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Ok?

domingo, 11 de outubro de 2020

NULO (11 DE OUTUBRO 2.020)

 NULO *

Fn


"O alvo é móvel, a mão indecisa. O medo que protege é o mesmo que paralisa."

(Lembra do Orkut?)



        1ª PARTE



Ainda não me perguntaram, mas se um dia o fizerem serei claro: não tenho a menor consideração por esse tipo de "artista" que se apega à realidade como o trapezista à rede. Como talvez dissesse Kurt Vonnegut em sua última viagem a Dresden, cabeças foram feitas para voar. Só isso por enquanto. 


Passo dias em silêncio. Mudo. Nem uma só palavra, sequer um suspiro, um murmúrio, só um sopro e um tapa na perna esmigalhando o mosquito da dengue. Há quanto tempo? Sei lá, mas há muito, muito tempo, dias, semanas, meses...  ou  nem tanto. Sou Luís Santiago, tenho que repetir várias vezes ao dia para não esquecer. Fui casado com Rosa Assis, todos os dias tento esquecer, várias vezes. Não por ela, nunca por elas, mas por mim, sempre por mim.

Vamos deixar para mais tarde as pieguices, antigo cidadão romano. Agora o que interessa é o que sonhei essa noite passada, Deus entrava pela janela do quartinho dos fundos.

Como eu sei que era Ele? A gente sempre sabe quando recebe uma visita ilustre. Não sei o que veio fazer, nem me interessa, logo a mim, um descrente, herege de nascença. Mas a imagem de um deus entrando pela janela do quartinho dos fundos me remete a outra questão: como poderia esse deus ser concursado? Não há hipótese de inventar um concurso para deuses e esse que entrou pela janela fez o que tinha que fazer.Sua opinião, por enquanto, não me interessa. Pode achar o que bem entender, ímpia cidadã romana. Não é ofensa, é que eu não sei ainda quem você é, o que pensa, até que ponto é real ou criaram você para invadir cabeças insanas, não sei nada a seu respeito. O que sabe você de mim? Um sujeito sentado, ou deitado, diante de uma tela com seus milhões de pixels, ou de uma câmera, o verdadeiro olho mágico do nosso tempo? O que mais sabe de mim?

Se fosse essa a hora de todos levantarem suas tabuletas com as notas, dificilmente alguém me daria um 10! Quem sabe, um 4 ou 5.Por algum motivo que eu desconfio qual seja, me agrada a ideia de me dirigir a um só interlocutor, um genérico, sem marca, sem rosto ou com um rosto montado a partir de certos detalhes banais. Alguém que tenha o poder de armazenar o que há de comum entre os humanos e por isso mesmo não poderia existir de verdade, na verdade não é hora de cogitar o que é ou não é verdadeiro, mas fica a ressalva. Pode ser difícil, mas não impossível, juntar detalhes comuns e dar forma a esse, ou a essa, que me ouve (o mosaico me fascina, mais que o prédio). Lá embaixo há um restaurante, uma cantina hipócrita, falsa italiana. Agora não deve ter quase ninguém, mas durante o dia, desde o almoço, vários pedaços desses interlocutores passaram pela cantina, comeram seus risotos, mastigaram seus carneiros, alguns reclamaram que estava duro, outros se deliciaram, e todos eles, um pedaço de cada um, forjam esse que me escuta: toda religião tem seus dogmas; se você não acredita em dogmas, pode estar criando uma nova religião cujo primeiro dogma é não acreditar em dogmas, basta reunir alguns seguidores e pedir isenção na Receita Federal, capisce?

Sabe aquele deus que entrou pela janela do quartinho dos fundos? Veio agora me dizer: "Cuide bem dos seus fantasmas, Luisinho", fiquei olhando com cara de besta, e ele concluiu: "Cuide bem desses fantasmas que rondam a sua cabeça, você tem um nome a zelar".

