
Não há notícia do que teria acontecido em seguida. No entanto, a julgar pelo olhar fugitivo de Meire, foi ela mesma a protagonista da triste estória. Não adiantava perguntar. Ela jamais iria responder.
Mais tarde, ligando o nome à pessoa, fiquei sabendo que Mary, Meire, ou seja lá qual for seu verdadeiro nome, antes de cair na vida, viveu três anos com uma bela mulher divorciada, mais velha  que ela, porém liberal e sedutora como poucas. Deduzi que era a tal patroa.
Parênteses para me aventurar nas tortuosas sendas que regem a mente humana. Acho que Marian se tornou puta por esse motivo. Explico melhor: começou a associar prazer e recompensa. Em outras palavras, seus patrões lhe davam prazer e ainda pagavam por isso. No início, foi só com homem; depois, viveu a experiência de um triângulo amoroso; finalmente, amigou-se com a antiga patroa. Durante todo esse tempo, seu único “trabalho” relacionava-se com o sexo e suas variantes emotivas. A limpeza da casa era o de menos, até chegaram a contratar uma diarista da pesada, uns cinquenta e sete quilos em cada braço. Com o passar dos meses, a tal empregadinha, que não era outra senão a própria Meire, tomou a iniciativa de romper o triângulo e, de comum acordo com sua companheira, mandou o sujeito procurar sua turma. Não sei se Marian era virgem e menor de idade quando foi trabalhar no apartamento do casal, tudo indica que sim, mas é apenas um detalhe da história.
Eu sei que a trama acima descrita ainda pertence à chamada literatura biográfica ou autobiográfica, como dizem alguns. É tido como gênero menor, sem o charme das inovações. Pra mim, esse tipo de comentário não quer dizer grandes nem pequenas coisas. Só posso concordar que é realista ao extremo, pois aconteceu de fato. Mas, e se não tivesse acontecido? Qual a diferença? Mary ia deixar de ser puta por causa disso? As incursões da patroa contra a menina (ou sobre ela, se preferirem) por acaso seriam menos arrebatadas,? Toda essa especulação não tem a menor importância. Verdadeiras ou não, histórias são histórias. Outra coisa bem diferente são as fantasias, os delírios, esses possuem outro status, concordam?
Para concluir essa pequena narrativa recheada de traições e incertezas amorosas, devo dizer que algumas pessoas têm um incrível faro para identificar de onde o dinheiro pode vir. Era o caso do patrão, marido da amante de Meire, ou Míriam... sei lá como é seu verdadeiro nome-de-guerra. O sujeito recusou-se a procurar a sua turma, tampouco foi plantar as referidas batatas, que, aliás, andam com o preço em queda livre no mercado internacional das commodities leguminosas. Tudo o que ele fez foi se aproximar da menina logo após o rompimento com a ex-patroa. A partir de então, passou a agenciar a infeliz criatura e a sugar dela nada menos do que a metade de tudo que a puta ganhava na cama, o que não era pouco. Por que diabos Mary aceitava a exploração? Ora, vá perguntar ao próprio, isto é, ao demônio em pessoa, à diabólica criatura, deve ser o coisa-ruim que engendra essas sacanagens e semeia  incertezas no coração das infelizes. Aliás, dizem que toda mulher precisa ser de um homem só, mesmo quando tem muitos, dezenas, centenas de inconstantes clientes. A maioria das profissionais acaba arranjando um amante fixo, que vem a se tornar seu gigolô, ou cafetão, ou protetor para os mais delicados e hipócritas. Não sei se é ou se não é verdade, mas enfim...
Disse eu a Meire: “Premissa maior: toda pessoa carente é chata; premissa menor: toda mulher é carente; ergo, toda mulher é ...?” Não esperei muito tempo para ouvir: “Mulher não tem lógica, professor Luís”, respondeu ela. Menina esperta, a falsa gringa.
Por falar em lógica (ou na falta de), acho que eram umas dez, dez e pouco, estava eu bem quietinho na cozinha minúscula da nossa suntuosa kitinete, tomando café com conhaque e saboreando um pãozinho de queijo amanhecido, quando Marly entrou com uma amiga a tiracolo. Seu nome, fiquei sabendo mais tarde, era Jussara Jucélia; Jussara por parte de mãe, Jucélia por parte da avó materna. O pai se chamava Josimar, josmar, ou qualquer coisa parecida... Enfim, era Jota pra tudo que é lado. Ganha um beijo no pescoço a bonitinha que adivinhar qual o apelido de Jussara Jucélia... ACERTOU! Juju, muito prazer.
Aliás, muito prazer nada... A moça ficou na microscópica sala enchendo os ouvidos de Meire, ou Mary, Marly, sei lá... O papo era o seguinte: homem que é homem só pensa em sexo. Juju dizia e Meire balançava a cabeça, ou devia balançar, imaginava eu: “Amiga, se um homem elogiar sua roupa, na verdade o que ele está querendo dizer é: ‘Tira logo isso e vamos transar...’ Se um cara te convida pra jantar, em que comida você acha que ele tá pensando?’ Se ele te dá uma lingerie de presente de Natal, fique certa que não é pra você usar, é pra você tirar pra ele em plena noite feliz, entendeu?” Resumindo, Juju era uma puta feminista (sendo amiga de Mary, acho eu que também deveria ser uma feminista puta...hahaha)
Nem Juju nem Mary viram que eu estava na cozinha, por isso falavam à vontade, sem exibicionismo... Isso até a hora em que Mary convidou Juju pra tomar uma água e as duas entraram na nanocozinha e me viram ali sentado, tomando meu café com conhaque, coisa e tal, como já disse, deviam ser umas dez e pouco da manhã... Aí foi um tal de: “Oi, amor... Ce tava aí? Nem vimos você... Essa é a Juju, minha amiga...” Prazer, Juju... agora sim. Quer saber como Juju era? Para com esse negócio de se preocupar só com sexo, ok? ahahahakkkk...
Fiquei olhando a bunda da Juju, é claro. Mary percebeu e me lançou duas chispas ardentes que partiram de seus olhos apertados e atingiram os meus, digamos, curiosos pesquisadores. Doeu aquilo, chegou a queimar a retina. Juju, muito sacana, se fez de inocente: “Ainda bem que você nem escutou o que a gente tava conversando, não é?”  Eu, que de bobo espero não ter muita coisa, respondi: “Escutei, não... Tava lembrando de um amigo que dizia que mulher gosta de criança, de moda, de novela, de dinheiro, de fofoca.... Quem gosta de homem é viado.” A piada é meio supervelha, mas as duas deram uma gargalhada que atravessou a minicozinha, a microssala, varou as paredes toscas, assustou a vizinhança, ganhou a rua, ricocheteou nos passantes, invadiu carros e ônibus, até se perder no ar da manhã deflorada. (Bonito isso, né? Gostei dessa imagem: uma dupla gargalhada deflorando a indefesa manhã. Como você pode constatar, o sexo está presente até nas entrelinhas).
Juju percebeu o estrago que podia provocar, caso continuasse a exibir seus predicados em área restrita. Fez uma cara de quem media as conseqüências, olhou para mim, depois para a amiga, pegou a bolsa e se despediu com aquela desculpa esfarrapada: “Gente, tava esquecendo... Tenho um compromisso, preciso ir”, e lá se foi a gostosa, levando junto meu olhar de peixe morto. Não demorou muito e fui tomar banho pra ver se lavava os maus pensamentos. Mary veio junto, disposta a mostrar com quantas unhadas e mordidas se castiga um infiel. Saí dali, unhado e mordido, para escrever umas bobagens do tipo:
“Sempre tive umas coisas pra fazer mais importantes do que as que eu estava fazendo naquela hora, de modo que minha vida sempre foi composta por “momentos secundários”, as coisas de fato importantes não eram as que eu realizava, ou tentava realizar.
Quer uns exemplos? Redigia anúncios, criava campanhas, pensando na literatura. Ganhava a vida, quando deveria “morrer de fome” pra sentir o espírito da coisa.
Agora, por exemplo, tô eu aqui sentado, escrevendo, quando o que de fato importa é te ouvir dizer: “Não sei se é bem isso que eu quero, mas enfim...”

A literatura tradicional tem inúmeros recursos para captar a vida. Eu acabo de descobrir mais dois: a vida entre aspas e a vida entre parênteses. Como é que funciona? Mais ou menos assim, dividiremos as pessoas, ou os personagens, de acordo com sinais gráficos / ortográficos. Por exemplo, vive entre parênteses aquele ou aquela  que está sempre à espreita, nunca aparece com nitidez. Costuma olhar e meditar sobre o que acontece à sua volta, mas suas opiniões nunca são explícitas ou taxativas, servem em geral como referências para o seu próprio mundo interior.
Já as pessoas que vivem entre aspas, estas sim, têm opinião formada sobre todas as coisas. Estão sempre manifestando seus pensamentos, em geral de forma eloqüente, quando não autoritária, definitiva. Agora, neste exato momento, os que vivem entre aspas poderiam dizer: “Isto que você acaba de escrever não passa  de uma completa imbecilidade inútil...” Se você a ele perguntar humildemente: “Imbecilidade inútil ou inutilidade imbecil?” Com Certeza ouvirá a taxativa resposta: “Tanto faz, sua mula...!” Os que estão entre parênteses, com toda certeza, balançarão a cabeça, desiludidos...
Um louco, com o passar dos anos, torna-se um louco velho; um velho quando enlouquece não passa de um velho louco. É sutil a diferença... Pra todos os efeitos, um velho que enlouquece não deixa de ser um novo louco, coisa que um louco velho jamais será. Haverá uma sutil vantagem? Para qual dos dois?
“Por menos que você goste, uma coisa que vem antes tem que se ligar a uma outra coisa que vem depois”, disse Mary, talvez pensando na sua ex-amiga Jussara Jucélia. “Por mais que você não queira, a vida continua...”, concluiu ela. Serviu para me deixar a sós com meus desejos inócuos e minhas vontades implícitas.
O mendigo, com as calças rasgadas, exibia os testículos. Disse um sujeito, parado no sinal, em cima da Harley Davidson: “É um escroto pendurado no outro.” O mendigo não entendeu foi nada, mesmo assim deu pena.
Inútil sentimento inócuo? Em vez de sentir pena, eu deveria  ter gritado para o motociclista: “É uma máquina em cima da outra. A de baixo é mais gente.”
Como nos lembraria Nietzsche, não cabe ao mendigo se valer da compaixão (e de outras hipocrisias de fundo religioso) para se julgar de alguma forma “superior”.
Por outro lado, acho eu que o motociclista também não tinha o direito de exibir com tanta veemência a estupidez humana em seu mais alto grau de “pureza”, um verdadeiro diamante na sua incansável tarefa de cortar ilusões.
Moral? Tô a fim de compor uma música intitulada “O Mendigo e o Motociclista”, versão século XXI de “O Bêbado e a Equilibrista”. Depois, quem sabe, eu pergunto pra Maria Rita se ela não quer gravar... rs
Tá achando que uma coisa não tem nada a ver com a outra? Liga não. Dá uma olhada no título lá em cima,  porra.
Voltando ao “caso John” (lembram-se dele?), era um sujeito baixinho, repugnante (mas não por ser baixinho, talvez porque estivesse resfriado e esfregasse toda hora o nariz na manga do casaco xadrez, também ele repugnante), em resumo, era um cara capaz de passar uma tarde inteira explicando o seu problema e, no final do dia, você saía dali com a certeza de que não havia era porra de problema algum, tal o rolo que ele armava. Mas, vamos lá: Mr. John tinha um meio-irmão por parte de pai, envolvido com gente do submundo, um pessoal da pesada. Mr. John queria tirar o irmão do mau caminho, mas não queria que o irmão viesse a saber que era ele quem estava por trás da, digamos, “boa ação”. Acrescentou que alguém o seguia todas as horas de todos os dias, estivesse onde estivesse. Agora posso até ouvir seus pensamentos me questionando: “E isso não é um problema?” Seria, caso a história não estivesse espelhada, invertida. Mr John, ele em pessoa, é quem andava metido até o pescoço no mundo do crime, seu irmão pretendia salvá-lo, mas não queria que Mr. John descobrisse que era ele quem estava por trás da “boa ação”. Isso, eu só fiquei sabendo depois de alguns telefonemas para uma turma que de “leve” não tinha nada, muito menos a consciência. Pra encurtar a história e não tomar vosso precioso tempo, devo dizer que abandonei o caso logo após comprovar que tudo que Mr. John queria era que eu eliminasse o tal sujeito que o seguia, na verdade, um detetive da velha-guarda, a serviço de seu meio-irmão, digamos, bem-intencionado. Quem pagaria o pato? Dá pra imaginar, não dá? O detetive que seguia Mr. John fora alertado de que alguém o seguia, a mando dos chefões. Na primeira oportunidade, quando se sentisse ameaçado, iria reagir. Mr. John confiava que eu seria mais rápido no, digamos, gatilho e eliminaria o tal detetive sem sombra de dúvidas. O que aconteceria depois não era da conta de Mr. John e de seus asseclas.
Não tenho a mínima idéia do que fez Mr John depois que eu entreguei o caso. Contudo, umas duas semanas depois, li nos jornais que o meio-irmão de Mr. John tinha sido vítima de um assalto. Ao tentar reagir, ele e um guarda-costas, que vinha a ser o tal detetive, foram executados à queima-roupa. Na TV, Mr. John bradava por justiça nessa “terra sem lei”.
