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segunda-feira, 8 de julho de 2013

Pés Descalços

(Escrevi esse texto há uns doze anos. Não sei se já havia postado, aqui ou em outro espaço qualquer. Não atualizei a gramática, não interferi no curso da história, deixei como estava. Penso que alguém que já leu pode lembrar e reler, ou alguém que não leu, numa dessas... Sabe lá, né? É uma história, só uma estória.)


Pés Descalços

f.n.

Ontem saí de casa depois do almoço, cantando pneu. Estava superatrasado, tinha que deixar minha filha de oito anos na escola, que é perto de casa, mas não ao lado. Faltavam, digamos, uns cinco longos minutos para o portão do colégio fechar, obrigando os pais, quase sempre reincidentes, a atravessar a desagradável secretaria.
Quando se tem oito anos, a culpa é sempre dos pais: a lição malfeita, a cara de sono na aula de matemática, até um machucado no dedo mindinho. "Onde estavam sua mãe e seu pai que não viram você pegar a faca na cozinha?"
Mas tudo isso nada tem a ver com o que aconteceu ontem à tarde. Como ia dizendo, saía apressado de casa, mas não a ponto de atropelar um sujeito pequeno, preto e sorridente, com uma enxada no ombro, que atravessava o jardim e olhava curioso. Parei, é claro, para ouvi-lo dizer:
- Ia pedir pra cortar a grama, mas tá bem cuidada.... Será que o senhor não me arrumava umas roupas, um sapato?
Olhei para os pés descalços e, apesar dos cinco minutos que se esvaíam rapidamente, pude dizer:
- Passa aqui no fim do dia, lá pelas cinco e meia, seis horas...

Não tinha certeza, mas devia ter uns dois ou três pares de sapatos sem muito uso. Um deles poderia servir. Roupa...? O pretinho era pequeno, mas sempre seria possível encontrar uma camisa estampada, um moleton amarelo... Enfim, essas coisas que a gente ganha no aniversário e fica logo imaginando: "Ainda bem que tem muita gente nesse mundo precisando de uma roupinha nova..."

A tarde voou como nunca. Às voltas com um trabalho inglório, perdido entre boas idéias e resultados duvidosos, mal consegui ouvir a campainha, lá por cinco e meia, seis horas...
Minha avó sempre dizia que a gente pode descobrir quem bate palmas à porta: "Se forem palmas sonoras e decididas, pode jurar que há de ser um mendigo, alguém que lhe cobra a consciência."
Hoje não se batem mais palmas... Toca-se a campainha, aperta-se o interfone... Mas a insistência é a mesma.

Não gosto da caridade. Não me agrada a idéia de que algo possa mudar só porque você e uns poucos decidiram repartir sabe-se lá que excedentes... Além do mais, a culpa e a caridade andam juntas demais para o meu gosto. Quanto maior a culpa, maior a necessidade de dar, em todos os sentidos, se é que me entendem... A mulher que trai, o marido infiel, o patrão que seduz a secretária... Todos querem dar, porque tem sempre alguém querendo receber...

Filosofias à parte, não me restava outra alternativa senão descer as escadas, abrir a porta da rua e dar de cara com o pretinho, só que, agora, acompanhado por outros cinco sujeitos, estes sim mal-encarados.
Olhei-os um a um. Examinei pés e mentes. Me deu vontade de mandá-los pedir em outra freguesia. Mas lá estava o pretinho, o único com a enxada no ombro e os pés descalços, um sorriso envergonhado. Pode ser imaginação minha, mas acho que já se julgava íntimo, cúmplice, um amigo de muitos anos... E não seria eu capaz de rejeitar tão sinceras ilusões.
De modo que subi para juntar algumas roupas, para em seguida, logo que possível, me desvencilhar do sexteto.
Enfiei tudo numas sacolas de supermercado. Tinha um casaco preto, uma camisa alaranjada com estampas do Havaí, um suéter cinza, moletons, pares de meias, dois
pijamas de flanela... Achei que tudo isso podia ser útil de alguma forma, nesses dias tão frios aqui no Sul.

Entreguei para o meu amigo negro e virei as costas, sem esperar agradecimentos. Quando já estava entrando em casa, juro que ouvi uma voz dizer: "E o sapato? Cadê o sapato?" Olhei para o pretinho, como quem cobra uma explicação. Mas ele me respondeu com os olhos. A voz não era a dele. Não era ele que reclamava o calçado prometido.

- O sapato? - disse eu - Que sapato? O que é que vocês estão pensando?
Acho que estava disposto a enfrentá-los, desde que eles continuassem do lado de fora, e eu do lado dentro do portão de casa.

Justo agora, neste exato momento, é que uma história pode virar estória, ou não virar nada, continuar irrelevante por toda a vida. E isso acontece sem mais nem menos, em questão de segundos.

Percebi afinal que meu amigo pretinho estava nas mãos dos cinco sujeitos mal-encarados. Talvez por dívidas de jogo, talvez por amar uma mulher difícil e exigente, quem sabe, por outros negócios escusos, o fato é que pés-descalços não tinha outra saída: ou arranjava o sapato ou seria entregue à sanha dos criminosos que acabariam por lhe surrupiar o único bem que lhe restava, para ser bem claro, a própria vida.

Sei lá que tipo de código usam os despossuídos de qualquer espécie, mas assim que entreguei nas mãos do pretinho um par de sapatos brancos, quase sem uso, que me apertavam no calcanhar, a tensão se dissipou. Um mulato, forte e troncudo, mais que depressa arrancou das mãos do meu amigo os sapatos que um dia não me serviram. O preto nada falou. Baixou os olhos, talvez para não me encarar.
Só isso... E foram embora caminhando pelo meio da rua, a desafiar carros, carroças, cães vadios e o que mais lhes surgisse pela frente.

Eu fiquei ali parado, observando os seis que se afastavam. Já não sabia se tinha agido certo ao entregar o par de sapatos que, provavelmente, ia ser vendido para saldar alguma dívida minúscula. Por outro lado, sabe-se lá o que seria do pretinho com a enxada nos ombros se eu dissesse que sapato não, de jeito nenhum, eu não daria um sapato para eles...

Covardia ou desprendimento? Medo ou sabedoria? Entre sentimentos tão diversos, às vezes, não há mais do que um passo em falso...
Pensei em correr atrás do bando e tomar satisfações, exigir que devolvessem ao preto meu amigo o calçado que a ele pertencia. Mas, sabe como é, já passava das seis e estava na hora de pegar minha filha na escola...

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