Foi um deles que me perguntou: "Aí embaixo tem o quê?" e eu devolvi: "Uma cantina italiana?". "Não, idiota...", disse o fantasma, "... aí embaixo tem uma cidade. Pense que você vai desaparecer, talvez em breve, mas a cidade ficará para sempre, pensou?" Só balancei a cabeça e ele sorriu: "Isso é o que todos pensariam, mas você gosta de imaginar que um dia a cidade vai desaparecer, e você vai ficar para sempre, não é, seu egocêntrico de merda?"

Me deu vontade de perguntar se ele estava se referindo a uma coisa que eu sinto de vez em quando, uma vontade incontrolável de imaginar que houve uma guerra e que os prédios foram derrubados, menos o meu aqui, onde eu vivia só, com meus fantasmas. Queria saber se era por esses pensamentos que ele me acusava de egoísmo, egocentrismo, não que seja a mesma coisa, mas foi o que notei nos olhos dele, naquele olhar fantasmagórico. 

Por que não perguntei?  

Você não consegue segurar um fantasma quando ele já disse o que tinha a dizer.

Já me acusaram de tudo. A mais falsa das acusações é a de que sou um plagiador, um homem incapaz de se levantar da cama e andar com as próprias pernas, tem sempre que se apoiar na muleta de alguém. De onde surgiu? Quem começou? 

Era primavera, poucas folhas iludidas caíam das árvores, mais ou menos como caiu daqui do 10º andar um vizinho, descontente com alguma vizinha talvez, embora tenha prevalecido a versão de que ele escorregou ao limpar os vidros da janela, isso às onze e meia da noite. No dia seguinte veio a polícia, anotaram o nome de todo mundo, menos o meu, não me dei ao trabalho de abrir a porta para eles. Aí começa a infâmia do plágio. Naquela mesma tarde, movido por um desejo incontrolável de sentir a morte se aproximar, subi de pijama e descalço no parapeito da janela, andei de lado, uns dois ou três passos de costas para a parede, me esgueirando como um ladrão de joias raras. Vertigem, pavor, êxtase? Desde quando os sentimentos de alguém prestes a cometer suicídio interessam àqueles que lá debaixo ululam aos berros de "Pula, pula, pulaaaa!"? Pula é o caralho, facínoras. Tava só a fim de sentir o gostinho do perigo da morte que se aproxima.

Como não pulei, nem caí, frustrei repórteres, fotógrafos, cinegrafistas e o povo em geral. Não me perdoaram. Vem daí a infâmia de "plagiador" de que tanto me acusam. Chegaram a publicar uma matéria num desses tabloides sensacionalistas: "Plagiador imita suicida no mesmo prédio, mas desiste de se atirar". Um homem é culpado por arriscar sua vida, mas se não a perde é culpado por decepcionar a plateia. É por isso que eu sei que lá embaixo as coisas vão bem, obrigado, como sempre foram, doce covil da hipocrisia. 


Você sabe quem você é? Taí uma perguntinha da autoajuda que ninguém aguenta mais ouvir. Nem eu, mas só até o  momento em que uma luz entrou pela janela da sala, invadiu minha cabeça e me fez concluir: "Porra, não existe isso de eu sou, tu és, ele é..." Imagina uma corrida de F1. Um carro tá em primeiro, disparado na frente, a equipe vibrando,  vai ser uma vitória de ponta a ponta. De repente, tal como já aconteceu tantas vezes na vida dos pilotos, o motor engasga, a embreagem trava, dá uma pane elétrica e o chefe da equipe manda o ex-futuro-vencedor parar no acostamento, tirar o volante, sair e... Chutar o carro??? "Não, isso não... segura o homem!"

Nada é definitivo nessa vida, não existe isso de essência, nem depois da linha de chegada. Quem garante que o vencedor não será punido por alguma irregularidade, uma ultrapassagem que jogou um adversário no muro? Na vida é a mesma coisa. Eu não podia imaginar que iam me acusar de plagiar o cara que se atirou da janela do 10º andar, mas a ideia de sentir a  proximidade da morte só me ocorreu depois que li a notícia e ouvi os comentários sobre a tragédia. Foi um "plágio culposo", digamos assim, um "suposto plágio culposo".