Glenda perguntou se eu não ia cobrar nada de Mr. John pela, como se diz hoje em dia, “consultoria”. Respondi que não tinha perdido nem meia-hora com o caso. Glenda sorriu, enigmática, e sentenciou: “Meia-hora? Dá pra matar um cara e se livrar do corpo...” Acho que cada vez conheço menos as pessoas que me cercam.

Imaginem vocês que aproveitando a folga que Mariane me deu (por falar nisso, a putinha jurou que era esse seu verdadeiro nome e a partir de então comecei a chamá-la de Ane, depois de Anita, coisa e tal... Mari, nunca mais. Mas isso não vem ao caso, não agora), aproveitando a folga, escrevi uma sinopse para um filme, ou uma minissérie, ou qualquer coisa do gênero. O gênero é policial, é claro. Já que se trata de uma sinopse, a narrativa tem que vir em poucas e esclarecedoras linhas, objetivas palavras, circunstâncias definidas com exatidão, ideias concisas. Mas, atenção! Isso não tem nada a ver com aquela conversa sobre a nova literatura, é apenas uma sinopse, uma tentativa desesperada de levantar o moral econômico-financeiro, e fim de papo, ok? Chama-se “A Dinastia”. Aí vai:
A história começa com um robot, a quem ironicamente chamavam de Asimov III, estrangulando um sujeito velho e gordo no escritório da “Martins, César & Advogados Associados”. A sede da empresa ficava num beco escuro, no centro velho de uma cidade suja e perdida. O sujeito mais parecia um gângster, enquanto o robot repetia sem parar que apenas obedecia ordens superiores e que em pouco tempo estaria pronto para uma nova missão. Ouve-se um grito: “Não, Asimov.... Você não pode matar seu pai!” O robot simplesmente responde: “É a lei da vida: os filhos matam os pais que mataram seus filhos...”
Há um corte e uma volta ao passado.
Alguns anos antes, quatro ex-policiais formam um grupo de elite para investigar um misterioso assassinato. O crime foi seguido por outras ameaças e falcatruas diversas, entre elas o estelionato. Até aí nada demais. O inusitado é que os quatro ex-tiras são agora bandidos a soldo da corporação clandestina “Justiça e Paz”, comandada pelo chefão de nome Bishop, ou Bispo, cada um o chamava de um jeito.
Eles investigam e tentam descobrir ações ilícitas cometidas por Orlando Arantes, um policial da velha guarda, tido como incorruptível. Arantes, é claro, incomoda o chefão Bishop, mas não é possível eliminá-lo pura e simplesmente, pois isso levaria a uma revolta em setores da  Força Pública e a uma prejudicial “caça às bruxas”, de conseqüências imprevisíveis.  Em seu luxuoso apartamento, o chefão filosofa: “Todos nós sabemos por que meios o ódio se instala, mas ninguém sabe como e quando termina... Quero provas, provas irrefutáveis contra Arantes, entenderam? Algo que incrimine esse filho-da-puta pro resto da vida”, berra o Bispo, ou Bishop. 
Os quatro trabalham incansavelmente, mas nada conseguem. Quando relatam o insucesso, o chefão é tomado por uma súbita e incontrolável ira. Agride os subalternos com palavras e gestos obscenos, diz que todos eles não passam de burros, trapalhões, maricones que não entenderam nada da missão. Revela que não é para descobrir, mas sim para “FABRICAR” as tais provas contra seu inimigo (diga-se de passagem, em momento algum do filme, aparece este policial supostamente incorruptível, logo ele o personagem principal da história. Na verdade, trata-se de uma tentativa de não repetir a fórmula surrada da eterna luta do “bem” contra o “mal”, dominante em quase todas as tramas do gênero. Neste caso, o “bem” está ausente, sujeito oculto).
Os quatro bandidos invadem o apartamento do policial incorruptível e “plantam” a prova a que o chefão se referiu: a arma do crime. Depois, um vulto entra numa cabine telefônica, liga para a corregedoria e oferece uma denúncia anônima, não sem antes disfarçar a voz com o auxílio de um minúsculo misturador portátil de sons e imagens.
O que os quatro ex-tiras não sabem é que o policial, atendendo a exigências de seus superiores, mandara instalar microcâmeras de vídeo nos elevadores do prédio em que morava e também na sala e no quarto de seu minúsculo e sombrio apartamento. Todas elas estão interligadas online com a chefatura de polícia. A ação fora filmada e analisada “real time”, abortando o plano. Nenhum dos quatro foi preso, porque tudo transcorreu com a esperada rapidez. Tampouco conseguiram identificar os invasores, que usaram luvas e máscaras desde o momento em que entraram na portaria do edifício. Por outro lado, as tais “provas” foram desconsideradas antes mesmo que alguém ligasse para oferecer a denúncia anônima. Resultado: malgrado os esforços, voltaram à estaca zero.
Os quatro bandidos empenharam-se em novas tentativas para incriminar o incorruptível. Porém, nenhuma delas, por um motivo ou por outro, logrou alcançar seu objetivo. Sempre acontecia algum imprevisto ou aparecia alguém para frustrar a ação criminosa. Depois de um certo tempo, quando já estavam prestes a entregar os pontos e a assumir os riscos de desistir da missão perante “il cappo di tutti cappi”, eis que o mais novo dos quatro tem a luminosa idéia, logo encampada por todos: “Se nós quatro não podemos incriminá-lo, certamente algum dos muitos inimigos que ele tem na Força poderá. É uma questão de saber preparar a sopa que irá queimar a sua goela...”  Comeram à farta, dançaram com lindas mulheres, beberam até cair. Tudo isso para comemorar a brilhante idéia que consagrara o “piu nuovo bandito”.  No dia seguinte, a ressaca insistia na pergunta: “Como...?”
Pode ser difícil colocar uma pista falsa na pasta de um tira incorruptível, mas quando o próprio chefe da Narcóticos é um dos interessados na desgraça do “incorruptível”, a coisa até que não é tão complicada. Assim, quando ele se dirigia para casa a bordo de seu velho e sujo Buick 51, eis que dezenas de carros da polícia fecham a sua passagem. Sirenes ligadas, gritos estridentes, ordens indecifráveis... Consta que ocorreram até mesmo alguns tiros para o alto, apesar de toda a ação ter acontecido no centro da cidade velha, ruas estreitas, sobrados antigos de janelas trancadas, bem na hora do rush. Não é necessário dizer que o incorruptível transportava no porta-malas muitos quilos da “boa”, surrupiados do depósito da Narcóticos.  Como era de se esperar, Orlando Arantes alegou inocência, jurou, se ajoelhou, se indignou, blasfemou contra os seus chefes, ameaçou contar tudo o que sabia e o que não sabia, e parece que foi esse seu mais imperdoável crime, que a todos amedrontou.
Algemaram o homem, o enfiaram no banco de trás de uma van negra e lá se foram, cantando pneu. Nas calçadas, o povo aplaudia, como sempre sem saber da missa a metade.
No dia seguinte, os jornais da manhã noticiavam a morte do ex-incorruptível, que havia deixado uma carta dizendo-se envergonhado por ter manchado a honra da corporação e por isso cometia aquele (improvável) suicídio, a bem da verdade, improvável para todo mundo, menos para os responsáveis pelo inquérito, que encerraram o caso antes que o galo cantasse três vezes.

Naquela mesma tarde, os quatro bandidos, certos de que haviam cumprido a missão com louvor, entram orgulhosos no escritório do chefão. O mais novo, como recompensa por ter sido o autor da idéia, estava encarregado de dizer, alto e bom som: “O cara morreu, Bishop...E ninguém vai nos culpar”.
A vida prepara surpresas para todos nós, homens honestos, honrados chefes de família, por que não faria o mesmo com bandidos da pior espécie? Na verdade, não tiveram tempo de transmitir a boa nova. O chefão chorava copiosamente, arrancava os poucos cabelos que ainda lhe restavam, socava o tampo da mesa, mostrava, enfim, desespero, desalento, inconformismo, quase como uma criança de quem surrupiaram o pirulito colorido. 
Ao ver a cena, os quatro por pouco não caíram na gargalhada, surpresos com a situação. O medo, contudo, é um sentimento capaz de se sobrepor a todos os outros. E medo era bem o que sentiam, tendo em vista o que poderia acontecer caso o chefão se julgasse desrespeitado. Engoliram o riso, mastigaram a notícia que não foi dada, arregalaram os olhos ao saber que o bandido-chefe chorava a morte de seu único filho varão, ele mesmo, o policial incorruptível. O homem levantava os braços para o céu e berrava: “Quando descobrir quem fez isso, juro que corto o maledeto em pedacinhos...”
Os quatro apresentaram suas condolências e saíram de fininho, antes que desconfiassem da pura verdade. Mais tarde, alguém na organização lhes disse que o todo-poderoso nunca pensou em tirar a vida de Orlando Arantes, só o que desejava era criar para ele obstáculos intransponíveis, a ponto de tornar inevitável a entrada de seu filho na “Justiça e Paz”, passando a ser o primeiro na escala da sucessão. 
Todos nós sabemos que o mundo do crime está repleto de fofocas e fofoqueiros, tal como acontece com o mundo da moda, do marketing,  do showbusiness, das grandes e pequenas corporações, dos pobres, dos ricos, dos mendigos, dos religiosos, dos ateus, dos homens, das mulheres, das crianças, dos mortos e dos vivos, etc., etc.
Em pouco tempo, o chefão ficou sabendo quais eram os verdadeiros responsáveis pela morte de seu ex-renegado herdeiro. Ordenou de imediato a eliminação dos três bandidos sobreviventes, uma vez que o maior culpado, o mais jovem dos quatro, já havia cometido suicídio, pulando do décimo-segundo andar de um edifício em construção, na zona portuária da cidade, dizem que em circunstâncias misteriosas. 
Quando vieram contar que o “servicinho” estava concluído, Bishop, o chefão, arrancou um pouco mais dos seus raros cabelos e jurou, soluçando, que jamais contrataria novamente um ser humano para dar cabo de outro, pois isto sempre levava a resultados inesperados. De alguma forma sentia-se nas mãos dos assassinos dos assassinos de seu incorruptível  descendente.
Consta que foi por essa época que desenvolveram os robots homicidas, um deles, de nome Asimov III, mostrou-se o melhor e mais bem preparado para missões perigosas, sobretudo as que envolviam traições e vinganças em família, mas esta é uma outra história...
Mais tarde, depois que o robot dera cabo do chefão, compararam os DNAs a pedido da promotoria, e concluíram que o policial incorruptível não era filho de Bishop, o supergângster, coisa nenhuma. Seria cômico, se não fosse trágico: o chefão, além de traído por seu “filho” robot, tinha sido em algum momento corneado pela mãe de Arantes, o incorruptível. Se estivesse vivo para saber da verdade, com o rosto banhado em lágrimas, Bishop certamente diria: “Não há mais cabelos a arrancar...”
Asimov III foi mandado de volta para o Hospital Central dos Robots, um centro de excelência mundialmente famoso. Não foi um castigo por ter ele estrangulado o chefão, queriam, isto sim, descobrir por que o mais avançado robot de todos os tempos não havia detectado a história dos DNAs antes de entrar em ação e colocar em prática seu plano macabro. Pelo menos uma das dezoito equipes de especialistas encarregadas do caso concluiu que Asimov III era de “má-índole”, ou seja, um robot que já nasce propenso a transgredir e a punir humanos sem cerimônia.  
Pedi a um amigo pra fazer a versão para o inglês, paguei um professor com sotaque e tudo pra fazer a revisão e mandei a sinopse para vários estúdios de Hollywood. Sabia que eles estavam à procura de novos talentos e pagavam muito bem pelas idéias aprovadas. Recebi uma única resposta, devidamente traduzida pelo tal professor:
“Caro senhor, agradecemos a atenção, mas lamentamos informar que a sinopse não se enquadra em nossos planos de produção cinematográfica para os próximos cinco anos.
No entanto, apreciamos seu trabalho, em particular o realismo introduzido no personagem “Beebop”. Vá em frente! Nós o encorajamos fortemente a continuar.
Esperamos contar sempre com a sua inestimável atenção.
Ass.:  Longlane, Gerald (in charge of entrance hall)”
Pode?
Mariana, aquela puta tarada, ninfomaníaca das brabas, limitou-se a dizer:“Só mesmo você.Deita aqui, robozinho... Vem trocar o óleo, vem.”
A tese agora é a seguinte: tudo que passar por você, agarre, segure firme, com as duas mãos, não importa se são bens materiais ou valores imaginários. Por exemplo, não deixe a oportunidade escapar, cole na mulher da sua vida (ou no homem dos seus sonhos), ate-se a seu cargo no trabalho (qualquer que seja ele), abrace os amigos (se ainda tiver um), aperte a bolsa contra o corpo ou a carteira no bolso da calça (mesmo que a grana seja curta), não fique olhando a sorte passar montada a cavalo, se for o caso, pendure-se no azar momentâneo (porque algo muito pior pode vir por aí), encampe as novidades, apegue-se às tradições, defenda o que é seu, conquiste, ocupe, proteja-se. Sobretudo, lembre-se: todos têm seu preço, por isso não acredite em quem lhe disser: “O cara que escreveu isso aí em cima não vale nada...” Alguma coisa ele deve valer, quem sabe, até já se vendeu. Se tem quem pague...
Quer um pouco mais de otimismo auto-ajudante?
Todo sonho vem com um barbante amarrado na ponta. Pendure-se nele. Só tome cuidado porque uma hora vai ter que largar...
