BREVE ENREDO PARA A VIDA DE CAMILA
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Às onze e meia da noite de uma terça-feira, Camila abre um e-mail em seu computador pessoal, lê, relê e não entende nada. Trata-se de alguém dizendo que estava na hora de cobrar uma dívida. Não dá importância, acha que é um trote, talvez um erro de destinatário, quem sabe um vírus. Mas não há nenhum anexo. Camila deleta, depois de ver que o e-mail veio de um tal de esperancoso2009.
No dia seguinte, logo pela manhã, Camila acorda com a campainha da porta. Fica na cama, tentando acomodar os olhos à penumbra do quarto. A empregada vem avisar que chegou um envelope, entregue por um homem baixinho, todo de amarelo. Camila abre e lá está escrita quase a mesma mensagem do e-mail: "Conforme o prometido, vou cobrar a dívida". Camila corre para a janela do apartamento onde vive com o marido e duas filhas. Examina a rua, estica o pescoço, mas não vê nada de anormal, até que um sujeito de calça, camisa, boné e sapatos amarelos sai do prédio e embarca apressadamente em um táxi que passava pelo local.
Camila gesticula, faz sinais para o porteiro do seu edifício, tenta pedir através da mímica que ele anote a placa do táxi, mas não é compreendida. Pouco depois, o porteiro sobe com uma caneta e um pequeno bloco de papel em branco, certo de que era isso que dona Camila estava querendo dizer, com seus gestos de quem finge escrever com a mão direita na palma da esquerda. Camila agradece, fecha a porta do apartamento e fica por um instante pensando: "Ainda bem que esse cara não achou que eu tava pedindo o seu telefone..."
Camila não consegue tirar da cabeça a tal "dívida" que o misterioso cobrador queria receber. Revisou os últimos dias, nada... Lembrou-se o mais que pôde dos meses e anos anteriores, também nada... Ficou jogando aquela pergunta de um lado para o outro da própria cabeça. Afinal, que dívida era aquela? Alguma coisa que deixou de pagar? Não era provável, Camila sempre foi super-responsável na sua vida pessoal e familiar. Mas então... por que mandaram um cobrador tingido de amarelo entregar o bilhete? Tudo isso era um mistério, que, naquele momento, Camila achou que deveria resolver sozinha. Por que sozinha? Por que não contar tudo ao marido e pedir a sua ajuda? Talvez por aí o mistério começasse a se elucidar. Lembrou-se do e-mail deletado. Foi lá na pasta dos excluídos e o recuperou. Leu, releu... Tudo que conseguiu foi repetir mentalmente: "Quem será você, senhor esperancoso?" e sorriu ao ver a falta que a cedilha faz.
No dia seguinte, ao anoitecer, quando estacionava o carro na garagem do prédio, Camila já nem se lembrava dos fatos que tanto a intrigaram. Uma jornada de trabalho estafante tem o poder de se sobrepor a intrigas e mistérios sem importância. Enquanto aguardava o elevador, atendeu a uma ligação em seu celular. Uma voz rouca trouxe Camila de volta ao mundo das ameaças: "Calcinha vermelha, hein...? Gostei, Camilinha. Mas ainda falta pagar a promessa". No mesmo instante em que Camila gritava o teledramático "Quem é você?!", a ligação foi interrompida. O tal porteiro, que na véspera dera a Camila o bloco e a caneta, abriu a porta do elevador, olhou desconfiado e disse ao ouvir a pergunta: "Dona Camila, sou eu, o porteiro Amarante, lembra de mim?" Camila murmurou um "boa noite, seu Amarante" e subiu, atônita, imaginando como é que o infeliz ficou sabendo? Será que alguma colega de trabalho... Quem sabe uma câmera escondida no banheiro feminino... Enfiou a chave na porta de casa e disse baixinho: "Ainda acabo num hospício..." O marido, que também chegara há pouco do trabalho, ouviu aquilo e concordou: "O trânsito a essa hora é mesmo uma loucura, amor".