Todo mundo aqui já sabe que eu tento esquecer Rosa Assis, minha ex-mulher, várias vezes ao dia. Mas o que ninguém sabe é que todas as noites eu procuro lembrar de Rebeca Flores, irmã de criação de Rosa, talvez para ainda tentar convencê-la de algo que ela raras vezes admitiu, e que vem a ser a atração que um exercia sobre o outro, sobre o outro em todos os sentidos, capisce?

Comigo as coisas acontecem dessa forma, nunca entendi por quê: Rosa era decidida, impetuosa, foi-se como um foguete que sobe e não deixa rastro. Rebeca, embora sua irmã, nunca se resolvia, tava mais pra balão de ensaio do que pra bombinha de São João. Podem interpretar ao pé-da-letra quando eu digo que fugia como o diabo da cruz da atração que sentia por mim, até mesmo quando gozava como uma louca, uma louca que nunca foi de verdade. Uma vez chegou a desenvolver uma tese para dizer que aquilo que estava acontecendo entre nós tinha que acabar: "Isso não faz parte da minha essência, Luís". Se eu fiquei puto? Imagina. Era casada, é claro. Estava casada a maior parte do tempo, a não ser quando se permitia pequenas transgressões à sua essência, tá bom...


Tem uns que me chamam de cínico; outros, de cético. No fundo, nenhum deles me respeita e eu tenho por todos igual consideração. Quem são eles? Um dia, quem sabe, as máscaras irão cair, mas por enquanto é inútil tentar arrancá-las.


Pista 1: 


Você não tem um problema. Aí chega alguém e levanta a hipótese de você vir a ter em breve aquele problema que não existia. O passo seguinte é chegar uma terceira pessoa e vender a você uma solução para o tal problema que poderia aparecer a qualquer momento. 

Eu sei que não há nenhuma novidade nesse golpe, utilizado há décadas, talvez séculos, por máfias, quadrilhas, milícias,  corporações policiais corruptas, que deviam combater o crime, mas dele se beneficiam.

Por que é que eu estou contando essa história? Porque numa tarde de sábado, Osvaldo, o porteiro, entregou a todos os condôminos um abaixo-assinado pedindo proteção contra os assaltos constantes nas proximidades do prédio. Para quem não lê as letrinhas miúdas, tudo bem. Mas, abra a gaveta, pegue a lupa e veja que lá embaixo havia o compromisso de pagar uma pequena taxa pela tal "proteção". 

Sempre questionador, perguntei se já haviam assaltado algum apartamento aqui. A resposta de Osvaldo não é difícil de adivinhar: "Doutor, ainda não aconteceu, mas se não tiver quem nos proteja, quem sabe..."

O medo é a ponta da lança infectada. Basta tocar de leve, a vítima faz o resto. 

Aí vem a pergunta: "Quantas vezes você já sofreu pra não sofrer, Santiago?"

A resposta não demora: "O mesmo número de vezes que você já se arrependeu por ter ficado alegre quando achava que devia sofrer, Luís"

Uma coisa é o sujeito perder as ilusões. Outra, bem diferente, é o cara que perdeu as ilusões concluir que não pode mais se iludir. 


Pista 2: 


Alguém liga, eu não atendo. Ligam de novo, entra a gravação: "Deixe sua mensagem e tal..." A voz de quem ligou é suave, feminina, educada. Diz que nós do condomínio estamos pagando à pessoa errada, que ela não está autorizada a receber as contribuições e que em breve teremos a visita de um... Cortou. 


"Meu amor, eu sei que não acredita, mas ontem na cama você me chamou de 'Rosa'. Eu tava meio dormindo, meio acordada, foi logo depois da transa. Sei que não fez por mal, não fez pra me magoar, para isso você utiliza outros instrumentos. Com certeza foi inconsciente, mas não importa, ela estava aí, dentro da sua cabeça, talvez dentro do coração também. O que eu senti? Não sei... Me coloquei no lugar dela, de Rosa, minha irmã de criação e sua mulher, esposa, como você odeia falar. Temos que pôr um ponto final nessa loucura que mal começou, Luís, Santiago, meu amor". 

