A telefonista da Central atendeu à chamada por volta das duas e meia, quinze para as três da madrugada: um sujeito inteiramente despido tentava arrombar a porta de uma casa num bairro elegante. Não demorou muito e um carro da ronda chegava ao local indicado: uma rua escura, cheia de árvores frondosas, casas bem construídas, e praticamente deserta àquela hora. O motorista acionou o farol alto a tempo de identificar a casa que estavam procurando. Na entrada, logo depois da pequena escada que dava acesso à residência, o tal sujeito, completamente nu, esmurrava a porta de madeira torneada. Tão absorto estava nesta sua tarefa que se assustou quando o policial lhe deu voz de prisão. O homem, meio gordinho, com seus trinta e cinco anos, jurou que era o proprietário do imóvel e que tudo o que queria naquela hora era voltar a dormir em sua cama de solteiro. Bocejou tão sinceramente que os policiais por pouco não desistem de levá-lo preso para a delegacia.
Atentado ao pudor e desrespeito à lei do silêncio? Contravenções penais sem gravidade. Assim que terminassem o boletim de ocorrência estaria livre, mediante o pagamento de uma pequena fiança.
O delegado de plantão quis ouvir a sua história. Se era o dono da casa, o que fazia nu, do lado de fora, esmurrando a porta? O camarada explicou que tomava banho quando ouviu uns gritos e uma voz de mulher pedindo socorro, vindos da casa ao lado. Saiu do banheiro sem roupa mesmo, abriu a porta e …
“A porta fechou e o senhor ficou preso do lado de fora, sem a chave, pois estava nu com a mão no bolso?”, perguntou o delegado. Todos riram, menos o sujeito, que ficou ainda mais sem graça ao saber que o delegado já tinha lido uma estória parecida, um conto famoso, de um autor que ele achava que era Fernando Sabino ou algo assim.
“E os gritos? Pararam de repente?”, quis saber o motorista da viatura.
Vendo que suas explicações não estavam sendo aceitas, o sujeito pensou em dizer aquela frase de filme americano, hoje muito usada também no Brasil, sobretudo nas CPIs: “Eu exijo a presença do meu advogado e só vou me pronunciar em juízo”. Achou melhor ficar quieto e rir também um pouco da própria desgraça.
Arranjaram para ele um roupão verde-musgo e lhe ofereceram uma xícara de café bem forte, “quem sabe pra curar a ressaca”, e tome risada.
Quando o escrivão acabara de tomar seu depoimento, a telefonista entra na sala, para avisar que a mesma pessoa que havia ligado para fazer a denúncia do arrombamento informava agora que um sujeito inteiramente nu corria pela rua, a mesma rua onde morava o tal sujeito preso, etc., etc.
Foram todos de volta ao local do incidente, inclusive o preso, agora solto, com seu roupão verde-musgo e um sorrisinho no canto da boca, estilo “viram que eu falei a verdade?”
Não era possível identificar de que casa partira a denúncia, mas alguns moradores confirmaram que ainda há pouco um cidadão meio gordinho, com seus trinta e cinco, quarenta anos, corria inteiramente nu pela rua, tendo saído da casa vizinha à do ex-preso, agora solto e com a mão no bolso do roupão emprestado.
A porta da segunda casa estava aberta. Havia sangue por toda parte, nas janelas, nas paredes, no chão... mas nenhum corpo para movimentar a noite dos legistas. Revistaram tudo, ouviram as “testemunhas”. Um crime havia sido cometido, e não era uma contravenção penal como correr despido pela rua ou esmurrar a porta da frente em hora imprópria. Mas e o corpo? O sangue seria do próprio sujeito que escapara? Ou da mulher que, segundo o ex-preso, gritara por socorro?
Só duas coisas eram certas:
1 – O crime, se é que houve um, acontecera nas barbas da patrulha, que se enganara de casa e prendera o homem errado.
2 – O Chefe não ia gostar nem um pouco de não ter respostas para as perguntas da imprensa. Afinal, quem ia cair naquela conversinha mole, com cara de desculpa esfarrapada: “Coincidências acontecem...”?