Naquela noite, Camila considerou seriamente todas as possibilidades: antes de trocar de roupa, fechou as cortinas da sala e dos quartos para ter a certeza de que ninguém da vizinhança a observava; vasculhou o computador, atrás de uma nova mensagem; sem saber por quê, abriu a pasta do marido e revirou seus bolsos; perguntou à Conceição, sua empregada, se alguém a procurara, ninguém de amarelo, Ceição? Em seguida, trancou-se no banheiro à procura de alguma pista, talvez uma microcâmera camuflada, um buraco na parede ou no teto. Nada. Naquele dia, de novidade mesmo só a voz rouca comentando a sua calcinha vermelha. "Tarado! - Camila pensou - Deve ser um desses que andam atrás de fetiches..." Mas, e a promessa?
Contou para Juliana, a melhor amiga desde os tempos do colégio, que, para seu espanto, caiu na gargalhada: "Ô, Camila... Depois que lançaram a moda do cós baixo, todo mundo sabe a cor da nossa calcinha e às vezes até se tem ou não tem rendinha". Meio sem graça, Camila teve que concordar que a amiga tinha razão, "...mas e a promessa? Que diabo de promessa é essa que eu não me lembro de jeito nenhum?" Ouviu de Juliana: "Pague pra ver. Ou é alguém que tá de gozacão, tirando um sarro da tua cara, ou uma hora vai ter que revelar que dívida é essa que está cobrando".
Camila gostou da idéia, ia pagar pra ver.
Em casos assim, nem tudo acontece de acordo com a nossa vontade. Camila esperou em vão por algum sinal. Entrava e saía do computador, corria para atender o telefone. No trabalho, começou a olhar torto para alguns colegas de quem mais desconfiava. Domingo à noite, logo depois de ter colocado as filhas para dormir, o telefone tocou e o marido atendeu: "É pra você, voz de homem", disse de mau humor. No outro lado da linha, uma mulher avisava: "Seu marido anda impossível, Camila... Cada um cuide do que é seu", e desligou sem esperar perguntas nem respostas. É claro que a semente da desconfiança estava plantada e Camila, que de tola não tinha nada, rapidamente concluiu que o telefonema e a cobrança da tal dívida misteriosa deveriam estar intimamente relacionados. Contou ao marido o que se passava? Só comentou o telefonema, mesmo assim apenas a parte do "cada um cuide do que é seu...". O marido fez uma cara de quem não engoliu a história, uma voz de homem que se transforma em voz de mulher, e no final deixa um recado sem pé nem cabeça. Camila deu de ombros. Como disse Juliana, ia pagar pra ver.
No dia seguinte, logo pela manhã, a misteriosa ligação da véspera voltou à cena. O marido de Camila acusava o ex-noivo de sua mulher como provável responsável pelo "trote", se é que era trote. Camila respondeu que não devia nada ao ex-noivo, que não tinha feito nenhuma promessa a ele. O marido, é claro, quis saber: "Promessa? Que história de promessa é essa agora?" Só então Camila lembrou que o marido não sabia de nada a respeito do homenzinho de amarelo, nem do e-mail, tampouco dos outros telefonemas cobrando uma dívida misteriosa. Viu que não tinha outra saída a não ser abrir o jogo. Abriu. Contou tudo, menos a parte da calcinha, achou que seu marido ia subir pelas paredes se revelasse os detalhes. Lembrou-se das amigas de faculdade, que diziam: "Homem é tudo igual. Qualquer coisa que lembre sexo, senão for com ele é traição".
De nada adiantou esconder. O cara ficou uma fera do mesmo jeito: "Por que não me contou na hora em que aconteceu, Camila? Falou com mais alguém?" Camila achou melhor "confessar" que Juliana sabia de tudo, menos do telefonema da noite anterior, o tal em que a voz de um homem de repente se transforma em voz de mulher. O marido balançou a cabeça, olhou para ela com tristeza e disse: "Confia mais em Juliana do que em mim..." Não era uma pergunta, era um lamento.
Os dois se despediram meio friamente e cada um foi para o seu trabalho, pelo menos era o que Camila pensava.
