PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO
Pesquisa realizada entre as raríssimas pessoas que adquiriram um exemplar da primeira edição concluiu que:
- A maioria dos entrevistados não leu e não gostou.
- Os que leram também não gostaram.
- Todos, sem exceção, acreditavam que Psicografia era uma obra de conteúdo espiritualista, e se sentiram de alguma forma ludibriados.
Já que o autor não o fez na primeira edição, os editores
sentem-se no dever de alertar os leitores para o fato de que Psicografia não possui vinculações com o espiritismo, nem o referido autor nutre simpatia por esta ou qualquer outra doutrina religiosa.
Feita a ressalva, esclarecemos que, em hipótese alguma, serão aceitos pedidos de devolução da importância paga. Comprou, tá comprado, ok?
O GRUPO
Começamos a nos reunir às sextas-feiras, no início era só nas sextas-feiras 13, depois passou a ser na última sexta-feira do mês e acabou que agora nos encontramos toda segunda, quarta e sexta, não importa a data. Não há tema, cada um fala o que bem entende, pode ser uma coisa de se queixar, de chorar, de pedir ajuda, apesar de que aqui ninguém “ajuda” ninguém, isso faz tempo que é regra entre nós. Quando começamos não havia nenhuma intenção ou motivo para as reuniões, o que a gente queria era pôr pra fora o máximo de coisas que somos obrigados a guardar mesmo sem querer, nosso desejo era “vomitar” as palavras sem medir as consequências, isso era bom no início e foi se tornando cada vez melhor, e melhor, e melhor...
Aqui, reclamar é a coisa mais fácil do mundo, é moleza, você vem e solta o verbo, fala cobras e lagartos, xinga, pode até xingar o cara ou a menina que tá do teu lado, não tem nada a ver, ninguém vai te olhar torto, nem ficar puto da vida contigo, nem você vai ter que explicar porra nenhuma, reclamar é fácil, difícil é passar horas e horas ali ouvindo as histórias de cada um, aquele bando de gente gritando ao mesmo tempo, uma confusão dos diabos, foi isso que nós conseguimos com essas reuniões que agora são diárias, sai cada uma que nem dá pra acreditar, é gente contando coisas íntimas, pessoais, falando do marido, da mulher, da mãe, do pai, quase que falam do filho e do espírito santo, é gente dizendo que sente falta de uma montanha de coisas, outros esnobando, jurando que não precisam de nada, que queriam transar mais, que queriam transar menos, tem uns até que nem queriam transar, vê se pode, é gente dizendo que odeia isso, adora aquilo, é tanta gente falando ao mesmo tempo que dá pra lembrar aquele velho ditado, em casa que não tem pão todo mundo grita e ninguém tem razão, embora não fosse bem o pão que estivesse faltando.
E o que é que estava faltando?
Uma noite cada um no grupo recebeu uma folha de papel em branco e duas canetinhas, uma vermelha e a outra azul. Foi durante uma das sessões em que ninguém podia abrir a boca, só anotar seus desejos, anotar o que queriam que acontecesse com a caneta azul e o que achavam que deveria acabar com a caneta vermelha, tinham tempo para escolher e podiam ficar tranquilos, porque ninguém precisava assinar o nome na folha. Desejos, com a caneta azul; incômodos, com a caneta vermelha. No início ficaram se olhando, até com uma certa desconfiança, mais tarde foram se soltando pouco a pouco, escrevendo sem parar, às vezes um ou outro esticava o pescoço pra ver se descobriam no vizinho uma coisinha qualquer, um detalhe que estivesse faltando no seu relatório – foi assim que chamamos a tal folha, que acabou virando uma pilha de folhas de papel, cheias de garranchos, como se todo mundo tivesse escrito com a mão esquerda, talvez desconfiando da promessa de absoluto sigilo.
Na hora de conferir os relatórios, o que a gente viu foi que se alguém para de reclamar, fecha a maldita boca e olha pra dentro de si um pouco, uns minutinhos que seja, o que quase todo mundo pede é paz. Por incrível que pareça, acima de tudo querem paz, como se o mundo estivesse mesmo em guerra. A caneta vermelha anotou aqueles substantivos que todos nós detestamos: fome-dor-desprezo-traição-amor não correspondido-bala perdida...