(Começou com "meu amor", terminou com "meu amor". Jamais vou destruir, a carta, nem os sentimentos)


Pista 3: 


Diante de uma iniquidade, até que ponto você reagiria à altura, mesmo sabendo que pode correr um sério risco?


Um dia acordei com uma mensagem que enfiaram por baixo da porta depois de tocarem a campainha. Claro que abri a porta, não sem antes olhar a imagem da câmera de segurança e constatar que não havia ninguém escondido no corredor. Peguei o envelope, pensando que era alguma coisa ligada ao porteiro, à proteção que ele vendia, é o que todos vocês também devem estar achando, correto? 

Errado. Leia e tire suas conclusões:


"Luís, vi que você tentou se matar pulando da janela do seu apartamento. Felizmente nada de mal lhe aconteceu e você desistiu de imitar o suicida que caiu daí limpando os vidros. 

Por um momento cheguei a pensar que desistiu a tempo porque pensou em mim, ou até mesmo em minha irmã. Doce ilusão, senhor Santiago. Egoísta como é, sei que você fez aquilo por si mesmo. Vai negar?

Um beijo, da sempre sua

                            ..."


Assinava desse jeito, com três pontinhos, amargas reticências da vida. Me achei romântico nesse comentário, mas não egoísta por não ter feito o que jamais me passou pela cabeça. Penso que vou entrar para a história como "o plagiador suicida, salvo a tempo por um ataque de egocentrismo". Caralho, como as pessoas complicam a vida.


Pista 3 e Meio: 


Recebi pelo correio tradicional uma carta dirigida a Lulu San, só quem me tratava assim era Rosa, minha ex, quando queria me provocar. Mas agora quem assinava era a outra, ela mesma: Rebeca Flores, a irmã de má criação.


Pista 4: 


"Querido Lulu San:

Estive pensando naquela ridícula tentativa de se matar, que não deu em nada, é claro. Acho que foi evidente o desejo de chamar minha atenção para a sua triste figura, nada quixotesca, Santiago Luís. Lamento informar, mas foi em vão. Estou de luto, Marcus Aurélio morreu."


Imediatamente corri para o telefone e liguei para Rebeca com a melhor das intenções: cumprimentá-la e dar-lhe os pêsames pela morte de seu quarto marido. Escute o diálogo que travamos:


"Meus sentimentos, Rebeca"

"Por que, Lulu?"

"Ôôô... pela morte do Aurélio, né?"

"Ah, obrigada, recebeu a carta?"

"Claro, como você está?"

"Tô ótima. Fui eu que matei aquele safado, filho da puta"

"O que, Rebeca??? Ficou louca?"

"Você é que não entendeu, Luisito. Matei Marcus Aurélio no sentido figurado, pra mim ele morreu, percebe?"


Decepção indisfarçável. Não que eu desejasse a morte de Marcus Aurélio, enfim um bom sujeito. A decepção vinha por minha conta: como é que eu ainda me dava o direito de acreditar nas "surpresas" de Rebeca Flores? 

Depois, perguntei o que M A tinha feito para merecer tão trágico destino, o de ser assassinado, sem piedade e sem direito a defesa, na cabeça de Rebeca. 

"Lulu San, descobri que o canalha pensou em outra na hora de gozar comigo. Você pode imaginar ofensa maior a uma mulher com as minhas qualidades?"

Ela não quis me contar como descobriu a "traição", parece que sob enorme pressão Marcus Aurélio confessou. Sei que Rebeca passou a odiar uma tal de Valéria, namorada adolescente de Marcus Aurélio. Daí, pensei: "Aurélio e Valéria convidam V. Sa e tal e coisa..." Podia dar certo. E eu ali ouvindo aquilo tudo.  