À noite, o clima pesou ainda mais. O marido de Camila já não sabia se a atitude correta era ficar desconfiado ou preocupado com sua mulher. Foi direto ao ponto: revelou que dona Conceição andava muito esquecida, como era de se esperar para uma senhora da sua idade, e que não se lembrava de cobrador algum; o porteiro Amarante achava que dona Camila, com todo respeito, estava muito nervosa, contou a história do bloco e da caneta, disse que Camila não o reconheceu na porta do elevador, mas não viu ninguém de amarelo saindo do prédio, pelo menos não se lembrava de ter visto. O marido de Camila disse ainda que em conversa com Juliana soube de um cara misterioso que tinha o hábito de adivinhar a cor da calcinha que Camila estava usando, mas que ele mesma não viu bilhete algum, não leu e-mail nenhum, nada além do que lhe revelara a amiga de tantos anos. Depois, perguntou olhando nos olhos de Camila: "Você tá ficando louca, amor?"
Camila não estava louca, mas deu um soco na mesa que quebrou o vidro, cortou sua mão e assustou as crianças. Enquanto o marido procurava acalmá-la, Camila correu para o computador, atrás do e-mail cobrando a dívida. Abriu e fechou arquivos, revirou todas as pastas, pesquisou, fuçou, digitou... Nada.
Aquilo estava ficando cada vez mais estranho. E o marido ali, olhando para ela com aquela cara de pena. Difícil aguentar em silêncio, pelo menos até encontrar o bilhete do cobrador. Bilhete? Que bilhete?
Abriam-se para Camila dois caminhos a seguir: achar que aquilo tudo não passava de uma armação, envolvendo o marido e sabe-se lá quem mais; considerar a possibilidade da coincidência - esta última hipótese, difícil de acreditar, mas não impossível. Depois de muito chorar e garantir que não estava louca, apenas um pouco nervosa, acabou por adotar, inconscientemente, a primeira alternativa. Por dois singelos motivos: primeiro, todos sabem como homem é; segundo, também sabemos como é a mulher quando desconfia de um homem. Achou que foi o marido quem inventou toda a história, "inventou porque está se envolvendo com alguém", a mulher no telefone bem que avisou e ela ouviu direitinho, "cuide do que é seu", não estava ficando louca, ainda não. Juliana? Sua amiga apenas contara a verdade, coitada. Ou será que...
Naquela mesma semana recebeu umas fotos pelo correio. Seu marido e uma mulher, que Camila não conhecia, em atitudes digamos excessivamente amistosas. Na hora não disse nada, não pensou em pedir explicações. Guardou aquilo como quem esconde o coração ferido. Para ela, o quebra-cabeças já estava montado.
A gota dágua que entornou o caldo surgiu no momento em que Camila surpreende uma conversa ao telefone do marido com, pasmem, a própria mãe de Camila. Ficou um tempo ouvindo na extensão aquelas mentiras sobre seu estado preocupante, o nervosismo excessivo e fora de propósito, suas estranhas manias, entre elas a dívida que ninguém sabia qual era e um suposto mágico que adivinhava as cores de sua roupa íntima. Camila, em determinado momento, percebeu que sua mãe, no outro lado da linha, chorava ao murmurar: "uma menina tão inteligente..." Aquilo era demais, precisava por um ponto final na armação deslavada. Se queriam levá-la à loucura, pois muito bem, agora teriam motivos.
Acusou o marido de traidor, chamou a tal mulher que andava com ele de vagabunda, gritou que sabia que eles dois estavam por trás de tudo, chorou, se descabelou, ameaçou quebrar a casa inteira, pegou as crianças e levou para a casa da mãe, ela mesma, Camila, foi pedir asilo no apartamento de Juliana.
"Camila, você tem certeza? É isso mesmo que você quer, amiga?", Juliana perguntou depois de ouvir quinze vezes a mesma história. Camila disse que sim, é claro que sim.
Dormiram juntas, abraçadas, na cama de solteira de Juliana. Insegura, deprimida, Camila deixou que a amiga fizesse tudo que há muito tempo desejava. No dia seguinte, remexendo no armário da área de serviço, Camila descobriu um boné amarelo. Nesse mesmo instante, lembrou de algumas promessas de adolescente que tinha feito à amiga nos tempos de colégio. "Será?", pensou. Eram umas dez, dez e meia da manhã. Ainda não estava na hora de acordar Juliana, que dormia como um anjo em sua cama de solteira.