Na sessão seguinte fizemos um questionário para estas mesmas pessoas e para outras que acabavam de ingressar no grupo. Se quase todo mundo queria paz, deviam ao menos explicar que tipo de paz era essa, porque uma coisa é falar em tese, outra é descer aos detalhes, esmiuçar, juntar os átomos de cada suspiro, mostrar conhecimento. E assim foi que descobrimos que a tal paz que todo mundo queria começava com um pedido para que se pusesse fim às incertezas e intranquilidades, queriam expulsar a dúvida e deixar entrar a confiança cega, eliminar as disputas, além de ceifar pela raiz injustiças e privilégios de toda sorte, achavam que paz era sinônimo de facilidade, porque se alguém está em paz é porque as coisas são fáceis pra ele, alguns queriam o descanso de barriga cheia e a mente vazia, outros chegaram a desenhar escravas nuas abanando um sultão, um marajá, qualquer coisa assim, mas vai você espremer tudo isso e descobrirá que a paz que procuravam se confundia com a inércia, com a monotonia, talvez com a volta ao paraíso sem pecado, enfim, o que eles queriam era a paz dos mortos, ou a morte em vida. E isso não é pra ser levado a sério, a não ser quando se morre de verdade.
Na outra sessão, com novos participantes, puxamos o lado do prazer, revivendo lembranças e despertando desejos adormecidos. Não foi difícil reacender eternos sonhos, estimular devaneios que antecedem o pegar no sono e transmitem a tranquilidade que, de um jeito ou de outro, quase todos almejamos. Voltamos à livre manifestação. Alguns escrevem, desenham, tomam nota; outros falam, gesticulam, as vozes se sobrepõem e se encaixam às frases soltas, mas nunca com aquela sofreguidão enfurecida de antes. Há também lugar para os que apenas desejam pensar e nestes percebemos que, se não possuem propriamente a paz interior, exibem o alheamento, a ausência, ou o que poderíamos chamar de torpor, acompanhado por uma certa doçura nos olhares perdidos. Para eles, pensar no prazer passou a ser melhor do que exercê-lo, pois o pensamento eterniza, impede a fuga e o inevitável arquivamento no passado. Ouvimos um deles dizer: “O prazer, como a felicidade, só é bom se for para sempre e se estiver bem aqui do nosso lado, o que é uma idéia inalcançável”.
Alguns juram que foi daí que brotou uma visível “consciência coletiva”, que não era meramente espiritual. Passeou pela sala, segundo eles, encheu os cantos, cobriu o assoalho, os móveis, as pessoas, alojou-se no teto, bem acima de todas as cabeças, pensantes ou não. Sua forma? Era uma luz, como não podia deixar de ser. A cor? Bem, os que viram garantem não ser possível reproduzi-la, sequer descrever suas mutações. Eram estes os mais propensos ao misticismo, de modo que foi necessário manter uma certa isenção e podar a tendência à religiosidade exagerada, ao fanatismo, pois nenhum deles sabia ao menos explicar por que razão chamavam a luz de “consciência coletiva”. Foi a partir desta experiência que surgiram as primeiras seitas. Homens e mulheres que teriam visto a “consciência coletiva” passaram a se reunir às escondidas para adorar, de corpo e alma, a alma e o corpo do estranho ser. Apareceram desenhos, fotos, vídeos, sons e tudo o mais. Artistas misturaram pigmentos para reproduzir a nova cor, cientistas tentaram medir o campo magnético e o comprimento das ondas que a luz deveria emitir, músicos de renome criaram hinos, poetas encaixaram letras. Em pouco tempo, alguns passaram a exibir uma intimidade maior com a “consciência coletiva”. Levavam pedidos e traziam incumbências. Transportavam oferendas e arrancavam uma parte delas para o seu próprio sustento. Suplicavam, intermediavam, amaldiçoavam, distribuíam castigos e espargiam perdões.
Nos encontros seguintes, tentamos introduzir a mais rígida de todas as flexibilidades, a mais completa abertura. Pedimos que, sucessivamente, fechassem os olhos, tampassem os ouvidos moucos, calassem suas bocas obscenas, cerrassem seus vorazes dentes e apertassem com os dedos sujos seus malditos narizes, não tocassem em nada para ignorar a textura e espremessem a memória para um canto qualquer dos cérebros adormecidos.
Depois, ordenamos que, de uma vez só, soltassem tudo aquilo que andou represado.
