Pés Descalços
f.n.
Ontem
saí de casa depois do almoço, cantando pneu. Estava superatrasado,
tinha que deixar minha filha de oito anos na escola, que é perto de
casa, mas não ao lado. Faltavam, digamos, uns cinco longos minutos
para o portão do colégio fechar, obrigando os pais, quase sempre
reincidentes, a atravessar a desagradável secretaria.
Quando se tem oito anos, a culpa é
sempre dos pais: a lição malfeita, a cara de sono na aula de
matemática, até um machucado no dedo mindinho. "Onde estavam
sua mãe e seu pai que não viram você pegar a faca na cozinha?"
Mas tudo isso nada tem a ver com o
que aconteceu ontem à tarde. Como ia dizendo, saía apressado de
casa, mas não a ponto de atropelar um sujeito pequeno, preto e
sorridente, com uma enxada no ombro, que atravessava o jardim e
olhava curioso. Parei, é claro, para ouvi-lo dizer:
- Ia pedir pra cortar a grama, mas
tá bem cuidada.... Será que o senhor não me arrumava umas roupas,
um sapato?
Olhei para os pés descalços e,
apesar dos cinco minutos que se esvaíam rapidamente, pude dizer:
- Passa aqui no fim do dia, lá
pelas cinco e meia, seis horas...
Não tinha certeza, mas devia ter
uns dois ou três pares de sapatos sem muito uso. Um deles poderia
servir. Roupa...? O pretinho era pequeno, mas sempre seria possível
encontrar uma camisa estampada, um moleton amarelo... Enfim, essas
coisas que a gente ganha no aniversário e fica logo imaginando:
"Ainda bem que tem muita gente nesse mundo precisando de uma
roupinha nova..."
A tarde voou como nunca. Às
voltas com um trabalho inglório, perdido entre boas idéias e
resultados duvidosos, mal consegui ouvir a campainha, lá por cinco e
meia, seis horas...
Minha avó sempre dizia que a
gente pode descobrir quem bate palmas à porta: "Se forem
palmas sonoras e decididas, pode jurar que há de ser um mendigo,
alguém que lhe cobra a consciência."
Hoje não se batem mais palmas...
Toca-se a campainha, aperta-se o interfone... Mas a insistência é a
mesma.
Não gosto da caridade. Não me
agrada a idéia de que algo possa mudar só porque você e uns poucos
decidiram repartir sabe-se lá que excedentes... Além do mais, a
culpa e a caridade andam juntas demais para o meu gosto. Quanto maior
a culpa, maior a necessidade de dar, em todos os sentidos, se é que
me entendem... A mulher que trai, o marido infiel, o patrão que
seduz a secretária... Todos querem dar, porque tem sempre alguém
querendo receber...
Filosofias à parte, não me
restava outra alternativa senão descer as escadas, abrir a porta da
rua e dar de cara com o pretinho, só que, agora, acompanhado por
outros cinco sujeitos, estes sim mal-encarados.
Olhei-os um a um. Examinei pés e
mentes. Me deu vontade de mandá-los pedir em outra freguesia. Mas
lá estava o pretinho, o único com a enxada no ombro e os pés
descalços, um sorriso envergonhado. Pode ser imaginação minha, mas
acho que já se julgava íntimo, cúmplice, um amigo de muitos
anos... E não seria eu capaz de rejeitar tão sinceras ilusões.
De modo que subi para juntar
algumas roupas, para em seguida, logo que possível, me desvencilhar
do sexteto.
Enfiei tudo numas sacolas de
supermercado. Tinha um casaco preto, uma camisa alaranjada com
estampas do Havaí, um suéter cinza, moletons, pares de meias, dois
pijamas de flanela... Achei que tudo isso podia ser útil de alguma
forma, nesses dias tão frios aqui no Sul.
Entreguei para o meu amigo negro e
virei as costas, sem esperar agradecimentos. Quando já estava
entrando em casa, juro que ouvi uma voz dizer: "E o sapato? Cadê
o sapato?" Olhei para o pretinho, como quem cobra uma
explicação. Mas ele me respondeu com os olhos. A voz não era a
dele. Não era ele que reclamava o calçado prometido.
- O sapato? - disse eu - Que
sapato? O que é que vocês estão pensando?
Acho que estava disposto a
enfrentá-los, desde que eles continuassem do lado de fora, e eu do
lado dentro do portão de casa.
Justo agora, neste exato momento,
é que uma história pode virar estória, ou não virar nada,
continuar irrelevante por toda a vida. E isso acontece sem mais nem
menos, em questão de segundos.
Percebi afinal que meu amigo
pretinho estava nas mãos dos cinco sujeitos mal-encarados. Talvez
por dívidas de jogo, talvez por amar uma mulher difícil e exigente,
quem sabe, por outros negócios escusos, o fato é que pés-descalços
não tinha outra saída: ou arranjava o sapato ou seria entregue à
sanha dos criminosos que acabariam por lhe surrupiar o único bem
que lhe restava, para ser bem claro, a própria vida.
Sei lá que tipo de código usam
os despossuídos de qualquer espécie, mas assim que entreguei nas
mãos do pretinho um par de sapatos brancos, quase sem uso, que me
apertavam no calcanhar, a tensão se dissipou. Um mulato, forte e
troncudo, mais que depressa arrancou das mãos do meu amigo os
sapatos que um dia não me serviram. O preto nada falou. Baixou os
olhos, talvez para não me encarar.
Só isso... E foram embora
caminhando pelo meio da rua, a desafiar carros, carroças, cães
vadios e o que mais lhes surgisse pela frente.
Eu fiquei ali parado, observando
os seis que se afastavam. Já não sabia se tinha agido certo ao
entregar o par de sapatos que, provavelmente, ia ser vendido para
saldar alguma dívida minúscula. Por outro lado, sabe-se lá o que
seria do pretinho com a enxada nos ombros se eu dissesse que sapato
não, de jeito nenhum, eu não daria um sapato para eles...
Covardia ou desprendimento? Medo
ou sabedoria? Entre sentimentos tão diversos, às vezes, não há
mais do que um passo em falso...
Pensei em correr atrás do bando e
tomar satisfações, exigir que devolvessem ao preto meu amigo o
calçado que a ele pertencia. Mas, sabe como é, já passava das seis
e estava na hora de pegar minha filha na escola...