Como eu não quero que isso aqui fique cada vez mais com cara de Diário dos Incompreendidos, ou de bate-papo com um improvável leitor, vamos voltar à técnica que irá revolucionar a literatura, o já por demais mencionado “novo gênero”. Aí vai um texto que tá pronto faz um tempão e que pode colocar umas sementinhas de maracujá na boca dos maus-entendedores, azedos e presunçosos:
                      O Novo Gênero   
            A linguagem do século XXI ?
                                      f.n.
          O novo gênero não será descoberto por ninguém isoladamente. Há de ser uma conquista coletiva, talvez uma praga, que precisaremos domar, quem sabe tão sedutora quanto a multimídia em nossos dias. O avanço tecnológico, em ritmo jamais sonhado, não só põe em guarda o que muitos gostam de chamar de “cabeças privilegiadas”, como também encurrala o próprio homem, cada vez mais desconfiado e arredio com a incômoda posição que arranjaram para ele, cada vez mais a de objeto do seu próprio destino.
 É certo que não terá sido a primeira vez na história, nem será a última. Foi assim no expressionismo, no entreguerras, na invenção do rádio e da TV. Mas é a escala que faz a diferença. Se entender o mundo que nos rodeia está cada vez mais difícil, projetá-lo no futuro relativamente próximo e garantir um mínimo de integridade, isso nem se fala... 
 Certamente não há como prorrogar a linguagem do absurdo, muito menos o realismo fantástico. Kafka se impôs como a matriz do século passado. O realismo fantástico nada mais fez do que dar  a ela uma nova roupagem – moderna, atualizada, mas igualmente absurda. Na verdade, a matriz kafkiana deu à luz algo que ainda não sabemos definir por completo, mas que soa para nós como inquestionável e, ao mesmo tempo, incompreensível; lógico e inaceitável; agregador e fragmentado. Talvez o zero ou um, o dígito binário esteja na base desta linguagem que mal podemos vislumbrar. A unidade dos contrários levada a seu extremo.
                                                                                                                           
Imagine, por exemplo, um livro, ou melhor, um e-book, com cara de blog do futuro.  Vai haver uma certa interatividade, autor e leitor estarão mais pertos, tende a sumir a figura onipotente do criador, mas isso não há de ser o determinante. Vamos dizer que o autor tenha criado um texto. Esse texto poderá ser lido e, em alguns momentos específicos, poderá se transformar em filme, sons, odores... O que vai determinar a troca de gêneros? Não creio que se deva deixar ao arbítrio do leitor. Acho que ele não deve ter o direito de escolher aleatoriamente, até porque isso prejudicaria o conteúdo da obra. O leitor não pode apertar uma tecla e dizer: ‘Bom, agora quero ver a cena que esse cara narrou’, ou: ‘Quero ouvir os gemidos da garota, sentir seu hálito...’
Não se trata de censurar um desejo do “leitor”. Provavelmente vai haver mecanismos para medir o que mais prendeu sua atenção, o que mais o seduziu, do que ele mais gostou. Tudo isso sem a interferência consciente desse leitor. Em determinado momento, o texto desaparece na tela e é substituído por uma visita, em 3D, à galeria de arte. A frase que deu origem à transposição poderia ter sido: “Olhou com ternura para aquela marinha de Pancetti e se imaginou caminhando à beira-mar,  dentro do quadro.”
O barulho das ondas, a maresia, a água refletindo raios de sol, um certo gosto de passado... Voltar à história pode não ser tão simples, ainda mais se o autor não tiver a pretensão de substituir a vida pela obra, o que de resto já não é novidade em nossos dias transitórios.
Que forma física deverá ter este novo gênero? Esqueçam as letras impressas ou seus simulacros ilustrando monitores. Esqueçam a passividade de uma sala de projeção com sua tela plana, esqueçam as luzes da ribalta, picadeiros e capacetes futuristas. Para quem está apenas engatinhando na era da conexão full-time, o mais seguro é supor que a forma há de manter alguma correspondência com o conteúdo. Neste caso é bom ir pensando em algo que há de ser e não ser ao mesmo tempo. Descartável vestimenta, talvez um adesivo que adere sem deixar marcas à testa do honorável leitor... Oneway, vendido em diversas tonalidades, inclusive nas cores roxo e pink. Pode vir sob a forma de hipnose? Quem sabe um novo ácido, sem contra-indicações de qualquer natureza? Ondas de rádio? Ou apenas a auto-indução, porque, afinal,  todas as histórias já estavam previamente carregadas na cabeça de cada um de nós?
  Seja o que for, convém não esquecer o fenômeno da concentração, que inaugura o século com jactância e, quem sabe, venha a explodi-lo mais adiante. O novo gênero não é para qualquer um. A começar pelos recursos necessários, gerenciados por grandes corporações, quem sabe, uma só, com tentáculos enraizados nos quatro cantos do planeta. Certamente, nada se produzirá sem pesquisa; nada chegará ao fim sem outra pesquisa, de modo a garantir o sucesso permanente. O poder de gerar lucros milionários será exarcebado ao infinito. A linguagem universal há de tornar obsoleta a quase sempre malvista figura do tradutor. Uma ou outra adaptação estará restrita à troca da marinha de Pancetti por uma lata de sopa Campbell, ou pela mancha azul, talvez escolham os chifres de um touro desconstruído, e nisso se resumirá a interatividade.”
                                               
 Fiquei pensando se deveria ou não anotar algo sobre o provável acesso elitista a esse novo gênero que se anunciava. Pensei em escrever: “Seja qual for esse novo gênero, o fenômeno da concentração – tônica dos nossos dias – irá limitar cada vez mais o acesso à arte, à cultura, ao saber em geral...” Mas desisti, porque achei que estaria, digamos, colocando o carro adiante dos bois. Peguei um lápis e rabisquei no verso da última folha: “Quem sabe, o novo gênero não será apenas uma ideia – solitária e poderosa, mas apenas uma ideia? É bom pensar nas coisas simples. ” 
Agora, tem um pequeno detalhe, a verdade não é assim tão simples de encontrar. Quase nunca está deitada no tapete da sala, nua e crua, esperando que alguém a descubra. A menos, é claro, nos casos em que você chega de viagem, abre a porta de casa e encontra sua mulher inteiramente despida, nos braços do seu melhor amigo. Ou, mutatis mutandis, quando você surpreende seu marido transando com a sua melhor empregada. Nesta última hipótese, sempre tentei entender por que você nunca diz: “Robert, você está comendo a  nossa melhor empregada?!” Ou: ”Ritinha, você está transando com nosso melhor marido?!” Nada disso. Você sempre dirá: “Aqui?! No nosso quarto, em cima da nossa cama?!!!” Armará um barraco e sairá dali aos prantos. Nunca consegui entender por que o quarto e a cama têm mais importância do que a transa em si. Vai ver que é por causa daquela tradição dos lençóis alvos, macios, imaculados; travesseiros que conversam com algumas pessoas, sei lá...
“A eterna busca da verdade, apesar dos contratempos”, taí um bom tema, até como samba-enredo. Olha a Beija-Flor aí, gente...
Não vou jurar de pés juntos que tenha conhecido apenas uma Meire, ou uma só Mariana...  O que faço aqui é um exercício que consiste em agrupar essências e reuni-las no mesmo frasco. Aí você espreme e o que sai é... Bem, melhor descobrir por si mesmo. Prometi a todas as meires e a todas as anes e rosanas da minha vida que não cairia na tentação de simplificar para, de alguma forma, entendê-las. Estou certo que é aí que reside a força do marketing feminino: precisam ser diferentes, incompreensíveis, às vezes surpreendentes e sonhadoras, embora sempre ligadas ao lado prático das coisas. Mas, atenção! É um marketing intuitivo, espontâneo. Não me levem a mal. Enfim, prometi tá prometido. Não esquente com isso (mas não esqueça de aquecê-la bem nas preliminares...hehehe)
Um belo dia (não tão belo, nem tão dia: era uma noite de chuva e nuvens negras no horizonte), Marianinha foi direto ao ponto: “Ratón, não quero mais viver com você. Ahora tengo um gigolô de berdad, Ratón, un hombre másculo e fuerte, cosa e tal...”
Não demorou uma semana e lá estava ela a me pedir perdão, perguntando se eu aceitaria uma puta maldita e estropiada de volta. Tinha os lábios inchados, os olhos roxos, a saia rasgada... Disse que nunca mais ia querer saber de “macho de verdade” em su triste vida. “Assim você tá me ofendendo”, respondi...ahahahaa
Foi com ela que eu aprendi que algumas fêmeas sentem prazer com a dor e só se entregam completamente quando é enorme o sofrimento. Pode ser estranho, pode ser difícil entender, mas é assim que funciona.
Uma vez, quando eu andava bem abaixo do terceiro círculo do inferno, eis que minha doce secretária de nome Glenda arranjou para mim um sócio, que se apresentou como Leo Perez. Era um cara que vivia antenado, vinte e quatro horas por dia recebendo e processando informações objetivas. Glenda jurava que ele era capaz de farejar um bom negócio a milhas de distância. “Você conhece alguém melhor do que esse cara pra te tirar da merda em que te encontras?”, Glenda parecia perguntar com seu sorriso de camaleoa.
Logo de início, mal fomos apresentados um ao outro, Leo revelou conhecer uma família de milionários disposta a pagar o que fosse preciso por um bode expiatório, alguém capaz de segurar um rabo de foguete, qualquer coisa assim. Quando eu disse que não me metia em falcatruas, Leo retrucou que não era nada ilícito além das aparências. Depois acrescentou que o filho mais novo da referida família tinha sido acusado de um crime que não cometera. O caso já estava na Justiça e a única solução agora, segundo o renomado advogado de defesa, era encontrar alguém que assumisse a culpa, isso a peso de ouro, é claro. Disse eu a Leo que aquele tipo de trabalho não era bem para um detetive particular, que havia dezenas, centenas, talvez milhares de tiras desonestos e mais bem aparelhados do que eu para executar o tal plano. Nessa hora, Glenda se intrometeu pela primeira vez na conversa: “Há uma gorda comissão em jogo. Vai dar de mão beijada para os tiras desonestos? Que tipo de honesto burro é você?” Ética é uma coisa que vai muito além de um “sim” ou de um “não”. Tem também a premissa: se você não fizer, vem outro, mais safado que você, e faz.
Uma ação desse tipo exige uma série de engrenagens bem azeitadas e prontas para entrar em operação no momento certo. Uma equipe de policiais, de preferência com reputação ilibada, tinha que prender, na hora certa, o sujeito certo, isto é, aquele que resolveu acreditar na conversa de que confessaria o crime, embolsaria a grana e daí a uns meses teria a fuga facilitada, novos documentos, passaporte falso, negócio sem erro, pois sim... Aí entra a ética de novo: que direito você tem de iludir um vigarista ganancioso, por mais repugnante que ele seja? Meu sócio Leo, é claro, não queria se envolver nessas questões, seu trabalho era única e exclusivamente permanecer “antenado” e embolsar cinquenta por centro do lucro líquido, como dizia Glenda. Nunca em toda a vida conheci uma profissão tão estranha e lucrativa como aquela, um dom, esse viver antenado.
Foi seguindo essa tática de tirar o corpo fora, de pisar em ovos sem quebrá-los, foi assim que eu comecei a me levantar, sempre rebocado pelo bom-senso de Glenda e por todas as antenas de Leo, o único homem na face da terra capaz de farejar bons negócios de duas em duas horas, como um desses remédios de homeopatia.
Por conta de seu inegável talento de “perdigueiro” Leo abocanhava uma grana preta, a metade de cada negócio que desse certo. As despesas eram comigo, inclusive o aluguel, gastos com transportes, a manutenção do escritório, o salário de Glenda, impostos, encargos, etc., etc. Mas eu não achava injusto. Como Glenda gostava de lembrar, sem Leo não haveria as despesas, muito menos renda para pagá-las. Nessa época eu costumava me desafiar pra saber se as coisas eram justas e bem-pagas: “Acha caro? Experimente fazer em casa... Do It yourself, depois me conta a merda que deu.” 
Uma noite ficamos trabalhando até mais tarde, eu e Glenda (Leo não trabalhava; no escritório, pelo menos, não). Tocaram a campainha lá embaixo. Glenda perguntou se devia abrir a porta e mandar subir. Eu respondi: “Primeiro calce os sapatos, arrume o cabelo, abotoe a blusa e vista a calcinha...”
Era um emissário de Leo. Entrou, sentou no banquinho dos futuros clientes, meteu a mão no bolso da jaqueta branca e, quando eu achei que ia sacar uma pistola, tirou lá de dentro um envelope lacrado, com meu nome escrito a lápis no canto superior esquerdo. Rasguei o envelope com todo cuidado. Havia um bilhete escrito à mão que dizia:“Vá até a Lan mais próxima e abra o email dicasdoleo@hotmail.com. A  senha é “vemchumbogrossoporai”. Não use o celular em hipótese alguma, muito menos os telefones da agência ou de casa, não imprima nada. Guarde tudo na cabeça. Antes de sair, pergunte ao portador deste bilhete se ele aceita uma gorjeta. Caso ele não te responda: “Vá se foder...” significa que não é o emissário que contratei, mas provavelmente alguém que o matou e se apossou da carta. Atire nele. Depois, livre-se do corpo, é claro...”
“Que situação que esse cara me arranja”, pensei eu. Por via das dúvidas, resolvi seguir as orientações e perguntei se o cara de jaqueta branca aceitaria uma gorjeta. A resposta veio em seguida: “Vá se foder”, disse ele, e foi-se embora, não sem antes ouvir de Glenda: “Seu grosso, mal-educado... Que mal faz alguém oferecer uma gratificação?” Claro que me deu vontade de rir, mas estava fora de cogitações.