Medo é uma palavra singela para um sentimento tão contraditório. Lá de cima, olhando aqui para baixo, nunca senti medo algum, nem quando exibia o dedo médio em riste para os fanáticos que desejavam a morte de uma pessoa que nem conheciam. Agora, olhando aqui debaixo para a minha janela no décimo andar, uma ideia sinistra invadiu meus pensamentos: o mal está em toda parte. Surge às vezes por acidente; outras vezes por um descuido do bem. Não cheguei a pensar na queda, nem imaginei meu corpo despedaçado aqui nesta calçada onde estou. O medo, o pavor, a incerteza, tudo isso ganhou corpo ao sentir o mal empurrando meus calcanhares, cheguei a tremer.  


Entrei no boteco, aquele ali no beco que deságua no meio da quadra. Pedi uma Cuba-Libre, ninguém sabia o que era. Tive de explicar como é que fazia. Tomei uma, tomei duas, tomei três, enchi a cara, fiquei escutando conversa de bêbado e pensando em segundo plano: liberdade é subir na janela, andar de lado no parapeito minúsculo, desafiar a multidão só pra sentir a possível morte que se anuncia? Se for isso, onde devemos enfiar o acaso de um escorregão, uma tontura, um tropeço imprevisto? Não fez parte do pacote, entram na pasta "Você devia ter pensado nas consequências, Lúis Santiago"

Um dos companheiros de boteco, talvez o mais bêbado de todos, foi direto ao ponto: "Até compreendo essa bobagem de vencer o medo para ser livre. Mas e se algum infeliz estivesse passando aqui embaixo, justo na hora que você despencasse lá de cima? A liberdade do pobre sujeito ficava onde?"

Voltei pra casa, subi pela escada. Perdi o fôlego no terceiro-andar. Sentei no degrau, tirei do bolso umas folhas em branco e anotei:


"O Mito da Feira Livre.


Dois personagens, um homem e uma mulher, caminham  lado a lado por uma feira livre. O personagem A olha apenas para a sua direita. A personagem B caminha olhando somente para a sua esquerda. Ao chegarem nas últimas barracas, o personagem A relata que não encontrou uma banca sequer com tomates; a personagem B diz que tomate havia, o que ela não achou foi chuchu, nem com 'X' nem com 'CH'. 

Qual dos dois está falando a verdade? Os dois? Ou nenhum deles?

Um terceiro personagem, que atravessa a feira olhando ora  para a esquerda, ora para a direita, iria descobrir barracas com tomates e chuchus. Mas este personagem C não existe, não foi colocado no início da história, não pertence ao mito. Ele é onisciente, e só é onisciente porque tem a sua própria realidade.  

O que importa não é o mundo objetivo, exterior a cada um de nós, mas a consciência que temos dele.

Husserl ia gostar dessa feira."


"Para a Fenomenologia o que interessa não é o mundo que existe, mas sim o modo como o conhecimento do mundo se realiza para cada pessoa. A redução fenomenológica requer a suspensão das atitudes, crenças, teorias, e coloca em suspenso o conhecimento das coisas do mundo exterior a fim de concentrar-se a pessoa exclusivamente na experiência em foco, porque esta é a realidade para ela."


(Mais tarde, rabisquei novas dúvidas nas margens do papel: "O que importa não é a feira, nem as barracas, nem o chuchu ou o tomate. Só o que interessa é o caminhar. Será??? Não nessa vidinha de alhos e bugalhos. Acho que Rosa diria: "O que importa é ter dinheiro pra comprar alho e tomate. Chuchu, não, que eu não gosto.")


Pista 5:


Isso que você diz que sonhou, sonhou de verdade? Ou alguém lhe disse, convenceu você que tinha sonhado? Há uma terceira hipótese, Santiago, você pode ter se apropriado do sonho de outra pessoa, alguém que contou a você e a partir daí você conta como se fosse seu, até que passa a vigorar em sua distorcida mente como verdade no mundo dos sonhos. 

