Não-Memória?
fn
Como ando à procura de um estilo que transcenda o biográfico (ou o autobiográfico) registro aqui uma dúvida: eu não lembro de ter visto alguém carregando um outro alguém nas costas. Não me lembro desta cena, mas é bem verdade que isso não quer dizer que nunca a tenha visto. Você, que está me lendo agora, pode achar que provavelmente eu já presenciei aquele quadro, mas esqueci das circunstâncias, dada a sua banalidade. Em um dos contos de "O Chão em Chamas", Rulfo narra a viagem de um índio mexicano com seu pai nas costas (ou é o pai com o filho nas costas, isso eu também não me lembro). O que me marcou foi o fato de que o sujeito que está sendo carregado tiraniza aquele que o transporta, o que não vem ao caso, pois pertence ao universo de Rulfo, não ao meu. Contudo, de um jeito ou de outro, esta imagem é verdadeira para mim, embora só exista no conto que eu li, não me recordo há quanto tempo. A dúvida é: uma vez que a imagem é verdadeira, devo considerá-la parte integrante da minha memória pessoal?
Neste caso, que acabo de descrever, trata-se de algo efêmero, insignificante: alguém carregando o outro nas costas. Mas e se for a cena de um crime? E se estiver gravado na minha memória alguém com a arma na mão, ameaçando uma jovem prostituta, no quarto de uma espelunca do submundo? A cena pode ter vindo de um conto ou de um filme, mas a pergunta é a mesma: sendo a imagem verdadeira, devo considerá-la parte integrante da minha memória pessoal? Eu sei que você vai dizer que essa história já está se tornando cansativa e que não desperta o menor interesse .
Mas, e se eu revelar que esse alguém com a arma na mão não é outro senão você, que acaba de matar a jovem e linda garota de programa, sem piedade, no quarto de um hotelzinho barato?
Não adianta negar, jurar que não foi você, muito menos resistir à prisão. Isso só vai piorar as coisas, meu caro.
Pena que eu não me lembro da cara que você fez... Só me recordo que você se recusou a admitir uma culpa que já estava mais do que provada, como?, você quer saber, exige que eu lhe conte em detalhes, diz que tem esse direito. Eu concordo e começo perguntando se você se lembra de um ensaio para uma peça de teatro amador que fizemos na semana passada. Claro que você se lembra, mas parece irritado ao reagir com impaciência, perguntando, o que tem isso? o que isso tem a ver com o caso? Ainda bem que você já se refere ao crime como um caso, é meio caminho andado. Eu lhe explico que no ensaio só estávamos nós dois e que você como bom ator que é repetiu várias vezes a mesma frase: "Eu confesso, fui eu quem matou Linda Reis! Fui eu mesmo quem matou aquela puta!" Entendo que agora você fique ainda mais preocupado, a irritação parece que sumiu de seu rosto para dar lugar a algo semelhante ao medo, estou certo? Eu confirmo para você que Linda Reis é de fato o nome da jovem garota de programa, assassinada friamente no quarto de um hotel no centro velho, o velho e decadente centro do passado. Sim, meu caro, aquele "ensaio" foi gravado, e o que é pior, com autorização judicial, tudo dentro da lei, pois há um juiz muito interessado em pôr as mãos em você. Sua cara agora é a de um animal acuado, uma fera que tem pouquíssimo tempo para decidir se ataca e tenta a fuga ou se espera para ver se o pesadelo termina com o som do despertador ao lado da cama. Eu? Penso que tem horas que a razão sucumbe diante de tantas evidências e que é por isso que o crime, muitas vezes, torna-se a única saída, embora algumas pessoas insistam em negá-las, não as saídas, mas as evidências, se é que me entende...
fn
Como ando à procura de um estilo que transcenda o biográfico (ou o autobiográfico) registro aqui uma dúvida: eu não lembro de ter visto alguém carregando um outro alguém nas costas. Não me lembro desta cena, mas é bem verdade que isso não quer dizer que nunca a tenha visto. Você, que está me lendo agora, pode achar que provavelmente eu já presenciei aquele quadro, mas esqueci das circunstâncias, dada a sua banalidade. Em um dos contos de "O Chão em Chamas", Rulfo narra a viagem de um índio mexicano com seu pai nas costas (ou é o pai com o filho nas costas, isso eu também não me lembro). O que me marcou foi o fato de que o sujeito que está sendo carregado tiraniza aquele que o transporta, o que não vem ao caso, pois pertence ao universo de Rulfo, não ao meu. Contudo, de um jeito ou de outro, esta imagem é verdadeira para mim, embora só exista no conto que eu li, não me recordo há quanto tempo. A dúvida é: uma vez que a imagem é verdadeira, devo considerá-la parte integrante da minha memória pessoal?
Neste caso, que acabo de descrever, trata-se de algo efêmero, insignificante: alguém carregando o outro nas costas. Mas e se for a cena de um crime? E se estiver gravado na minha memória alguém com a arma na mão, ameaçando uma jovem prostituta, no quarto de uma espelunca do submundo? A cena pode ter vindo de um conto ou de um filme, mas a pergunta é a mesma: sendo a imagem verdadeira, devo considerá-la parte integrante da minha memória pessoal? Eu sei que você vai dizer que essa história já está se tornando cansativa e que não desperta o menor interesse .
Mas, e se eu revelar que esse alguém com a arma na mão não é outro senão você, que acaba de matar a jovem e linda garota de programa, sem piedade, no quarto de um hotelzinho barato?
Não adianta negar, jurar que não foi você, muito menos resistir à prisão. Isso só vai piorar as coisas, meu caro.
Pena que eu não me lembro da cara que você fez... Só me recordo que você se recusou a admitir uma culpa que já estava mais do que provada, como?, você quer saber, exige que eu lhe conte em detalhes, diz que tem esse direito. Eu concordo e começo perguntando se você se lembra de um ensaio para uma peça de teatro amador que fizemos na semana passada. Claro que você se lembra, mas parece irritado ao reagir com impaciência, perguntando, o que tem isso? o que isso tem a ver com o caso? Ainda bem que você já se refere ao crime como um caso, é meio caminho andado. Eu lhe explico que no ensaio só estávamos nós dois e que você como bom ator que é repetiu várias vezes a mesma frase: "Eu confesso, fui eu quem matou Linda Reis! Fui eu mesmo quem matou aquela puta!" Entendo que agora você fique ainda mais preocupado, a irritação parece que sumiu de seu rosto para dar lugar a algo semelhante ao medo, estou certo? Eu confirmo para você que Linda Reis é de fato o nome da jovem garota de programa, assassinada friamente no quarto de um hotel no centro velho, o velho e decadente centro do passado. Sim, meu caro, aquele "ensaio" foi gravado, e o que é pior, com autorização judicial, tudo dentro da lei, pois há um juiz muito interessado em pôr as mãos em você. Sua cara agora é a de um animal acuado, uma fera que tem pouquíssimo tempo para decidir se ataca e tenta a fuga ou se espera para ver se o pesadelo termina com o som do despertador ao lado da cama. Eu? Penso que tem horas que a razão sucumbe diante de tantas evidências e que é por isso que o crime, muitas vezes, torna-se a única saída, embora algumas pessoas insistam em negá-las, não as saídas, mas as evidências, se é que me entende...