Fiz exatamente o que Leo Perez me ordenou, ou orientou, ou pediu... Naquela altura dos acontecimentos já não sabia em que posição me encontrava. O fato é que enfiei o bilhete no bolso do paletó marrom, peguei meu chapeuzinho surrado (excelente para disfarces, só não sei de quê, nem por quê...) e saí, pensando onde estaria a tal lan mais próxima. Glenda quis vir comigo, eu disse que era melhor que ela ficasse ali, tomando conta do escritório e anotando os telefonemas. Glenda riu de um jeito cínico, como se as duas coisas jamais viessem a acontecer. Quando voltei, Glenda quis saber o que dizia o bilhete de Leo. Eu tive que disfarçar. A razão estava no tal e-mail que li na primeira lan house que encontrei aberta:
          “Amigo, acho que posso lhe chamar assim, não sei
          se  está  comendo  vc sabe quem. Se não estiver,
          esqueça... Mas  se  estiver,  saiba  que  tem  uns
          graúdos  poderosos atrás da moça. Em  breve  vc
          terá a comprovação.  Estou de partida. Volto em um
          mês ou dois... Até lá, lembre-se: fifty-fifty.”
O e-mail não tinha assinatura nem nada. Era bem a cara do sacana do Leo. Nunca vi um sujeito tão antenado como aquele. Respondi dizendo que nosso contrato -  verbal  é bem verdade - exigia lisura e cumplicidade, portanto, se ele queria os cinquenta por cento, que me informasse que porra de desconfiança era aquela que pairava sobre Glenda. Fiquei um tempo ali na lan esperando a resposta. Depois pensei: “Porra, eu sou um cara idiota mesmo... Isso aqui não é telefone...”
Tô me fechando, como fazem algumas plantas depois que o sol se põe. Tô me fechando pra não virar o que me disseram que eu era: um cara que vai se tornando indispensável, mas não por suas qualidades, nem pelo que pode oferecer; indispensável porque iria eu me enredando na vida das pessoas, “como uma erva daninha”, chegaram a dizer. Algo que aperta, sufoca, mas ao mesmo tempo abraça, envolve, acalenta. Nunca pensei em mim mesmo sob esse ponto de vista. Mas, creio eu, quando duas pessoas se relacionam sempre deixam um rastro de veneno nas entrelinhas. Por que seria diferente comigo e com as glendas, maris e anas?
Estávamos todos sentados na sala de espera do Detran. Cada um com a sua própria senha. Quando um número brilhava no painel eletrônico, a pessoa se levantava e ia caminhando em direção a uma das baias em frente à platéia. Afinal seu número piscou no painel e ela pensou: “Agora esse filho da puta vai ficar olhando pra minha bunda.” Não deu outra, olhei mesmo, bela bunda. Antes de chegar à baia, ela virou-se para trás e me viu sorrindo. Pensou: “Você não tinha o direito de enfiar esses olhos aí onde não foi chamado.”  Eu pensei: “Bonito.... agora a gente tem de pedir licença até pra olhar a bunda da ex-mulher.”
Essa vai de graça pra quem gosta de pensar: a verdade, no entendimento comum das pessoas, é um conceito estático, absoluto, tão forte e definitivo que é capaz de eliminar o movimento, a mutação, de resto a única “verdade” que valeria a pena considerar. (Vale a pena anotar a lápis no canto direito: Heráclito?)
Eu sonho. Durante a noite inteira tento me eximir de uma culpa, a morte de uma mulher que eu nunca matei, nem ao menos sei se é morta de verdade. Como estou sonhando, acho que todos os meus álibis serão contestados, pois aqueles que poderiam testemunhar a meu favor não passam de lembranças, suposições, imagens, enfim, fantasias oníricas. No entanto, são muitos os que devem testemunhar contra, e quando alguém acusa não se pede quase nada de veracidade. Eu sonho, e quanto mais o sonho vai passando mais e mais sinto-me encurralado.  
Vida paralela, não há quem não a tenha, mesmo que seja só dentro da cabeça de cada um, ou cada uma...  Cada uma, né?
(a literatura deve criar o seu próprio mundo, pois apenas com o romance realista não pode competir com o cinema nem com os comerciais. Muito menos com as novelas da TV)
A cidade era, no mínimo, improvável. Jantei no único restaurante que havia. As moscas eram tantas e tão organizadas que a casa oferecia  uma proteção de filó, ou renda branca, cobrindo mesas e cadeiras, estendida um pouco acima da cabeça dos clientes. Criava-se uma espécie de cabana transparente, onde qualquer um poderia entrar, através dos olhares, inclusive os das moscas desesperadas.
No parede do canto, um cartaz em letras vermelhas: “Não há espaço para reclamações. Todas as brechas, assim como concavidades e reentrâncias, estão sendo preenchidas por apalpadelas, penetrações e outras atitudes igualmente libidinosas. Enjoy your food.”
Um cara entrou no meu blogsite, parece que leu tudo. Não sei se gostou ou se não gostou, isso pouco me importa. Sei que depois me mandou um e-mail para atebreve@hotmail.com , perguntando se eu era o Feliciano Nóbrega, em resumo, se FN eram as iniciais de Feliciano Nóbrega.
Respondi com a maior educação, informando que meu nome não era Feliciano, meu sobrenome nunca foi Nóbrega. Eu era apenas FN, atenciosamente, FN.
O cara não se deu por satisfeito e mandou mais um e-mail:
“Porra, Feliciano...Vc continua o mesmo. Eu sou o Jérson (com “jota”). Estudamos juntos na oitava série do Bom Pastor, lembra?”
Mais uma vez respondi educadamente:
“Jérson com Jota, já te falei, cara... Eu não sou o Feliciano. Não estudei no Bom Pastor, nem sei que colégio é esse.”
A resposta veio em seguida:
“Ahahaha.... Sabia que era vc, Feliciano. Lembra da Marilu, que todo mundo chamava de Malu? Aquela guria que vc comeu na oitava série? Pois é, casei com ela... kkkkk...”
A coisa tava ficando mais complicada do que eu desejava. De modo que fui perdendo a paciência e respondi, meio que grosseiramente:
“Escuta aqui, ô palhaço... Eu não comi Marilu nenhuma, tá entendendo? Além do mais, ninguém come ninguém na oitava série, porra...”
A resposta? Veio em letras garrafais...:
NÃO COME, É? AGORA TENHO CERTEZA QUE É VC MESMO, SEU SACANA. FN = FELICIANO NÓBREGA. O CARA QUE SABE FUGIR DE TODAS AS SITUAÇÕES COMPLICADAS DA VIDA. MAS FICA TRANQÜILO, EU E MALU JÁ NOS SEPARAMOS. ELA VIVIA FALANDO QUE VC ERA O MÁXIMO, QUE NUNCA IA ENCONTRAR ALGUÉM COMO FELICIANO NÓBREGA. APESAR DA SUA IMATURIDADE, VC JÁ ERA UM GARANHÃO NAQUELE TEMPO... ELA TANTO FALAVA DE VC QUE UM DIA ME ENCHI O SACO E MANDEI ELA PROCURAR A SUA TURMA, AQUELA DA OITAVA SÉRIE DO BOM PASTOR. EM SÍNTESE, MESMO A DISTÂNCIA FN FOI O RESPONSÁVEL PELA NOSSA SEPARAÇÃO”
Não tive outro jeito senão bloquear o tal do Jérson com Jota. Atitude antidemocrática, eu sei, mas legítima defesa.
Não queria, porém devo admitir que fiquei pensando: “E essa Malu...? Será???”
Não há ética que sobreviva à máxima brasiliana: “Se eu ou você estivéssemos lá, teríamos feito a mesma coisa”. Este é um dos pilares do perdão incondicional, motivado por um sentimento de culpa indefinido, difuso, muito bem manejado por alguns, que continuam fazendo das suas.
A propósito, a história está aí para provar: não há instrumento de dominação mais poderoso do que a inseminação da culpa. Inseminação ou inoculação? O que seria melhor?
“Deus, Pátria, Família...” onde iriam parar sem o milenar sentimento de culpa? A vertente da consciência pressupõe a liberdade, que, para sobreviver, precisa eliminar a culpa e os acusadores que a todos subjugam e aprisionam. Abaixo os carcereiros! Viva a liberdade!
Ontem, tava mijando no banheiro do shopping, eis que entra uma figura que era a cara do chefão Bishop, ou Bispo, fica à sua escolha. Explico melhor: fica à sua escolha o nome do cara, não o fato de ter ele entrado ou não no recinto, ok? Dito isto, respondo à sua pergunta que é: “Como pôde reconhecer a cara de alguém que é apenas um personagem, criado pela sua cabeça doentia?” Simples, digo eu, personagens têm cara, sabia? E não só cara, como, dependendo das circunstâncias, têm roupa, sapatos, cinismos, essas coisas que a gente pensa ao ver alguém, mesmo que ele não exista. Agora, o seguinte: cabeça doentia é o caralho, ok?
Após esse breve intervalo esclarecedor, continuamos com o acontecido: o sujeito que tinha a cara do Bishop também era grande, gordo e mal-encarado. Mesmo no banheiro, estava sempre acompanhado por um sujeito magro, de olhos baixos, que prestava disfarçadamente atenção em tudo, em resumo, uma dessas pessoas que parecem mais uma cobra do que um ser humano. Uma hora dei sorte e consegui observar seus olhos. Não havia margem para dúvidas: o sujeito estava armado e isso explicava sua “superioridade”, até mesmo em relação ao próprio Bispo.
(Um rápido parêntese para responder a uma pergunta técnica: “Como é que se sabe quando um sujeito está armado?” Simples... Como lhes disse, basta observar os olhos do candidato a assassino. Em geral, olham para os lados e para baixo, são pessoas difíceis de encarar, mas uma vez que você consegue, ainda que de relance, descobre a tal “superioridade”, entenderam?)
Resolvi testar meus reflexos e fui atrás do “capanga”, que por sua vez saiu atrás do Bishop de carne-e-osso. Vi quando os dois pararam, um ao lado do outro, no ponto de táxi. O que era parecido com Bishop segurou o braço do que era parecido com um capanga e apontou para o outro lado da rua, bem na hora que aparecia um velho conhecido, Joel, um informante com cara de cidadão-acima-de-qualquer-suspeita. 
Não sei se era o informante o cara que o capanga tinha de matar, seguindo instruções do Bishop, o que eu sei é que alguma coisa de muito grave estava para acontecer. Bishop e o informante foram andando na frente, em direção à praça do metrô. O capanga ia um pouco atrás. Eu, do outro lado da rua, cheguei a pensar que Bishop e o capanga seriam mortos em breve, com dois tiros certeiros, sem que o capanga sequer tirasse a arma do bolso da jaqueta.
Mas não foi o que aconteceu, nem de longe... Para sorte de todos, o capanga foi para a direita, Bishop para a esquerda, enquanto o informante foi direto para as minhas garras, não teve como escapar. Segurei o bicho pelo braço, como nos velhos tempos, e, antes de descer as escadas da estação do metrô, fiquei sabendo que o cara parecido com Bishop contratara o capanga com cara de bom sujeito, não como segurança, nem como assassino profissional, talvez como peça chave de uma vingança que o informante não sabia direito qual era. “E você? Faz o quê nessa história?”, perguntei eu. O informante limitou-se a abrir os braços como a dizer: “Não me restava outra alternativa...”
Aquilo podia não dar em nada, mas estava começando a me interessar Por Joel, fiquei sabendo que a filha de Bishop tinha sido estupradinha, ou melhor, que a filhinha de Bishop tinha sido estuprada. Filhinha era o modo de dizer, pois a moça, superdotada fisicamente falando, já estava com seus 23 pra 24 anos, Bishop é que insistia em tratá-la como um bebê. Perguntei a Joel, o informante, em que circunstâncias o estupro acontecera e se a filha de Bishop havia confirmado a agressão. Joel ficou um tempo me olhando com aquela cara de “não-sei-do-que-o-senhor-está-falando”, para em seguida devolver a pergunta: “Que Bishop? Não conheço Bishop nenhum, porra. O pai da menina se chama ...” E disse um nome que soou como Wílson, ou Mílton ou Nílson, não deu pra ouvir direito porque bem nessa hora passava um caminhão de lixo, seguido por um ônibus e dezenas de carros atrás dele, que buzinavam sem parar, o barulho era infernal. Deixei barato, não ia mesmo chamar o sujeito de Gílson ou de Hílton... Pra mim, ele continuaria a ser o bom e velho Bishop, para desespero de Joel, que me olhava como se eu fosse um louco mal-informado.
Não me despedi nem marquei nada com Joel, sabia onde e quando poderia encontrá-lo. Quanto aos outros dois, creio que já possuíam problemas demais, não precisavam da minha “ajuda”. Cheguei até mesmo a sentir uma certa pena do velho Bishop, o real, aquele que se chamava Nélson ou Nílson e que era pai da exuberante. Minha compaixão talvez me levasse a mudar o final daquela história, lembram-se? Pensei em impedir que o pobre gângster viesse a morrer nas garras de um robot ingrato e de maus chips, o canalha tecnológico Asimov III,  mas isso ia ficar para depois.
Joel, o informante, morava há anos no mesmo quarto nos fundos de uma pensão decadente, dessas que a dona é, a um só tempo, porteira, arrumadeira, cozinheira e, nas horas vagas, se finge  de   puta (tá mais pra cafetina falida). Foi no boteco em frente a essa pensão que eu o reencontrei, no momento em que sorvia, em grandes goles, um copo de café-com-leite, mais leite  que café. Eram umas oito, oito e meia da manhã, talvez por isso, ou talvez para se certificar de que o mundo era mesmo tão cruel quanto diziam, esfregou os olhos ao dar de cara comigo. Apenas sorri, aquele risinho tipo “sou eu mesmo, cara... pensou que ia se livrar assim tão facilmente de um pesadelo?”,  o que não deixava de ser uma crueldade complementar.