Certas mentiras transformam-se em "verdades" pela simples ação corrosiva do tempo, também nisso Rosa e Rebeca bebiam em fontes diversas. Um dia, uma tarde de domingo pra ser mais exato, um desses domingos massacrantes em que chove sem parar, Rebeca e Rosa por pouco não se pegam a tapas:


Rosa: "Você sabia que era mentira?"

Rebeca: "Sabia, na época sabia que era mentira, mas com o passar dos anos já não posso dizer em sã consciência..."

Rosa: "Como se você tivesse essa tal consciência sã."

Rebeca: "Vai começar? Só o que eu quis dizer é que não existe essa verdade eterna. Tudo se transforma com o tempo."

Rosa: "Concordo em parte. O tempo não muda nada, ou melhor, o tempo mudou você e você mudou a verdade."

Rebeca: "Voltamos ao ponto de partida: que verdade? A que ficou lá atrás não  é a mesma que provamos hoje."


Depois, uma acusou a outra de tergiversar, procrastinar, torcer os fatos, que já nem lembro quais eram, em seu próprio benefício, e foi aí que a coisa esquentou. Até a hora em que entrei em cena para perguntar o que era mais grave: a mentira que se transforma em verdade ou a verdade que acaba virando mentira? Sim, porque neste segundo caso estão os assassinos absolvidos por falta de provas, os traidores que viram santos, os políticos heróis da pátria.


Que importância pode ter isso agora? Que importância tem isso, Luís Santiago? Sei lá, mas pode ser uma pista.


Parêntese: Passei a frequentar o boteco no beco todas as noites, depois das onze, desde que conheci "A Sortista". Antes seria preciso explicar direitinho que sortista era essa, mas apenas na hipótese de Luís Santiago dedicar-se à estúpida tarefa de escrever sua autobiografia ou um simples texto linear. Como não é esse o caso, deixe que a sortista apareça e desapareça quando bem entender. 

"Tire a máscara. Eu leio íris, meu filho."

Antes, acho eu que foi antes, começou a falar que algumas pessoas quando iniciam uma caminhada sabem aonde vão, mas que eu, cuspiu um pedaço de palito no chão do bar, um pequeno estilhaço caiu na mesa, tampo de mármore rachado. 

"Quantas sardinhas fritas já andaram por aqui", juro que foi isso que pensei. 

Tirei os óculos. A sortista olhou bem no fundo dos meus olhos, que deviam andar vesgos naquela hora, fechou os seus, deu umas duas ou três balançadas de cabeça e:

"Você é daqueles que vai passar o resto da vida escrevendo e reescrevendo a mesma história."

Dito isto, sei lá quando voltei a vê-la novamente, mas passei a frequentar o boteco todas as noites, depois das onze.  


Pista 6: 


Sempre que se sentia próximo a uma explosão de ira, na maioria das vezes injustificada, criava, para tentar escapar deste sentimento que não admitia possuir, um personagem, que no fundo era ele mesmo, com todas as suas qualidades e defeitos, mas que se limitava a acusá-lo, a debochar das atitudes que tomava, a dizer que ele não passava de um ser desprezível, incapaz de se controlar, que ainda haveria de pagar caro por essa irracionalidade...

O efeito era, invariavelmente, a revolta que brotava de seu "eu" real contra o tal personagem e suas acusações injustas.

Com isso, distraía-se, deixava de dar atenção ao motivo que por pouco não detonara a ira, um processo que levaria ao ódio, ao desejo de vingança e mais tarde ao doloroso arrependimento. Podia não resolver, mas era, de certa forma, engraçado e reconfortante.


(Você está, não só viajando, como também adjetivando, tergiversando demais e abusando das vírgulas, caro Luís Santiago.)

"E você adora um gerúndio, seu crítico de merda!", defendeu-se o pobre plagiador escorregadio.


Atalho:


"Como é mesmo o nome disso que você está bebendo, Luís?"

"Cuba Libre"

"Não tem nada a ver com Fidel e Raul, tem?"

"Tem não. É uma bebida antiga, bem mais velha que os dois."

