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Ok?

sábado, 20 de setembro de 2008

A TERRA QUE NOS JOGARAM


Não coma nada do lixo. Lembre-se que não somos daqui, não pertencemos a este lugar. Embora não pareça, ainda somos pessoas, e não ratos ou baratas, tontas e famintas. Somos pessoas, entendeu? Às vezes tontas e famintas, mas pessoas. Estamos aqui catando essas coisas imundas, mas usamos luvas de plástico e vamos vender o que ainda tiver algum valor. Penso que tudo deve ter o seu valor, até mesmo o lixo que você ia pôr na boca se eu não falasse. Eu lhe disse que não somos daqui, você sabe muito bem que não somos, mas não pense que esse lugar não tem o seu valor, se não tivesse, por que tanta gente estaria aqui, ao nosso lado, catando coisas, querendo tirar o pouco que é nosso? Gente que vive agachada como nós vivemos, uns trazem uma garrafa d'água amarrada na cintura e essa parece ser a sua grande vantagem, a fortuna que lhes permite olhar para nós com desdém, com aquele ar de superioridade, que o mundo criva neles e eles crivam em nós. Você acha que não? Balança a cabeça pra me dizer que não? Pense bem, se nós não tivéssemos nenhum valor, se esses que têm as garrafas d'água e nos olham com desprezo também não tivessem nenhum valor, por que razão tanta gente viria aqui nos filmar, com suas máscaras contra gases putrefatos, malcheirosos, venenosos? Por que tanta gente de posses se daria ao trabalho de vir até aqui todos os dias, com seus tripés e caixas de lentes, gente famosa e rica, por quê? Chegam em carrões, vestem aquelas roupas de ETs, colocam as máscaras e nos filmam de todos os ângulos, por quê? Um deles chegou a pedir que eu ficasse de pé, quando levantei, ele me examinou de alto a baixo, depois me olhou com tristeza e falou algo como não serve, é muito pequeno. Eu sei que você deve estar pensando aí dentro da sua cabeça que essa montanha atrai de tudo: pobres, sujos, maltrapilhos, ricos excêntricos, figuras da moda, poderosos, gente burra, esperta, genial, algum deve ser genial, imaginando que o mundo aqui é preto e branco. Veja que também chegam os que escrevem para os jornais e publicam livros que viram sucesso, muitos autores temos aqui entre nós, autores e atores, estes últimos representando o que você deve chamar de comédia e eu não ouso chamar de drama, uma peça apenas, já tá bom. Outros vêm e nos fotografam, ganham prêmios, depois voltam pra ver se a fonte secou ou se ainda podem explorar um pouco mais a miséria, não a nossa, mas aquela que repousa nos corações empedernidos. Sim, há os que sentem pena de nós, talvez todos sintam, lá no fundo, um pouco de pena, que não nos alegra, não nos compraz, se não houver ao menos umas tantas moedas ou um sorriso irmão. Você duvida de tudo, não precisa me dizer, mas eu ainda me dou o direito de sonhar, de conversar comigo mesmo e concordar que certas coisas na vida não se resolvem só com a vontade, se fosse assim seria fácil, e que ninguém, ninguém mesmo, deixa de ter uma certa esperança de mudar as coisas do mundo, uns para melhor, outros para pior, ainda mais neste mundo aqui, de onde vemos o sol se pôr no alto da montanha apodrecida, fofa sob os nossos pés, crostas você diz, couro no lugar das solas, e você tem razão. Mas não pense que por estarmos nessas condições não somos alvos de inveja, você de novo se recusa a concordar comigo? Parece que hoje nada do que eu disser vai receber o seu apoio, mas não importa, apenas observe, veja como alguns nos olham como se fôssemos superiores em algo nessa vida, outro dia mesmo, acho que foi na quarta, aquela mulher de turbante veio me dizer, no dia que vocês forem embora deixarão saudades, por que me disse isso? Você sabe explicar? Talvez sirva para que acredite que tem gente que nos observa e de alguma forma nos admira, daí a sentir inveja é um pulo. Feliz de vocês que são apenas dois e estão sempre juntos, disse o caolho, aquele negro que vem com quatro ou cinco crianças pequenas. Eu vendo tudo que me dão e guardo tudo que me dizem. Não esqueço que uma mulher gorda e rica me disse um dia, meu filho, pensa que é só aqui que as pessoas vivem de catar coisas no lixo? No mundo lá fora é a mesma coisa, lixo, lixo, lixo... Era de madrugada e acho que a gorda estava bêbada, mas você está vendo como eu tenho razão? Por tudo isso venho lhe dizer que não vale a pena olhar a vida só por um lado, entendeu? Há sempre mais de um, mesmo para nós que estamos aqui nessa montanha azulada, cavando, cavando... Mas lembre-se, não ponha nada que vem do lixo na boca nem aceite um gole d'água dos arrogantes, não faça isso nunca, mãezinha... 
fn

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