Com o tempo de estrada que eu acumulara, dava pra dizer que a resistência de uma pessoa tem limites proporcionais à força aparente de seu inimigo. Um informante se borra de medo por dois motivos distintos, muitas vezes opostos: em primeiro lugar, tem medo de perder o status de “inestimável colaborador” dos tiras; em segundo lugar, pensa que a qualquer momento um bandido igual a ele, que confiou na sua fidelidade, pode vir a detoná-lo, literalmente, estilhaçando cada pedaço de sua imunda covardia. Como se vê, não é fácil encarar a profissão.
Dito isto, dá pra concluir que Joel pretendia escapar das minhas garras o mais breve possível, talvez naquele mesmo dia. Por essa razão, eu deveria extrair tudo que me interessava para apertar Bishop e neutralizar seu capanga. Como bem lembrava Glenda, estava mais do que na hora de levantar algum para fazer frente às despesas do mês. Meu plano? Por incrível que pareça eram dois, um contrário ao outro: primeiro, descobrir o paradeiro do tal estuprador e vender a informação a Bishop, passando a perna em Joel; segundo, contar ao estuprador que o pai da moça queria matá-lo e vender proteção, lembrando a ele que o capanga não estava para brincadeiras. Tudo isso, é claro, sem me comprometer além de um limite razoável.
Tanto na primeira hipótese quanto na segunda eu não estaria cometendo crime algum, portanto não colocaria em risco meu prestígio de solucionador de casos impossíveis, nem a minha cobiçada licença de “private”.
Joel, que era um cagão daqueles,  tornou as coisas ainda mais fáceis para mim, ao perguntar se eu não aceitaria a “missão” que Genílton (era esse o verdadeiro nome do gordo Bishop) tinha a ele destinado. O cara era podre de rico e os adiantamentos viriam conforme chegassem  informações verdadeiras. Por que diabos Joel estava disposto a sair do caso? Boa pergunta, boa pergunta... Mas é fácil respondê-la. Como bom informante, Joel estava achando que ia “sobrar” pra ele. Entregando o trabalho para mim, poderia se ver livre de todos os riscos e ainda levar uma grana a título de gorjeta (Joel sabia que eu nunca fui pão-duro, muito pelo contrário, tinha era fama de mão-aberta). Liguei para Glenda e marquei uma entrevista nossa com o informante. Minha secretária era organizada e superminuciosa, ideal para um caso como este, em que não se pode deixar passar nenhum detalhe, por mais insignificante que seja. (Não pensem vocês que eu esqueci o e-mail de Leo. Acontece que não sou chegado nessa de julgar antes de estudar os autos e ouvir as partes).
Foi a partir dessa entrevista que ficamos sabendo que não tinha havido estupro algum. Na verdade, Helena, a filha de Bishop, que nem   legítima era, elegeu como seu guru o tal sujeito, vulgarmente conhecido como Ferreirinha, apesar do nome, reverenciado como guia espiritual, profeta, purificador  de almas perdidas, uma dessas maluquices fora de época, muito comum no tempo dos hippies. Foi ela quem exigiu que o guru a possuísse em cima do capô do seu próprio Mitsubishi vermelho, diante de milhões, talvez bilhões de olhos, como sempre ávidos por sexo explícito. A cena, que durou mais de meia-hora, aconteceu numa praia do Caribe e foi transmitida em tempo real para o mundo inteiro. O vídeo, é claro, fez o maior sucesso, em grande parte devido ao corpo escultural de Helena e às dimensões avantajadas do membro viril de seu guru. O informante Joel achava que o problema de Bishop (ou Genílton, ou ainda Tom para os íntimos) não tinha sido o ato em si, nem uma suposta desmoralização universal de sua filha adotiva. O que o deixou louco de raiva foi a venda clandestina de cenas preparatórias, as famosas preliminares, que rendeu milhões de dólares no câmbio negro e que Ferreirinha acabou embolsando sem prestar contas. Em resumo, a grana, a bufunfa, o carvão.... mais uma vez era o que estava por trás de tudo. Só por isso Bishop e seu fiel capanga corriam o mundo atrás de um profeta superdotado. Cheguei a soltar um “puta-que-o-pariu”, logo recolhido diante do olhar de Glenda, que me puxava de volta para os bons negócios que tínhamos pela frente.
Joel ainda fez questão de acrescentar que os problemas de Helena, ao que parece, tinham tudo a ver com as atitudes de Tom, que não era lá muito paternal com ela, e isso teria traumatizado a menina. Glenda, que adorava exercitar sua capacidade de chocar as pessoas, indo “direto ao ponto”, perguntou se o pai abusava da filha. Joel disse que não era bem isso: “Tom só pensa em ganhar cada vez mais. Apesar de rico, o mafioso sempre explorou a filha adotiva. É uma espécie de cafetão bom sujeito”. “Bom sujeito, como?”, perguntei. Joel contou que o filho-da-puta nunca deixou Leninha passar fome, nem frio, dava mesada e sempre comprava roupas de grife para ela, enfim, fazia todas as vontades na medida do possível. O problema é que Helena jamais podia recusar uma “missão”, fosse qual fosse, nem as mais sórdidas.  
Nessa hora, concluí que o único nessa história que trabalhava honestamente, cumprindo à risca suas obrigações, era o capanga, que não se envolvia nos assuntos familiares, nem abria a boca para emitir juízo de qualquer espécie. vejam só.
De cara, Glenda quis saber qual era o verdadeiro nome do sicário. “Sicário”, obviamente, não pertencia ao escasso universo linguístico de Joel, de modo que eu tive de explicar que sicário era sinônimo de capanga. “Sinônimo” também não fazia parte do pequeno grupo de palavras que o informante conhecia, mas como era um cara esperto concluiu que Glenda queria saber o nome do pistoleiro. Primeiro respondeu que não sabia, depois disse que não lembrava, aí eu dei um grito: “Porra, não tô te entendendo, Joel...!”  O informante, que não era muito de resistir a pressões, rendeu-se: “Tá bom... o nome dele é Dinho” Aí foi a vez de Glenda pular no pescoço de Joel: “Dinho? Que Dinho? Armandinho, Geraldinho, Orlandinho...?”, perguntou com ares de detetive-chefe do quarto-distrito. Joel me olhou com uma cara de quem diz: “Essa mulher é louca ou o quê?” Eu entrei com o meu tradicional “deixa pra lá, Glenda...” e em seguida perguntei a Joel se o tal do Dinho também era maleável, mas a palavra, é claro, mais uma vez não pertencia ao vocabulário do informante, essa raça anda cada dia mais inculta, de modo que foi a vez de Glenda ser objetiva: “Queremos saber se ele aceita uma grana pra passar a perna no tal do Bishop?” Joel arregalou os olhos e esteve a ponto de explodir: “Que Bishop, porra? Vocês tão a fim de me enlouquecer?”, mas eu fui mais rápido e emendei: “Tom, Tom... Genílton. O capanga aceita uma grana pra deixar o Genílton a pé?”
Glenda era aquele tipo de mulher que depois que colocasse um pezinho no saguão do aeroporto todos podiam estar certos de que ia viajar, e de primeira-classe. Não demorou para descobrir que havia muito mais naquele caso do que um simples desejo de vingança de um tal Bishop, pai de uma linda jovem de nome Helena, mais conhecida como Leninha. Por pouco não toma conta de tudo (estou falando de Glenda, ok?)
Só pra resumir e desatar o nó da estória: tá certo que Lena não tinha sido estuprada, mas o sujeito a quem Bishop acusava de traição era, nada mais nada menos, do que Wallace Júnior, primogênito do desembargador Wallace Ferreira (claro que vem daí o apelido “Ferreirinha” para o seu filho), conhecido por expedir, na calada da noite, alvarás de soltura beneficiando traficantes famosos, em troca de módicas doações à ong MPP – Magistrados Pela Paz, da qual o velho e corrupto Wallace era o fundador e presidente vitalício, deu pra entender ou tem armação demais nessa história? Wallace Jr, mais conhecido como JR (fala-se “Jota Erre” e não Júnior), réu em vários processos arquivados sem as devidas conclusões, não chegava a mencionar o pai para se proteger. Nem era necessário, todos sabiam que se algum desavisado encostasse um dedo em JR teria que se entender com o velho Wallace, e daquele mato não saía coelho.
(Coelho, rato, piranha... Será que tem bicho demais nessa história?)
Olhei para Glenda, Glenda olhou para mim, nós dois olhamos para Joel, que disfarçava, mal e porcamente, olhando para o teto de madeira envernizada. Genílton Bishop versus Wallace Ferreira. Era briga de cachorro grande, por isso o informante tava louco pra pular fora.
Diante do exposto e contraposto, Glenda e eu chegamos à mesma conclusão: tudo indicava que a corda ia acabar arrebentando no lado do pobre Dinho: Armandinho, Geraldinho, Orlandinho... pouco importa. Se ele errasse o tiro ou deixasse alguma pista, Bishop não teria dúvidas em afirmar que nunca tinha visto o tal delinquente em toda a sua honrada vida; o desembargador e presidente vitalício da MPP ia aceitar a explicação de bom grado, desde que ninguém ousasse impedir a “lição” que estavam preparando para o tal capanga de nome “fodidinho” ou qualquer coisa parecida.
À primeira vista, as coisas tinham escapado completamente ao nosso controle, se é que em algum momento ele existiu. De repente, Joel parecia ter percebido tudo que estava acontecendo, tanto que deu aquele risinho debochado que todo informante sabe mastigar na hora certa. Eu olhei para Glenda e meus olhos fumegavam, como a dizer: “Vou matar esse cara de porrada e vai ser agora”. Glenda, sem dúvida, entendeu a mensagem, pois me retribuiu com aquele olhar de quem pergunta: “Depois, quando você estiver em cana, como é que vamos pagar o aluguel do escritório que vence depois de amanhã?”
Era a maldita realidade me chamando de volta ao mundo luminoso dos negócios honestos...
Claro que me deu vontade de dizer: “Isso, a gente vê mais tarde, meu anjinho.” Mas, pela cara que fazia, dava pra perceber que Glenda não estava a fim de jogar a toalha, nem ao menos o guardanapo.
No dia seguinte, logo de manhã, Glenda apareceu no escritório como se não dormisse há uma semana. Olheiras, palidez, até um certo tremor nas mãos, tudo isso me fez perguntar: “E aí, Glenda, encontrou afinal o cara que ia tirar você dessa vida de secretária de um detetive-particular, particularmente falido?” Claro que todas estas palavras passaram pela minha cabeça, mas, na realidade,  “E aí, Glenda?” foi só o que chegou à minha boca.
O problema não foi a resposta que ela deu, algo como: “ Tudo bem...E você?”, mas sim a cara que ela tava. Eu não podia dizer que era uma cara de felicidade, mas tinha certeza que de arrependimento ou frustração também não era. Lembrei de Perez, de suas insinuações incompletas. Aquilo me intrigou a ponto de ter que repetir baixinho dentro da minha própria cabeça: “Glenda é apenas a sua secretária, estúpido. Siga os conselhos de seu velho pai e jamais se envolva com quem está abaixo ou acima de você”. O diabo é que quando você se pega repetindo coisas desse tipo é porque já aconteceu, é ou não é? “Abaixo ou acima de você, jamais se envolva...” Curiosa essa maneira de olhar as coisas sob o ângulo das posições.
Sempre me senti fascinado pelo jeito sincero e simplista que, desde que nos conhecemos, era a marca registrada de Glenda. Só não sabia se tinha ou não o direito de sentir ciúmes, isso é que era o diabo. Outra coisa que eu não sabia era se Glenda estava abaixo ou acima de mim, digo na escala hierárquica que deveria existir na cabeça de meu pai.
“Como passou a noite, Glenda?”, eu perguntei. Apenas um olhar me atirou em resposta, um olhar morto, desprezível, cheio de enigmas que eu não queria desvendar, não naquela hora, como diria santo Agostinho.
Feito isso, abriu a boca, como quem está morta de sono, me deu um envelope e disse: “É para o aluguel”. Foi aí que eu tive a certeza de que uma puta tem algo dentro dela que as mulheres normais não ousam possuir: uma feminilidade, um jeito de se entregar sem cobranças ou arrependimentos. “Uma puta é uma puta...”, disse eu com os botões enferrujados de meu casaco jeans.
No início, estava certo de que Glenda tinha transado com a porra do desembargador Wallace em troca da grana do aluguel. Depois, fiquei na dúvida. Mais tarde, descobri, não me perguntem como, que Glenda na verdade tinha transado com uma puta de nome Meire, na frente do desembargador, em troca de um “incentivo” para o aluguel. Se eu fiquei puto? Claro que não. Achei até interessante: Glenda, a minha secretária, e Meire, minha puta curinga, as duas se beijando, se abraçando, fazendo coisas que só uma mulher sabe fazer com a outra. Foi uma grata surpresa saber que Glenda e Meire tinham lá suas qualidades polivalentes, poliglotas, neurolinguísticas, sem esquecer a magia da digitação em áreas úmidas e sedutoras, em nada semelhantes aos nossos pré-históricos teclados. Só o que me incomodava eram os olhos do desembargador alisando o corpo das duas, penetrando, invadindo, capturando um gozo que não lhe pertencia. “Cabrón”, disse eu. Glenda perguntou: “O quê?” E eu respondi: “Esquece...” Não existe uma só palavra com mais utilidade do que essa. Uma vez pronunciada, “esquece” tem a força de um ponto final.