Devolveram a falsa paz, expeliram a hipocrisia e o perdão, purgaram culpas, escarraram julgamentos – seus e sobre outras pessoas –, choraram, blasfemaram, imolaram-se. Um deles chegou a exibir sua mão direita queimada, invocando um tal Múcio Cévola, arrependido de tantos erros, ou de um só e decisivo que o fez entrar para a história. Na hora em que se desnudavam havia um espelho, onde podiam mirar a si mesmos e reconhecer que a maior parte do tempo tinham sido levados a viver uma vida que de fato não desejavam. Agrediram quem amavam, traíram a quem deviam lealdade, ofenderam, mentiram e se omitiram, desdenharam, pisaram, humilharam, mas também sentiram pena, arrependimento, remorso, culpa e ódio por si mesmos. Foi neste processo que os estimulamos a procurar o demônio dentro de cada um, de certa forma até os desafiamos com veemência, e obtivemos em troca o acúmulo de algumas idéias materializadas, que, a exemplo da “consciência coletiva”, juntavam-se espontaneamente, levitavam, varavam o teto da sala, recusavam-se a descer, mantinham-se unidas e assim aumentavam de volume como a massa disforme que precede o pão.
Um a um foram voltando. Alguns referindo-se a uma viagem; outros, a uma fuga e à vontade de continuar fugindo, mesmo que não fosse assim tão bom o lugar de destino. Muitos, quase todos, dizem que a partir de um certo momento têm a sensação de que suas próprias vidas não mais lhes pertencem, pelo menos deixou de ser sua propriedade exclusiva. Tem um ponto que a partir dali qualquer um pode meter a mão, inventar histórias, escolher a dedo as mentiras que irá contar sobre o passado de cada pessoa, embora só ela o tenha vivido de fato. Uma espécie de virtualidade?, perguntamos; responderam, talvez... Insinuaram que é reconfortante a perda da individualidade, mas que provoca uma certa angústia este abrir mão do próprio passado. Na verdade, a impressão que tínhamos é que voltavam cada vez mais teóricos, pensativos, duvidosos.
A cada semana, são inúmeras as pessoas que nos procuram e mais ainda as que procuram as seitas que a partir daqui se formaram. Todas estão em busca da verdade e nenhuma parece entender que a procura não terá fim. Por mais que pensem, estudem, meditem, querem sempre a volta ou a continuidade. A seita de maior prestígio tem como lema: “A vida é breve, mas a morte é passageira”. Acreditam, portanto, que um dia voltam, nem que seja como macacos ou iguanas, e olhem que não são indianos, nem ao menos sabem o que é a metempsicose.
Tiramos que lição de tudo isso? O resultado, o sumo da fruta ácida, é que a vida se repete, com ou sem consciência coletiva, descobrindo-se ou não o demônio dentro de cada um. A verdade é que de um jeito ou de outro tudo acaba se repetindo, embora sempre prometa novidades, como os três pontinhos ao final de um texto...
PRIMEIRA PARTE
RAQUEL
UM
Estamos ilhados. Nossas crianças não podem mais pôr o nariz pra fora de casa. Há um risco de que alguma coisa caia sobre elas e as levem, como aconteceu com tantas outras que se foram sem deixar vestígios.
Os lugares que costumávamos frequentar não mais existem ou, se existem, já não são os mesmos. Outro dia passamos na porta de um restaurante aqui no condomínio, um lugar agradável que há muito tempo tinha sido uma churrascaria. Pois bem, lá de dentro arremessaram um sujeito gordo na calçada, quase nos atingiu, por pouco não derrubou meu marido, como se ele fosse um boliche, e o gordo, como uma bola rolando na calçada, imundo! Estava só de cuecas e tinha o peito peludo como um gorila. Mais tarde ficamos sabendo que o tal sujeito jantou e não tinha como pagar a conta, por isso arrancaram a sua roupa, o espancaram sem dó nem piedade e o arremessaram porta afora.
Alguns amigos dizem que é exagero meu, que ainda podemos passar em portas de restaurante e imaginar o cheiro de antigas churrascarias. Eu, por mim, não ligo para nada disso. Por ser mãe, quero apenas preservar o direito que nossos filhos deveriam ter de ir a um parque, a uma escola. Mas, não... Temos que dar aulas a eles aqui em casa mesmo. Um pai vem, ensina um pouco de matemática, o pouco que ele sabe, coitado; depois vem a tia de um outro menino e diz umas frases em inglês ou em francês – coisas que ainda não esqueceram por completo, sabe-se lá até quando... Eu fico no meu canto, pois sou de pouca serventia. Já nem sei que palavra quer dizer o quê.
