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terça-feira, 9 de março de 2010

Três Lentes* ( 1 de 6 )



O sujeito para, acende um cigarro, lê mais um pouco, um parágrafo ou dois. Que importância tem isso, você me pergunta. Olha-me com aquele olhar que eu posso traduzir em palavras, suas palavras, essa é apenas mais uma história que você está escrevendo, só que dessa vez me coloca no meio dela. Digo, se não digo, penso, que a sua técnica é ultrapassada, novo seria você não colocar ponto nem vírgula nem ponto e virgula dois pontos escrever como se vomitasse palavras uma atrás da outra talvez se for do seu interesse junte todos os sinais e os agrupe no rodapé ou num canto da página assim ó ... ,,,, ???? ;;; :::: !!! e as pessoas que peguem e usem como bem entenderem. No entanto, apesar da confusão que tudo isso viria a provocar, ela acha que eu devo dizer que há mais gente nesse curto espaço, caso contrário ninguém vai perceber o que está acontecendo e eu respondo que se for para escrever e ao mesmo tempo enviar uma bula explicativa prefiro não escrever coisa alguma, ela sorri, bate as cinzas do meu cigarro enquanto considera que estou sendo muito radical mas enfim a decisão é sua, diz ela. Se me perguntasse o que eu desejaria agora, diria que agora desejaria ter um mar para olhar, simplesmente isso, mas acontece que ela nada me perguntou. A pequena Tsuy abre afinal sua boquinha para revelar que narrativas não devem ser lineares, nem ao menos sequenciais, e que é por isso que as memórias nos chegam de lugares e momentos imprevisíveis, e quanto mais tentamos nos apegar a elas, para que não nos escapem por entre os dedos, na trama invisível que é a vida, mais depressa elas nos fogem, esmaecendo lentamente conforme a manhã vai se abrindo. Penso em completar, conforme a manhã vai se abrindo como um rouxinol, que é mais nome de flor do que de pássaro, assim devia ser. Tsuy diz que é por isso que revela a seu amante que deu folga à criadagem, para ter com ele uma tarde inesquecível, não sem antes lembrar de suas mãos apertando-lhe a garganta, primeiro com doçura, depois com determinação ou veemência, mas não com raiva, isso nunca, aperta até vê-lo sufocar, para só então devorar suas partes, devorar não seria bem o termo, muito grotesco, diz ela, melhor sugerir algo como saborear suas partes, apesar da indefinição resultante: "Saborear no sentido de comer? Comer em que sentido?" Uma hora teremos que responder, se existe ou não um tempo delimitado, bem definido nos sonhos que todos sonhamos, ou no espaço onírico, como diriam os pesquisadores. Não me refiro à memória, nem ao menos à memória dos alucinados, refiro-me ao sonho em si, que perturba e enternece os que dormem, aquele sonho que inunda o quarto de estrelas, o mesmo quarto que um pouco antes abrigava o oceano onde boiávamos, nós e a cama encharcada de suor. Uma voz feminina, nasalada por efeitos sonoros do rádio ou da TV, diz que não se considera plágio o ato de olhar para uma fotografia e descrever em detalhes o conjunto de emoções que o fotógrafo logrou captar. Não será plágio alavancar as próprias idéias com as cores e formas que alguém se encarregou de reunir para você? Tsuy não sabe o que responder, está olhando seu rosto com atenção desmedida, talvez se comparando a você, eu penso que toda mulher se compara a uma outra, você me diz que Tsuy é incomparável, eu que deveria me comparar ao tal amante que ela estrangulou, embora ninguém saiba ainda se o cara morreu de verdade, verdade? que verdade? Eu e você, eu sou uma, você é outra. E Tsuy?, você me pergunta. Tsuy é uma personagem, não deixa de ser real, mas é uma personagem, não sei se podemos chamá-la de verdade. O amante, então, nem se fala, você não concorda, eu argumento, pois é Tsuy quem está falando dele, se nem Tsuy é verdadeira por assim dizer, que dirá seu amante, talvez imaginário, talvez morto, estrangulado na tarde em que Tsuy deu folga à criadagem. Tsuy está olhando para nós dois com a boca aberta, quem sabe está com fome ou querendo falar alguma coisa. Penso em oferecer um sushi ou um sashimi, mas você me interpela, diz que esse tipo de brincadeira pode ser ofensivo, embora