Contudo, vocês não aceitam a sugestão para ignorar o modo como eu fiquei sabendo de tudo isso, não é? Insistem que eu lhes conte em detalhes, até por uma questão de lógica, correto? Pois bem, aí vai: foi a própria Glenda quem me narrou o acontecido. Pior do que isso, utilizou um microgravador para registrar os comandos que Wallace Ferreira proferia durante o ato. Se eu ouvi a fita? Mas é claro que ouvi. O que ele dizia? Por favor, tirem as crianças da frente da tela, ou do livro, ou das palavras em 3D, soltas no espaço. Eram ordens objetivas, comandos específicos, coisas como: “Chupa ali... Agora aperta... Enfia dois dedos... Tira...” E as duas lá, obedientes como freiras no convento, diante da madre-superiora. Depois, suponho eu, houve um orgasmo múltiplo, a julgar pelos sons simultaneamente emitidos. O desembargador bufava, dizia palavrões cabeludos, xingava as duas; Glenda e Meire gemiam e suspiravam, em determinado momento deixaram escapar um grito agudo, mas não de terror, penso que de enorme prazer, um grito caudaloso, continuado, que mais adiante se transformava em soluço e choro convulsivo.
Glenda desligou o gravador e eu perguntei, só para confirmar minha teoria: “Vocês três gozaram juntos?” Glenda, enigmática como sempre, respondeu: “Chefe, não quero mais falar sobre isso... É constrangedor para todos nós. Felizmente o canalha agora está em minhas mãos”, completou, referindo-se ao estrago que uma fita daquelas poderia produzir.
Eu sei que vocês devem estar pensando como eu: “Será que Glenda estava mesmo com o desembargador em suas mãos? Ou poderia ser o contrário: Wallace é quem dominava Glenda, depois de ter gravado a transa toda em vídeo?” Muito pior seria se eu viesse a descobrir que Wallace, Glenda e Meire haviam selado um pacto para me chantagear e me obrigar a defender o filho do desembargador contra Tom Bishop e seu fiel sicário, o honestíssimo Dinho. A coisa tava cada vez mais engraçada...
Dois dias depois, com o aluguel já devidamente quitado, recebo a ilustre visita de um oficial de justiça aposentado, que prestava serviços particulares para o desembargador Wallace. Não era uma intimaçáo, é claro, apenas um “amável” convite, escrito à mão, dentro de um envelope com o timbre do Tribunal. O homem queria me ver em seu gabinete no final da tarde. Fui, desarmado, mas não no espírito. Tava preparado para ouvir poucas e boas: uma chantagem, algumas ameaças, pensei até mesmo em encontrar uma Beretta prateada em cima da mesa do magistrado. Para minha surpresa, Wallace foi ainda mais educado em pessoa do que no convite. Ofereceu café, chá, torradinha, bolachinha... (e eu ali, de olho no Grant’s Twelve Years). Depois, com uma voz bem calma e falando pausadamente perguntou quanto eu queria pra deixar seu filho em paz. Eu, que pretendia ganhar tempo até entender a situação, perguntei: “Que filho? O Ferreirinha?” Wallace respondeu: “Ele mesmo... Os outros estão limpos.” Na verdade, eu sabia que Ferreirinha era o filho caçula dos cinco que o desembargador reconhecera, embora nenhum deles estivesse propriamente “limpo”, coisa difícil naquela família. Chutei: “Uns cinco mil, tá bom?” O desembargador abriu a gaveta da mesinha ao lado, tirou de lá um envelope de cor parda e disse: “Leve dez. Cinco para você, cinco para as duas meninas, elas que abram uma conta conjunta...”, e deu uma mega-gargalhada, dessas de se ouvir a quatro quadras de distância. A vida tem coisas assim, quando você menos espera, o inimigo se aproxima e te dá o beijo da morte, em espécie.
Peguei o envelope com todo cuidado, como quem segura uma carta-bomba. Me levantei e, antes de sair, resolvi acrescentar mais uma reivindicação: “Exigimos também que o pistoleiro de nome Dinho seja poupado...” Wallace me olhou com aqueles olhos de quem recebe uma lista de exigências da comissão de greve ou, pior ainda, uma relação de palestinos presos que devem ser soltos em troca da vida de um soldado israelense seqüestrado. Sua resposta foi uma pérola da negociação política de quem está em desvantagem: “Difícil, aquele lá é incorruptível. Não aceita sequer um cafezinho pago pelo inimigo. Fidelidade canina, canina...”, o que me levou a concluir que em breve o tal do Dinho amanheceria com a boca cheia de formigas, ou de baratas, ou de ratos.... chega de tanto bicho repugnante. Nada mais havia a fazer.
Contado assim, até parece que o desembargador Wallace Ferreira era um sujeito calmo e de boa paz, desses que se dispõem a pagar o que for preciso para não se aborrecer, concordam? Aí é que está o busílis da questão, como diriam nossos cultos antepassados. Na verdade, o homem era tinhoso, traiçoeiro, enigmático. Costumava contar com convicção o que jamais iria acontecer, ao mesmo tempo em que a verdade era sempre camuflada, disfarçada, confundida em meio a artimanhas diabólicas. Tudo isso era tão bem feito que nunca na vida conseguiram encostá-lo em qualquer parede, nem mesmo nas divisórias que limitavam espaço e poder nos gabinetes do Tribunal.
“Quem sabe, náo é melhor prendê-lo para sua própria salvação?”, disse eu. O douto magistrado não pensou duas vezes antes de sentenciar: “Se ele for preso, não dorme uma noite na cadeia. Amanhece furado, enforcado, massa de carne e sangue, triturado numa briga de quadrilhas rivais. O homem tá marcado,  dessa ele não escapa, quem mandou...?” Aquilo me revirou as tripas, mas ao contrário do que acontece com o comum das pessoas, não me tornei agressivo, nem perdi a cabeça, graças aos deuses. Apenas atirei uma isca: “E se alguém pagar pela segurança de Osvaldinho?” "Que Osvaldinho? O nome dele é Valdemar, Dinho é codinome do bandido. Dizem que Vadinho era apelido de criança", respondeu sua excelência. Repeti a pergunta: "E se alguém pagar pela segurança do infeliz?" Os olhos do desembargador Wallace voltaram a brilhar, vasculhando tudo ao seu redor, como os fachos de luz da 20th Century Fox ou, melhor dizendo, como a fachada luminosa de um cassino em Las Vegas. “Quanto?”, disse ele. Sentindo que a bola voltava para a zona morta, onde ninguém ganha de ninguém, lancei a semente, como quem arrisca um arremesso de três pontos: “Quem sabe o Dinho não leva a mega-sena? Corre amanhã...” Disse isso e saí sem olhar pra trás. Antes de alcançar o solene corredor do Templo da Justiça, a voz de barítono de Wallace ricocheteou nas minhas costas: “Se entrar com os recursos dentro do prazo, a situação pode mudar de figura.” Até nisso o sacana era bom: o rei dos disfarces no circo da hipocrisia.
Mal entrei no escritório, dei de cara com a cara de Glenda, meio esquiva. Esvaziava umas gavetas, talvez prestes a se despedir. Mostrei para ela o envelope que Wallace me entregara. Disse: “Pode ser uma carta-bomba ou dez paus. Metade é sua e de Meire, da bomba ou da grana. É pegar ou largar”. Glenda pegou, é claro. Abriu, sorriu, contou... Por pouco não fica também com a minha parte.
Ficamos uns dias ignorando um ao outro. Depois, acho que foi na quarta-feira, como trabalhávamos no mesmo espaço, minúsculo e sufocante, resolvi pedir um copo d’água a Glenda. Ela me olhou com aquela indefectível cara de: “Vá buscar você mesmo, seu detetivezinho falido...”, mas foi. Trouxe a água, eu agradeci e perguntei o que tinha feito com a sua parte do suborno. Ela não entendeu e eu tive que explicar: “Suborno, aquele dinheiro que o desembargador liberou em troca do nosso silêncio”. Glenda respondeu: “Ah... gastei quase tudo em roupa, tava precisando. Parece que Meire comprou roupinhas de bebê...” E ficamos assim, só nisso. Havia uma lista de mais de quinhentas e doze perguntas que eu queria fazer a Glenda, mas concluí que não era a hora. Quando se tratava de encostar Glenda no canto do ringue, sempre achava que não era a hora, de modo que perguntei à minha própria cabeça torta: “Você tá a fim de cutucar esse vespeiro, seu maluco?” Como era de se esperar, a resposta que eu mesmo me dei foi monossilábica: “Esquece isso...”
Caminhei até a lan, abri minha caixa postal. Entre dezenas de soluções milagrosas para o aumento do pênis e comprovadas teorias sobre o poder dos feronômios para enlouquecer as mulheres, lá estava a mensagem de Perez, cercada de mistérios e travas de segurança. Sem maiores detalhes, Leo pedia que eu verificasse o número do telefone público próximo à lan, depois o enviasse por e-mail e aguardasse a chamada junto ao orelhão.
Fiz o que pediu (ou ordenou). Em pouco tempo o telefone público tocou e eu atendi: “Porra, Leo.... Pra que tanto mistério?” Não me respondeu, só disse que havia uma apólice de seguro de vida para mim, tendo como beneficiária Glenda Gutierrez. Perguntei: “Que apólice? Que seguro?” Perez concluiu secamente: “São alguns milhões... bem mais do que você vale no mercado”, e deu uma sonora gargalhada, como se dizia em outros tempos.
Na manhã seguinte acordei com a voz fininha de Glenda ao telefone. Queria saber se eu tinha alguma coisa contra o desembargador Wallace e sua prole. Por pouco não a mandei à merda, mas preferi silenciar e esperar para ver o que vinha pela frente. Como não respondi, Glenda ficou meio puta da vida: “Vai ficar aí calado? Eu só queria te dizer que ligaram aqui pra casa de madrugada. Um sujeito sinistro, com uma voz daquelas de filme de terror. A pergunta que ele me fez foi a mesma que eu te fiz agora, se você tem alguma coisa contra o desembargador Wallace e sua prole... Por falar nisso, o que é  prole? Nunca ouvi falar nessa palavra.” Preferi contar até dez e respondi que prole são os filhos, os descendentes de alguém. Ainda completei com um exemplo ilustrativo: “Proletário é aquele que não possui nenhum bem além de seus filhos, da sua prole... entendeu, Glenda?” Deve ter entendido, só que não me disse nada. Bateu com o telefone na minha cara, antes que eu pudesse me despedir. Fiquei falando sozinho: “Te vejo mais tarde... Um beijo”. Sei...
“O que é que há com você? Tá me olhando com essa cara por causa de quê?”, Glenda perguntou pouco depois de pegar um copo d’água e sentar na cadeira em frente à minha mesa. A vontade que me deu foi de explodir: “Que porra de seguro de vida é esse que fizeram para mim em seu benefício? Tão querendo me matar?” Claro que não foi isso que eu falei... Naquela altura do campeonato, depois de tudo que Leo Perez me contara, o importante era manter a calma e descobrir de que lado estava a verdade ou, pelo menos, um pedaço dela. “Cara? Que cara?”, disse eu. Glenda ficou um tempo me esquadrinhando, bichinho desconfiado aquele. Depois, balançou a cabeça e foi emburrada para sua, digamos, mesa de trabalho ler os crimes da véspera no Diário Metropolitano.
Não demorou nem dez minutos e lá estava ela novamente sentada na cadeira dos clientes em frente ao que poderíamos chamar de “minha mesa de trabalho”, se mexendo de um lado pro outro, como um pequeno hamster em sua gaiola. Glenda possuía um raciocínio rápido e, mais do que isso, uma intuição cavalar. Deu pra perceber que algo para ela estava errado e, portanto, não descansaria até descobrir o que era. Sorte minha que há muitos e muitos anos treinava para me manter impassível diante da ansiedade alheia. Costumava dizer a mim mesmo, olhando no espelho todos os dias pela manhã, que esta era uma das poucas qualidades que ainda me mantinham vivo na profissão. 
Talvez para quebrar o gelo, Glenda começou a resumir o que achou de mais interessante no Diário: “Um juiz teria sido o suposto intermediário de um suposto crime, supostamente arquitetado por um desembargador e executado por um suposto policial civil, que se encontraria preso nas dependências da delegacia onde está supostamente lotado”. Argumentei, meio sem convicção, que ninguém é culpado até que a sentença transite em julgado. “Graças a Deus dispomos de uma Justiça diligente, rápida e isenta, capaz de garantir que os maus cidadãos serão punidos e os bons, protegidos. Alah esteja convosco, patrãozinho...”, disse ela me provocando, certamente para ver se eu reagiria de alguma forma.
Lembrei da pergunta que Perez me fez: “Você está ou não está comendo a secretária?”, acho que foi mais ou menos isso que ele escreveu no email. Como era de se esperar, a resposta que dei à minha própria cabeça foi mais ou menos óbvia: um dia, não muito distante, percebi que amava Glenda mais do que desejava.
(Mentira n° 1: não foi um dia; foi uma noite. Uma inconveniente madrugada, na melhor das hipóteses.
Mentira n° 2: acho que nunca a desejei tanto quanto queria; nem a quis tanto quanto a desejei).
O fato é que Mrs. Glenda virou-se para mim e perguntou “olho-no-olho”: “Por que diabos vamos ter que proteger o infeliz desse pistoleiro que até agora não matou ninguém?” E eu não sabia o que responder, muito menos o que perguntar.
