atebrreve@gmail.com

Ok?

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

A PASSAGEIRA *

Fn

Não lhe incomoda pensar que talvez nunca mais encontre uma pessoa que nem chegou a conhecer? (Olhos vivos, semblante indagativo, silêncio). Dito assim de repente, por alguém que você acha que nem a conhece, parece uma daquelas cantadas, que você deve ouvir às dezenas todos os dias. (Olhos baixos, semblante neutro, silêncio). Mas eu posso lhe assegurar que não se trata de nada disso. Não é uma cantada, não que você não a mereça. (Olhos baixos, leve sorriso, quase imperceptível, silêncio). O fato é que você não me conhece, mas eu a observo há muito tempo, sei onde você mora, sei que ônibus pega, que horas vai e que horas volta do trabalho, sei quantos anos você tem, sei de cor o nome das suas melhores amigas, sei de quase tudo. (Olhos arregalados, semblante sério, silêncio). Também sei que é casada e que seu marido parece ser muito ciumento. (Olhar de relance, assustado, talvez seja a raiva o que aperta seus lábios, silêncio). Mas não se preocupe, Marcela, foi ele mesmo, seu marido Osmar, quem me mandou vigiar você, não tanto por ciúmes, mas por outras razões que ainda hoje você irá entender. (Lábios semiabertos, desses que iam dizer algo surpreendente, mas que desistem e voltam a se fechar franzidos, silêncio). Continue assim, em silêncio, é melhor para nós dois. Vou resumir em poucas palavras o que você ainda nem desconfia: quando seu marido Osmar me propôs esse trabalho, nem me passou pela cabeça que ele estava coberto de razões para duvidar da sua pessoa, não que isso seja de alguma forma uma acusação, não é, e você logo saberá por quê. No início, fiquei surpreso, é claro. Como é que você, uma menina de família tradicional, com esse olhar tão meigo... (Olhos de ódio na direção do interlocutor, baixam em seguida. Silêncio). Não responda, eu lhe peço, nem sinta raiva de mim por enquanto, voltando ao assunto, certamente  não foi por necessidade material que você fez o que fez, eu sei que não, também não foi por se sentir sozinha e abandonada, Osmar me garantiu que você nunca se queixou (Um sorrisinho cínico, talvez de desprezo, agora é explícito e modela seus lábios, silêncio). Também não quero que você me explique coisa alguma, o que aconteceu entre vocês não me diz respeito, no entanto, sei que você deve estar se perguntando por que eu não me aproximei antes e só agora lhe conto toda a verdade, o fato, querida Marcela, é que a realidade muda, muda muito, sem parar... (Ar de um certo enfado, suspiro quase imperceptível, silêncio). Assim como você se pergunta interiormente por que até agora não lhe contei nada, também pode se indagar por que sua amiga Silvinha também nada lhe disse. (Sobressalto, chega a abrir a boca de tão espantada, parece que vai dizer algo, mas: silêncio). Sim, Marcela, conversei com Silvinha, mas também a pedido de seu marido Osmar, queria ele saber alguns detalhes da sincera amizade que uma dedica à outra, sabe como é, neuroses, Marcela, neuroses... Compreendo que você fique de certa forma indignada com o silêncio de Sílvia, que vem a ser sua melhor amiga desde a infância das duas em Curvelo, não é mesmo? Poderia esclarecer esta questão, pois já possuo elementos para isso, no entanto, Marcelinha, permite-me mais essa intimidade?, no entanto, dizia eu, prefiro pular esta parte, mais tarde poderemos voltar a ela, se for do seu interesse. (Movimentos dos ombros, como a demonstrar um falso desinteresse, um “tanto faz” nada sincero, silêncio). Marcela, Marcela... vamos, finalmente, ao que importa: sei de tudo o que você vem fazendo, sei com quem você saiu, em que datas, em quais circunstâncias. Guardei para mim mesmo este segredo infame, traindo assim a confiança de quem me contratou. Como já disse, Marcela, não consigo entender a razão de seu comportamento, mas o fato é que, talvez por isso mesmo, eu tenha me interessado tanto por você, com tanta intensidade, que hoje posso, sem medo de errar, confessar que me apaixonei pela sua pessoa, uma pessoa inquieta, infiel,  que adora se arriscar e, até poderia dizer, nada teme. Acertei, Marcela? (Sorriso, olhos frios, cabeça balançando levemente para, talvez, concordar, silêncio). Teria eu me apaixonado porque pertencemos ao mesmo mundo? Um mundo de traições, indignidades, safadezas, enfim? Você não serve para Osmar; Osmar não serve para você. Por que, Marcela? Osmar tem outra família, quando me contratou para descobrir algum deslize da sua parte, a intenção dele era obter argumentos para o divórcio. Provando a sua infidelidade, Osmar calaria de antemão a boca de parentes, amigos, inimigos, colegas, vizinhos, enfim, quem quer que  tivesse a ousadia de censurá-lo. Vocês não têm filhos, Osmar tem com essa outra mulher, Marcela: três (Olhos arregalados, expressão de completo e absoluto estupor, garganta engole em seco, silêncio). Aí é que está, minha linda Marcela, a pergunta que devemos fazer é uma só: quem estava enganando quem? Sei que você me agradece por não ter contado suas aventuras amorosas a meu cliente Osmar, vejo pelo brilho de seus olhos que você é mais do que grata a mim, Marcela, e isso me comove além da conta. (Olhar doce e sereno, um leve sorriso nos lábios entreabertos, silêncio). Contudo, por mais que me sinta atraído e tentado a me aproximar de você, agora que sei de tudo, sinto-me impedido, não conseguiria me relacionar com uma mulher que durante tanto tempo enganou um marido que julgava a fidelidade em pessoa, não vem ao caso se este seu julgamento expressava ou não a verdade dos fatos. Vamos, agora chegou a sua vez, fale alguma coisa, Marcela querida, me diga o que acha de tudo isso, revelado assim tão de repente… (Os olhos piscam repetidas vezes, parece que vai responder, mas o ônibus chega e Marcela parte, sem olhar pra trás. Silêncio).  Eu fico parado, como um poste, imaginando se meu ônibus ainda vai demorar. 
 
*   Alguns leitores perguntam como interpretar os textos entre parênteses. De que modo o personagem consegue “dialogar” com Marcela e interpretar suas reações. Tudo que eu posso dizer é que tem dias que a gente acorda conversando com a própria cabeça. Acontece comigo, talvez aconteça com você também, até no ponto do ônibus...

Seguidores

Arquivo do blog

Ahn...?

Minha foto
Filial do Eu, Liquidação de Neurônios, Churrascaria Almaminhadealcatra Dúvidas, críticas, reclamações, elogios? atebrreve@gmail.com