eu jure de pés juntos que não foi essa a minha intenção, eu mesmo adoro sushis, sashimis, sukiakis, Tsuy, enfim, grita, chega, queria falar, não queria comer. Eu a incentivo, mas nem era preciso, Tsuy conta que matou de verdade seu amante, narra em detalhes o dia em que foi por ele violentada. Eu revelo que talvez Tsuy esteja brincando ou testando a nossa perspicácia, pois registrei um certo sorriso malicioso no belo rosto da jovem e pequenina Tsuy enquanto ela contava como foi o estupro, no quarto dos fundos da casa de seu futuro amante. Você me acusa de brincar com os sentimentos de Tsuy, porque não sei o peso que tem um estupro para uma mulher, eu respondo que sim, ou melhor, que não, que não sei mesmo o peso que isso pode ter na cabeça de Tsuy, por isso estranhei o sorriso. Você me olha com uma certa desconfiança, eu pergunto o que foi, você diz que não foi nada, esqueça, mas eu insisto e você acaba por revelar que talvez eu não queira que o tal amante tenha tido uma existência real para Tsuy, eu não entendo onde você quer chegar, mas logo me esclarece, talvez você esteja apaixonado pela linda Tsuy e a prefere virgem, essas coisas de homem ciumento, eu digo que bobagem, mas por dentro penso que você deve ter um pingo de razão, um pingo deve ter. Tsuy às vezes pode, às vezes não pode ouvir o que falamos.  Foi isso que combinamos e ela teve de aceitar, é claro. Enquanto está de boca aberta ou semicerrada, como está agora, não ouve nada. Seus movimentos são graciosos, de uma inacreditável leveza. Passeia por sua casa, limpa ao extremo, abre portas, examina os cômodos, para diante de algumas fotografias coladas na parede, com a curiosidade de quem visita uma exposição pela primeira vez na vida. Você quer apostar comigo que Tsuy está pensando no amante que ela mesma matou e que vai voltar a falar dele assim que deixarmos, eu respondo que você está dizendo isso só pra me provocar, porque acha que sou louco o bastante para me apaixonar perdidamente por algo que nós criamos, um brinquedinho que era pra ser inocente. Tsuy retoma a história do amante, você sorri e eu dou graças a deus por não ter apostado merda nenhuma, é assim mesmo que eu falo, graças a deus que não apostei merda nenhuma, você me responde que eu fique tranquilo pois não estava pensando em me cobrar. Tsuy desabotoa a sua blusa branca e de seus pensamentos brota o amante morto. Se convenceu agora, você me pergunta, mas não me resta mais nada a fazer a não ser ficar em silêncio e observar Tsuy amando com todos os seus lábios e mãos e peles o homem de quem ela mesma se encarregara de tirar a vida, se é que assim pode-se chamar a louca paixão, criada por uma personagem fictícia, à revelia de seus autores. Parece não se importar minimamente com tais formalidades, pois esfrega seu corpo agora nu no corpo do  homem que pensa possuir, chama-o de Bill, diz nos seus ouvidos palavras doces e apaixonadas, Bill, ela diz, me ame daquele jeito todo seu, com sofreguidão e ternura, como só você sabe fazer. Eu penso que se era tão bom por que tinha de matá-lo, talvez por isso mesmo, você me devolve. Me excita ver que o amante Bill responde aos pedidos da bela Tsuy, tento fazer o mesmo com você, abraço seu corpo, beijo seu rosto, você corresponde, parece, até que, distraídos, ouvimos Tsuy chorar e maldizer a própria existência, levanta suas mãozinhas para cima, com os dois punhos cerrados e reclama que nós não a deixamos viver de verdade, que não temos a menor consideração pelo ser que diz que é. Só então percebemos que, embora Tsuy ainda esteja nua e sedenta, seu amante Bill evaporou, sumiu deixando no chão da sala as peças de roupa que Tsuy tenta agora recolher, enquanto chora, e chora cada vez mais. O sujeito acende mais um cigarro, amassa as folhas de papel e atira-nos a todos na lixeira de plástico negro e brilhante, eu, você, Tsuy e seu amante, como se soubesse que dali pra frente só restaria a vida mil vezes retomada, para sempre repetida. Está na hora de atirar no lixo o que do lixo não deveria ter saído, diz ele espremendo um cravo no nariz. 

* ( Ou: “Somos todos personagens?" )

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