Apenas disfarcei com um simples olhar, para o outro lado da rua, onde podíamos avistar  o velho Bishop conversando animadamente com o filho do desembargador Wallace, o inominável Ferreirinha.
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Ontem, tarde da noite ou altas madrugadas, estava eu dormindo inocentemente quando Danilo Alvim, o porteiro-substituto que tem cara e nome de animador de programa de auditório dos anos 50, interfonou para dizer que uma tal de Glenda estava lá embaixo e queria subir, perguntou se deixava. Eu respondi algo como: “Se ela quer correr o risco, deixa...” Ainda ouvi Danilo repetir para Glenda o que eu dissera para ele, Glenda respondeu: “Risco? Que risco?” O solícito porteiro berrou no interfone: “Ela quer saber que risco é esse...” E eu expliquei em poucas palavras que era o risco de Meire Mariana chegar de repente e dar de cara com ela aqui. Novamente Danilo resumiu para Glenda e ela prontamente respondeu: “Diga a ele que eu mesma contei a Mari que tava vindo pra cá. Tô subindo...”
Demorou um século. Cheguei a imaginar que o porteiro-substituto tinha agarrado a pobre Glenda no elevador de serviço, disse “pobre” pensando no tamanho descomunal das mãos de Danilo, no seu queixo quadrado de boxeur, na cara de tarado de plantão que fazia toda vez que entrava no prédio uma mulher, digamos, jeitosinha. Mas ninguém agarrou ninguém, mesmo porque Glenda sabia se defender.
Não precisou tocar a campainha porque eu já tinha deixado a porta aberta. Entrou, deu uma daquelas olhadas femininas, capaz de reparar em tudo, ou quase tudo que não interessava a ela. Sentou no banquinho da cozinha, depois, parece que tirou um cigarro, mas acho que nem acendou, não me lembro direito. Perguntou como eu tinha me acostumado a passar as noites sozinho, enquanto Mari... Respondi que era o trabalho de Mari, cada um tem o seu. Ela balançou a cabeça como quem pensa: “Que desperdício...” e foi direto ao ponto, como era do seu estilo. Contou que Perez estava de volta, mas ainda não em pessoa. Fiquei só ouvindo ela falar, enquanto processava lentamente tudo que Perez dissera sobre Glenda e vice-versa. Em resumo, Leo mandara um emissário, ou melhor, uma emissária, até a casa de Glenda. “Agora?”, perguntei desconfiado. “Agorinha mesmo, disse ela. Não faz nem meia-hora”. A mensagem era truncada, a moça disse que Leo tivera o seu carro clonado e esse clone se envolveu em um assalto seguido por um acidente na fronteira do Brasil com Buenos Aires. Claro que eu ri, como você deve estar rindo, antes de explicar a Glenda que Buenos Aires era uma cidade, capital da Argentina. “A Argentina é que faz fronteira com o Brasil...”, ensinei. Glenda me olhou com aquela cara de quem não gosta de ser interrompida e encerrou o assunto com um “Que seja...Grandes coisas que você tá me contando”, e ficou por isso mesmo.
Eu ainda quis saber se o assalto e o acidente tinham acontecido do lado de cá ou do lado de lá da fronteira, mas Glenda não só não sabia como parecia não dar a menor importância a isso. Tudo o que disse para encerrar a inesperada visita foi: “Parece que vamos ficar sem nosso sócio antenado e farejador, talvez por uns meses”. Não era necessário muito esforço mental para deduzir que as dívidas rondavam novamente a linda cabecinha de Glenda, tão linda que eu fiquei olhando fixamente para ela, talvez por uns segundos, ou minutos, horas acho que não, até que a voz de Mariana me chamou de volta à torpe realidade das manhãs sombrias: “O que está aconteceindo por aqui, posso saber?”, disse ela com seu indefectível sotaque ítalo-paulistano. Glenda se apressou em explicar que já estava de saída. Eu voltei pra cama, enquanto Mari, emburrada, foi preparar uma xícara de Toddy, ou Nescau, um veneno desses...
Fiquei rolando na cama sem descobrir por que diabos Glenda apareceu àquela hora imprópria só pra me contar novidades sem importância. Outra coisa que não se encaixava: se Mariana sabia que Glenda ia me procurar, qual a razão de sua cara emburrada e do aparente ciúme? Mais tarde, como dizem por aí, liguei o nome à pessoa. Descobri que mulheres espertas que resolvem trair,  antes induzem o cara a um erro, falso ou verdadeiro, que justifique para elas mesmas o ato da traição. Tipo: “amor com amor se paga, você me traiu primeiro, agora é a minha vez...” Mari era uma puta, tá certo, mas nem por isso deixava de se apaixonar de tempos em tempos. Traição pra ela era isso, se apaixonar por alguém. Podia até não transar, era o que menos importava, mas se estivesse apaixonada aí sim estaria traindo, logo a mim, que nunca fui fiel a ninguém por mais de quinze minutos, que é o tempo que eu levo pra mostrar meu verdadeiro e eterno amor.
Levou uns dias até eu descobrir por quem Mari, Meire, Mariana, Ane... estaria apaixonada. Lembrei que o desembargador Wallace Ferreira chegou a mandar umas flores vermelhas, mas concluí que não era o tipo por quem Mari se apaixonaria. Depois, resolvi perguntar a Glenda, não propriamente perguntar, mas sondar, jogar uns verdes... Glenda no início se negou a fornecer as pistas, mas, talvez porque tivesse outros interesses, acabou contando. Se eu disser, vocês não vão acreditar, sei que não... Vai parecer absurdo, mas fazer o quê? A verdade em primo posto... O nome dele é, por mais incrível que pareça, Leo Perez, o sacana do sócio antenado, farejador de primeira, mas ao mesmo tempo um hábil armador de encrencas e fofocas. Disse eu a Glenda: “Porra, o Leo tá passando dos limites. Primeiro, insinua que você... Deixa pra lá”.
“Deixa pra lá? Deixa pra lá é o caralho!”, disse Glenda. E concluiu com ares de imperatriz da Boca do Lixo, rainha da Lapa: “Pode ir contando o que esse filho-da-puta falou a meu respeito. Faz tempo que eu tô desconfiada de umas coisas...” Eu perguntei em seguida: “Que coisas?” E Glenda reivindicou o direito da antecedência para dizer: “Fala você primeiro, eu perguntei antes”, de modo que não tive outro jeito senão inventar uma história meio inacreditável, em parte para não demolir uma sociedade que estava dando certo, em parte também para evitar que Glenda pulasse no pescoço de Leo na primeira oportunidade, o que não ia demorar.
Disse eu, portanto:  “Não sei por que razão, não me pergunte a respeito, Leo Perez me disse que alguém havia contado a ele, que ficara sabendo através de uma terceira ou quarta pessoa, que você não passava de uma ‘viúva negra’, sabe o que é? A mulher que mata maridos ricos para ficar com a fortuna de todos eles. Disseram ainda que mais tarde você foi roubada por um jogador profissional, que teria perdido todo o seu dinheiro em cassinos e bingos”
Glenda me olhou com os dois olhos arregalados e murmurou: “Nossa... Como é que ele soube disso?”
Depois soltou uma gargalhada e mais uma vez pontificou: “Você é ridículo... Até para inventar mentiras”. Ficamos um tempo precioso naqueles: “Foi isso...”, “Não foi isso...”, até que Glenda promulgou a sentença: “Já que não posso confiar totalmente em você, daqui em diante vamos ser só amigos, e olhe lá.” Perguntei se ela ia ou não ia contar de que “coisas” estava desconfiada. Glenda foi sumária: “Mais tarde, talvez.” Desconfiada, sem dúvida. Agora, até de mim.
No dia seguinte, de volta à labuta, recebemos o aviso; Leninha, a dileta filha de Bishop, ou Bispo, ou Genílton, ou o caralho a quatro, banhava-se inteiramente nua na fonte de uma pracinha, quem sabe julgando-se em plena fontana di Trevi feliniana. Joel, incapaz de resistir aos apelos de sua vocação profissional, informou o fato a um fotógrafo da polícia, que relatou o episódio a uns cinegrafistas do submundo pornô, de modo que em poucos minutos o corpo escultural de Helena e seu lindo rostinho de índia do cinema americano já estavam na internet pra todo mundo ver, aplaudir e delirar. 
Bishop ficou sabendo antes de Ferreirinha. Disse que ia cobrar a safadeza de Joel na justiça. Depois, pensou um pouco e concluiu que a porra do informante não tinha onde cair morto. Resolveu matá-lo simplesmente. Para isso pagava uma diária a Dinho, o capanga que ainda não entrara em cena, sem falar na verba para almoço e janta, o quarto na pensão... uma grana sem volta.
Foi um custo convencer Leninha a sair da fonte e cobrir seu inacreditável corpo com a capa de shantung que eu sempre carregava no porta-malas do carro. Não sei se ela estava só drogada ou se também completamente bêbada. Dizia coisas sem nexo, falava com a língua enrolada que ia se casar com o Mitsubishi vermelho de Wallace Jr. Depois xingou meio mundo, disse que ia surrar o filho-da-puta do Joel e quebrar a cara de Glenda, que, por sua vez, não estava nem um pouco a fim de levar desaforo pra casa. Glenda armou o bote e disse: “Vem, sua vadia mimada...” Mas Helena limitou-se a cuspir no sapato da outra, que voou pra cima dela, provavelmente querendo se vingar de tudo que andava errado em sua vidinha de sócia e secretária de um detetive à beira da inadimplência. A muito custo seguramos Glenda e demos uns tapas para supostamente “acordar” senhorita Helena, como ela gostava de ser chamada.  Bishop chegou, disse que a maluca precisava de um banho frio, ao que todos respondemos em coro: “Era isso mesmo que ela estava fazendo até agora”. Bishop deu mais umas bordoadas na cara e na bunda da senhorita Helena, que era como ele gostava de chamá-la, mas o efeito de tantos “incentivos” saiu, digamos, pela culatra, uma vez que Leninha sentou no banco da praça, se encostou em mim e pegou no sono de verdade, com a tal capa de shantung totalmente aberta, mostrando tesouros que eu jamais sonhara descobrir. Ao ver aquilo, Glenda rosnou: “Vaca indecente...” Eu olhei para ela e sorri, diante do preconceito. Talvez pela mesma razão, ela também não pôde deixar de sorrir disfarçadamente e o gelo começou a derreter.
Por ordem de Bishop, que na verdade era o poderoso Genílton, arranjaram uma ambulância e remeteram senhorita Helena, como todos nós gostávamos de chamar, para uma clínica, onde ela deveria esquecer pelo menos o último mau passo que dera na vida.
Bishop segurou o capanga pelo braço e apontou na direção de Joel, mas somente eu presenciei a cena, ao sair do mictório mais imundo, do boteco mais sujo, do mais deprimente centro velho do planeta. Bishop e Dinho encostados no balcão, cada um com um cálice sei lá de que na frente, os dois olhando e apontando discretamente para o pobre e moribundo informante. Como não tenho a menor vocação para guarda-costas de canalhas profissionais, resolvi não me meter, Joel que achasse alguém para escolher um bom cemitério de indigentes. Naquele mesmo dia, já no escritório, o fantasma do informante começou a aparecer diante de mim. Foram tantas as aparições que acabei pensando que o desprezível, por mais informante que fosse, não merecia um fim nas mãos de Tom Bishop. Contei toda essa história a Glenda. Ela me olhou e disse, secamente: “Você não toma jeito. É um sentimental que entrou, pela porta dos fundos, na profissão errada”. Aquilo não me doeu nem um pouco. Apenas respondi sem olhar para Glenda: “Um sentimental que você ama e deseja mais do que qualquer outra coisa.” Quando percebi, ela já estava no meu colo, me abraçando, me beijando, me pedindo desculpas com aquele seu jeito de quem já fez de tudo na vida mas ainda vai fazer muito mais...
Quando nossas antenas voltaram a captar a mesma frequência, Glenda perguntou com uma certa suavidade, que procurava suavizar a ponto de não parecer falsa: “Você acreditou no que Leo Perez disse a meu respeito?” Respondi com outra pergunta: “Se você ganhou muito dinheiro, mas acabou perdendo tudo nas mãos de um gigolô viciado em cassinos?” Glenda continuou com o mesmo tom de voz e a mesma suavidade: “Não... Você sabe que não é isso. Perguntei se você acreditou quando ele disse que dormia comigo, acreditou?” Expliquei a Glenda, com toda a sinceridade que meu rosto e minha voz podiam transmitir, que Leo nunca me dissera tal coisa, o que, aliás, era a pura verdade. “O que foi então que ele te disse?”, Glenda não se aguentava de tanta curiosidade. Eu não ia contar, mas ao mesmo tempo não queria deixá-la desconfiada. Resumi com um juízo que tinha a força de um ponto-final: “Vamos deixar Leo Perez e suas tramóias e intrigas pra lá. Depois, não me interessa nem um pouco saber com quem você dormiu ou deixou de dormir”, dito dessa forma, ficou parecendo que eu admitia ter sido essa a informação que Leo me passara sobre Glenda. Ela se deu por vencida, embora seus olhos estivessem a declarar muito mais do que uma simples rendição.
Na madrugada seguinte, Dinho matou Joel com um único tiro, bem no meio da testa. Quem mais gostou da notícia foi, é claro, o desembargador Wallace Ferreira, que agora estava coberto de razões para perseguir com mão-de-ferro o capanga Dinho e seu contratante Bishop. 