Para não ficar louca e abandonar as crianças à própria sorte, escrevo cartas como essa que caiu em vossas mãos. De tempos em tempos, recebo respostas estranhas, para mim soam como coisas escritas do Além.
Uma de minhas amigas, que há muitos anos morava na Inglaterra, me responde dizendo que é exagero nosso, que o quadro não deve ser tão negro como pintamos. Disse mais, que é histeria, sensacionalismo... Até usou uma imagem que muito me chocou: comentou que às vezes parecemos pintinhos perdidos no deserto: se o sol não nos torrar, a cobra vem e nos devora. Juro que me deu vontade de responder que o sol nasce para todos e a cobra não costuma rejeitar carnes nórdicas e alvas. Mas fiquei quieta, até porque não tinha como responder, posto que amargamos o mais completo isolamento e eu nem sei se essa minha amiga ainda é viva ou não.
Na verdade, desconfio de tudo e de todos. Creio que as cartas são violadas. Acho que olham o que têm dentro e só depois as liberam para nós, quando comprovam que ali só tem palavras, desenhadas numa folha de papel. Chegam a raspar com gilete os cantos das cartas, talvez porque pensem que bem no meio, entre a frente e o verso, pode estar escondido algum tesouro, um cheque em libras esterlinas, quem sabe...
Quando a vida começou a se complicar, nós e alguns amigos compramos as barrinhas amarelas, aquelas coisas minúsculas e sem muito brilho, todos sabem, e escondemos no sótão aqui de casa. Lembro que nos criticaram, disseram que tínhamos feito uma grandissíssima bobagem, que havia mil outras oportunidades, mais seguras e mais lucrativas, para investir nossas economias. Mas o que eu sei é que as barrinhas nos serviram, foram de grande valia quando tudo começou a escassear. Não chegamos a trocar nenhuma delas, mas ainda nos dão crédito porque sabem que as temos em casa – o que não deixa de ser um grande perigo, é claro.
Eu sei que ainda tem muita gente que se sente segura. Aliás, gente estúpida é o que não falta nesse mundo, nunca faltou... Acham que porque têm dinheiro nada lhes acontecerá – o que vem a ser uma enorme de uma sandice (o termo “sandice” eu aprendi com meu pai, há muitos anos, quando ainda se dava alguma importância a coisas tão falsas e comprometedoras como o saber. Digo isso porque se hoje descobrem que sabemos algo, é em cima de nós que o ódio recairá).
Estamos todos terminantemente proibidos de ultrapassar as grades que temos na memória. Parece uma coisa do outro mundo, mas é a pura realidade: se dizem a você durante anos que este é o limite, que daqui você não pode passar, depois é fácil tirar as cercas e te deixar cercado, entende? Não é só uma questão de tempo, eu acho que aprendemos que ter medo é mais negócio do que ser destemido, e isso é uma droga, que vicia. De proibição em proibição, acabamos todos, ou quase todos, viciados no medo.
Um dia desses, não me lembro se foi nessa semana ou na outra, passou por aqui um grupo de garotas e garotos. Vinham com máscaras e roupas negras, mas não era nenhuma comemoração ou brincadeira, nem era um carnaval daqueles dos velhos tempos. A pergunta que eles faziam era até adulta demais: “Por que devemos respeitar as proibições? Por que temos que obedecer as regras e não dar um passo além das cercas? Só porque nos dizem que é perigoso?”
Agora a grande questão que deixou os adultos sem resposta: “Vale a pena obedecer a tudo isso só para preservar uma vida de prisioneiro?” O pior é que depois ficamos sabendo que eles já tinham tomado a sua decisão. Faz tempo que ultrapassavam os limites e corriam todos os riscos que a gente pode imaginar...
Eu quero saber de vocês uma coisa, me digam com toda a franqueza: alguém pode criar os filhos pensando em primeiro lugar nos limites que eles terão pela frente?
Este é o sentido daquela revolta juvenil, imatura, cheia de paixão, rancor e outros sentimentos que aprendemos a controlar com o tempo . Na verdade, as cercas já não existem, mas será que um dia teremos coragem de ultrapassá-las?