Sei que isso que escrevo aqui vai parecer um diário, ou uma carta, talvez seja mesmo. Foi a maneira que encontrei pra dizer que você tinha razão, doutora, tinha razão quando me disse que eu devia parar de pensar, que só assim as coisas iam se ajeitar dentro da minha cabeça.
E não é que deu certo?
Deu certo porque parei de pensar se devia ou não devia cuspir os remédios, como fazem os falsos loucos nos filmes de Hollywood, ninguém acredita naquilo, nem você doutora? Cuspir os remédios exige uma certa arte, é quase tão difícil quanto bloquear o fluxo de sangue nas veias, coisa que eu também fazia quando me aplicavam uma daquelas. Não faço mais, parei de pensar nessas bobagens.
Deu certo porque desisti de brigar com os outros internos que me chamam de “O Vingador”, aquela enfermeira, a maldita, chegou a trazer uma capa de Batman para mim, todos riram, ficaram me zoando, mas eu fechei os olhos enquanto repetia em silêncio que não era pra pensar em nada daquilo, "não pense em nada, não pense em nada", e não pensei. Deu certo e estou em paz, flutuando, vendo as coisas de longe, como se não fosse eu que estivesse dentro de mim mesmo.
Mas, como você bem sabe, doutora, nem tudo são flores. Tem horas que eu acordo desse meu sonambulismo – ouvi uns comentários sobre isso - e me dá aquela sensação de perda de tempo, um desespero, uma angústia, e é nessas horas, só nessas horas, que me encolho no canto do quarto, eles não gostam que chamem de cela, pra eles é quarto, e fico por ali tentando lembrar de um tempo em que fui mais feliz, quando as coisas aconteciam naturalmente entre mim e você, mas nada me vem à cabeça, e aí eles chegam, invadem o quarto, que é uma porra de uma cela imunda, e me agarram com brutalidade, como se não fosse a coisa mais normal do mundo uma pessoa nesse estado de desilusão sair quebrando tudo que encontrar pela frente. Aqui tem louco que se veste de enfermeiro, cuidado com eles quando vier me visitar, doutora.
Não sei por que, mas acho que meu tempo já está se esgotando. Se estas palavras minhas chegarem aos olhos seus, peço que me envie por intermédio de Sandra Aurélia um daqueles quadros que você sabe tão bem pintar, verdadeiras obras de arte feitas com palavras, bem vestidas e arrumadas, todas juntas, amigas umas das outras, embora tenha me dado a sensação de que eu já lhe disse isso antes, deve ser a tal falsa-memória, que pra mim acontece quando os neurônios se juntam, um preso no outro, neurônios não se juntam?, não se acasalam?, pois deveriam...
O sol, as luzes, as cores vivas... Mande tudo isso por ela, pela maldita, mas não esqueça também de dizer que não é para ela entrar à noite no meu quarto e se fazer de íntima comigo, diga a ela que isso só você pode, só você, doutora, tem esse direito.