Menos de um mês depois, as coisas, parece que iam entrar nos eixos de sempre: Srta. Helene de Trouen foi vista e fotografada aos beijos e abraços com o marchand Wallace Jr, no momento em que este inaugurava sua galeria de arte; o empresário Genílton de Assis negou qualquer participação na morte do informante Carlos Joel e foi solto após pagar fiança; Dinho voltou com documentos falsos para o sertão dos Gerais e suas veredas, de onde nunca deveria ter saído.
Glenda me convidou para morar com ela. Disse que Leo Perez e Meire tinham planejado uma longa viagem, incluindo a Côte e, é lógico, as margens do Sena e o Quartier Latin. Respondi que por mim tudo bem, podia me mudar naquela mesma noite se ela julgasse conveniente, mas sabe como são as mulheres, Glenda não gostou da minha “falta de entusiasmo” e achou que eu a estava esnobando. Por pouco não retira o convite. Fui, fomos, no início rindo de tudo, e de todos.
Não demorou muito e acharam um cara morto debaixo de um viaduto. Vestia roupas de mendigo, estava sujo e fedia como um rato de esgoto. Em seus bolsos não havia qualquer documento ou pista para descobrir quem ele era. Levaram para o IML esperando que alguém aparecesse para reconhecer o corpo. Não surgiu ninguém, vivalma... Quando estava prestes a ocupar uma cova rasa, eis que um legista descobre um implante dentário na boca do infeliz. Pensa, chama especialistas, fazem radiografias da arcada, concluem que o cara tinha uma puta grana na boca e na gengiva, logo não era mendigo porra nenhuma. Quem era o sujeito? Só aí tiveram a brilhante idéia de verificar as impressões digitais do morto e ver se ele não poderia ser um oficial de justiça desaparecido, justo o oficial de justiça que tinha a missão de levar uma intimação a Wallace Ferreira Jr, o famigerado Ferreirinha, para que ele comparecesse a vara tal, em tal dia, a fim de prestar esclarecimentos sobre importantes quadros roubados. Wallace Jr. não recebeu intimação alguma, é claro, e o crime foi atribuído a um tal de Dinho, que andava às voltas com a polícia de Minas, mais precisamente a do sertão dos gerais. Vê como são as coisas?
No mesmo dia em que identificaram o cadáver do oficial de justiça, Wallace Jr. e Srta. Helena de Trouen embarcavam para local incerto e não-sabido, dizem que para vender algumas obras-primas, comprar outras, descansar da correria e, sobretudo, fugir de qualquer tipo de assédio ou ameaça. A comunidade dos oficiais de justiça respirou aliviada por não ter a quem intimar no caso, a caminho de um solene arquivamento. O velho Wallace tinha lá seus inimigos, contudo sabia direitinho como manejá-los.
Como a lei da ação e reação vigora tanto no submundo do crime quanto na física newtoniana, dois dias depois da fuga de Ferreirinha e Helena, alguém abriu secretamente a porta do carrão do des. Wallace e colocou no banco do carona um boneco do tamanho de um homem adulto, com as vestes ensaguentadas. Quem fez isso devia ter acesso à chave do carro, pois o sofisticado sistema de alarme foi desativado na hora em que colocaram o boneco e depois novamente ligado. Quando o desembargador abriu a porta, na garagem em penumbra, achou que era um homem mesmo. O chapéu caído no rosto, o “sangue” espalhado por toda parte... Chegou a sacar a pistola automática e apontar na direção do sujeito, disposto, quem sabe, a matar o morto. Nesse instante, a gravação de uma gargalhada ecoou em altíssimo volume, algumas sirenes soaram, alarmes dispararam, as luzes acenderam... Mais tarde, refeito do susto, Wallace disse que o tal “sangue” não passava de Ketchup e que só não gritou quando deu de cara com o “sujeito” porque “pegava mal”. Quando enfim retiraram o boneco e limparam o falso sangue, Wallace encontrou colado no painel um cartãozinho com os dizeres: “Com os cumprimentos dos Amigos de G.” O homem, é claro, ficou uma arara, não tanto pelo ato em si, mas porque percebeu que o inimigo tinha acesso a seus domínios e talvez contasse com aliados no seu próprio gabinete. O momento exigia atitudes drásticas, e isso não ia demorar...
Voltei ao minúsculo ap que antes dividia com Mariana para buscar umas roupas e outros objetos de uso pessoal. Estava lá, remexendo no armário do banheiro, quando alguém girou a maçaneta da porta, única porta de entrada da kitinete. Em questão de segundos, vários pensamentos passaram pela minha cabeça:
1 – Podia ser Meire, de volta ao lar, depois de ter sido espancada pelo filho-da-puta do mau-caráter do Leo Perez
2 – Pensando bem, acho que era mais provável que a inesperada visita  tivesse a ver com Glenda, quem sabe, não era ela em pessoa.
3 – A hipótese de tratar-se de um ladrão não estava descartada, de modo que apertei a pistola no bolso do casaco.
Nem uma coisa nem outra, muito menos a terceira. Em questão de segundos, o rostinho sorridente de Juju, Jussara Jucélia, amiga inseparável de Mariana Meire, invadia a sala e, ao me ver, foi logo perguntando: “Verdade que Meire fugiu com seu melhor amigo? É o que andam dizendo por aí, detetive...”
Tentei explicar que as coisas não eram bem assim, mas Juju, ao que parece, já estava com uma estratégia elaborada. Disse ela: “Acho que você precisa de uma mulher, de preferência jovem e bonita, para mostrar a todos que Mariana agiu por ciúmes, e não o contrário.”
Imaginei que Jussara Jucélia estava mais que disposta a fazer o “sacrifício“ de interpretar o papel de minha nova paixão. Não que ela tenha se oferecido, não foi bem isso, mas as coisas se encaminhavam naturalmente nessa direção e muitas foram as descobertas naquela tarde/noite, na antiga kitinete que um dia eu dividi com a minha ex-puta Meire (não que ela fosse “ex-puta”, mas de alguma forma era minha ex, melhor parar por aqui, antes que uma certa secretária entre em cena para reivindicar seus direitos de ... De quê mesmo?).
Na era do exibicionismo, em que predominam os reality-shows, os fotologs e blogs sem assunto, a indústria dos cosméticos, a moda, as lipo e, acima de tudo, o vil metal, em tempos como esse nosso, o conteúdo anda cada vez mais desprezado, o ser cada vez mais esquecido. O que vale, ou só o que vale, é a aparência.
Nada mais compreensível: ninguém mostra o que é. Mostra-se a casca, a aparência. Na melhor das hipóteses, alguém mostra o que pensa que é.
A ditadura da aparência veste como uma luva a moral interesseira. Todos querem saber o que vão ganhar, quanto vão ganhar, quem é que vai pagar. Acho que vem daí o sucesso estrondoso do lixo da autoajuda. Seus leitores devem pensar assim: “Já que eu vou perder meu tempo lendo alguma coisa, quero saber o que vou receber em troca, caso contrário, ligo a TV e assisto à novela, mastigando uns ovinhos de codorna.”
A sensação é de que o vazio vai crescendo, tomando conta de tudo. É o nada preponderando, avassalando o ser. Paradoxal? Pode ser... ou não ser, pouco importa.
Melhor se convencer de uma vez: “você é o que você tem”. Mas não se esqueça de chamar os amigos pra ver. A aparência soberana precisa de platéia; quanto maior, melhor. 
Se ninguém te visitar, pendura o Rembrandt na área de serviço.
Você pode pintar a sua casa de vermelho e projetar na porta da frente a imagem holográfica de um pitbull em big-close.
Depois de um certo tempo ninguém vai se lembrar que foi seu vizinho quem fez primeiro a estúpida escolha.
Talvez você ainda acabe no lucro, caso ele resolva mudar a cor da fachada e tirar a imagem do pitbull, eliminando o incômodo que tudo aquilo lhe causava.
E daí?
Pensa um pouco: tem gente que é mestre em imitar para ridicularizar e, claro, levar alguma vantagem. Usam a astúcia para concordar com o que desejam combater, e assim descaracterizam o inimigo, convertido em falso amigo.
Contam-se às centenas, aos milhares, situações semelhantes.
A verdade é que não há ética que resista ao esquecimento. Experimenta pra ver...
Acabaram de inventar duas máquinas extraordinárias. A primeira capta os impulsos elétricos que se originam no cérebro de uma pessoa. A segunda traduz e alinha esses impulsos. A pesquisa mais importante no momento, embora não reconheçam, procura descobrir se é possível alterar esses impulsos, talvez até invertê-los. Justificam com o surrado argumento de que toda a sociedade se beneficiaria com o controle não-invasivo de criminosos violentos. Estão querendo que o estuprador ofereça uma rosa em vez de violentar sua vítima? Pretendem dar ao ser humano o mesmo tratamento que deviam ter aplicado a Asimov III.   
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Voltando à vaca fria (não estou falando de Meire, nem de Glenda, muito menos de Juju, deu pra entender o “muito menos”?), o fato é que passei uns dias com Juju antes de aceitar o convite de Glenda para uma mudança, digamos, mais ou menos definitiva. Tudo começou quando ela, Jussara Jucélia, adentrou a mini-kitinete de Mariana Meire e foi logo perguntando se era verdade que a puta me trocara por um tal de Leo Perez, meu ex-sócio., e se eu estava de fato me mudando para a casa de Glenda, minha sócia-secretária-e-provavelmente-futura-amante, era verdade ou não era? Respondi com um sorriso, que equivalia a uma cínica pergunta: “Juju, como é que você sabe de tudo isso?” Ela me respondeu secamente, algo como: ”Isso não vem ao caso...” e me fez outra pergunta sobre estar sendo manipulado por Glenda, na hora não entendi de onde ela tirou aquilo. Juju me disse então duas frases entredentes:
1 – Não olhe agora, mas no teto, junto à porta, tem uma câmera de vídeo que eu nunca tinha percebido.
2 – Se quiser continuar sendo meu amigo, nunca mais me chame de “Juju”, odeio esse apelido, embora saiba que jamais irei me livrar dele.
Estive a ponto de cair na gargalhada, é claro,  mas como havia a história da câmera, achei melhor disfarçar e dizer baixinho: “Juçara Jucélia, do mesmo jeito que colocaram uma câmera no teto pode haver um microfone bem aqui ao lado, gravando tudo que a gente fala”. Juçara sorriu e disse: “Está certo, o detetive aqui é você, sempre esqueço...”
Às vezes, acordar, abrir os olhos, não é o bastante para concluir que existe algo além de um teto malpintado e quatro paredes tortas. O pior é que depois você vai vendo aos poucos que as ilusões e esperanças cabem dentro daquele cubículo em que a sua mente acordou, entorpecida por assim dizer.
Alguém pode até tentar convencê-lo do contrário, com bobagens do tipo: “Passe o dia no parque, ou na praia, ou escalando um montinho de terra, se segurando nos arbustos pra não cair,  ou na praia, levando uma surra das ondas que não pega, e aí você vai perceber que o mundo, a vida, não é só aquilo que viu ao acordar.”
Tudo bem, mas é quando você volta pra casa e fecha os olhos, que a praia, o parque, o morrinho e até o sol batendo nos arbustos, tudo isso tá ali, dentro do quarto, debaixo do teto malpintado, cercado por quatro paredes tortas, escuta uma coisa, alguém já te chamou de esquizofrênico, porra?
Criaram essa imagem para definir a importância do conhecimento nos dias de hoje: uma escada rolante em que os degraus somente descem. A pessoa que subir rapidamente, avança; quem apenas andar, não sai do ponto em que se encontra; aqueles que ficam parados, descem e acabam lá embaixo. A imagem é perfeita, pena que foi usada por um babaca na rádio, durante um programa de debates com debatedores idiotas, ele não só omitiu o nome de quem a criou, como também chamou a metáfora de “bobinha”. O exemplo mostra até que ponto é possível pisar na ética e nem sequer ser censurado. O camarada usa uma imagem que não é dele, não cita o seu autor e ainda por cima a chama de “bobinha”, tudo isso impunemente. Merece subir pela escada comum, de joelhos. Enquanto isso, fico eu aqui, defendendo com unhas e dentes o desconhecido que criou a tal imagem, não sei quem é, mas sei que alguém foi, idéias não crescem em árvores.
Comecei a contar uma história que saiu da minha cabeça e que talvez não seja verdadeira, porque, certamente, nem tudo que sai da minha cabeça aconteceu de fato, na maioria das vezes nem passa perto.
Primeiro, preciso dizer que não se trata de uma história com princípio, meio e fim, nem tampouco de uma história de bons contra maus, ou de maus contra outros maus, como é o caso de noventa e nove vírgula nove por cento das histórias que todo mundo lê e gosta.
Segundo, quero que compreendam que não se trata de uma história à espera de críticas ou elogios, não foi escrita para ser filmada, nem ao menos para ser traduzida ou vertida para outro idioma da moda. É apenas uma história que começa no interior de um trem, parado numa estação, onde estão todos os personagens. A ação se desenrola no lado de fora do trem, portanto na plataforma da estação e nos trilhos da ferrovia. Aliás, "desenrola" não é o tempo certo, porque também não há ação alguma, portanto o correto seria escrever: "A ação se desenrolaria no lado de fora, coisa e tal". Mariana, a Ane que um dia foi Meire, olhou esse texto aí em cima, sem que eu percebesse, e disse, sem que eu tivesse pedido a sua desagradável, porém sincera, opinião: "Porra, detetive, por que diabos você acredita que alguém vai se interessar em ler uma história em que não acontece nada, não aparece ninguém e portanto não há diálogos ou ação?" Por pouco ela não amassa o monitor e joga no cesto de lixo, pra sintetizar seu menosprezo. 
Como diria o grande Nélson: É só...


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