"O que eu queria te falar é mais ou menos o seguinte, Luís: você oferece Cuba Libre a um amigo aqui na mesa do boteco. O sujeito aceita, bebe... Você oferece outra, ele também aceita e bebe, De repente começa a passar mal do estômago. O cara tem gastrite, úlcera, hérnia de hiato, uma doença dessas do estômago ou do esôfago. Não foi culpa sua, você não sabia que o cara tinha aqueles problemas, certo?"

"Sim, e daí?"

"Daí que, mesmo assim, muitas pessoas se sentem culpadas porque ofereceram bebida para um sujeito que sofria de problemas digestivos."

"Eu não. Como é que eu podia saber? O cara não me disse nada?"

"Perfeito. Não tem lógica uma pessoa se sentir culpada quando não tem consciência do mal que está provocando. Mas existe um segundo passo, Santiago: quem mandou o cara se embebedar? Foi ele o responsável por seus problemas. É automático: na falta de alguém para acusar, culpamos a vítima."

"E por que diabos você está me dizendo tudo isso?"

"Não sei se você sabe, mas eu sou advogado e primo do Osvaldo."

"O porteiro?"

"Isso, Osvaldo, o porteiro injustiçado, que às vezes gosta que o chamem de Ôsvald."

"Entendi, você é advogado do porteiro do meu prédio?"

"Ainda não sou advogado, por enquanto só primo. Mais tarde, se fizerem alguma acusação, pode ser que o represente."

"Sobre aquela história do porteiro ser porta-voz de uma milícia que vende proteção, qualquer coisa assim?"

"Pois é, vamos ver, vamos ver... Osvaldo, ou Ôsvald, só ofereceu a Cuba Libre. Bebeu quem quis."


De repente nossa cabeça (ou nossa alma, segundo alguns) recupera momentos de felicidade.

Sem que a gente saiba a razão, sem qualquer motivo, a gente lembra que foi feliz naquele instante recuperado. Um padre de batina branca, em transe, esbarra nas pessoas e nos objetos, se joga no chão e se debate, finge estar possuído, fala palavras estranhas, ofensas em dialetos extintos? De repente se levanta e sorri. Diz que sua intenção era mostrar ao rebanho como o demônio pode ser traiçoeiro, até para fingir que não existe.  

Penso que a cena pode ser engraçada, patética, mas não é isso que me deixa feliz, o que é então? Não há motivo, a liberdade assusta, alguém diz na mesa ao lado, mas que importância tem a liberdade dos outros? Como bradava o padre no púlpito: "A verdadeira fé despreza os motivos".

  

Não demorou muito e descobri que aquele cara que parecia o mais bêbado de todos no bar do beco jamais havia colocado uma gota de álcool na boca. Se fingia de bêbado, todas as noites, mas para quê? 

Talvez para rir dos estúpidos que desprezavam suas opiniões só porque achavam que eram delírios de um bêbado. Nunca me confessou, mas eu descobri sozinho, havia algo em seus olhos, um escárnio, ou o súbito interesse por alguém que ouvia suas pretensas loucuras.

Imitava um ébrio como poucos, mas sem exageros. Quando queria, tropeçava nas próprias pernas, enrolava a língua ou ficava quieto no seu canto, com os olhos fechados. Perguntei seu nome. Respondeu que não se lembrava, mas devia se chamar Leandro ou Evandro, o cara era um artista. Depois me olhou sério e disse que era um soldado, um soldado da verdade, e que todos assim o chamavam. 


Pista 7: 


Claro que o soldado logo concluiu que eu poderia desmascará-lo e provar para todos no bar do beco que ele só bebia cerveja sem álcool, vinho sem álcool, coca-cola sem rum, essas coisas chatas e sem efeitos.  


"Meu herói é o Coringa."

"Que Coringa?"

"O Coringa do Batman, conhece não? Um cara do mau que não perde o bom humor. Grande figura."

"Ah, o Curinga..."

"É Curinga? Que seja... Na minha vida de soldado da verdade tô sempre aprendendo coisas novas. Curinga, ele mesmo. O mal está em suas entranhas, mas ele troca a vitória por uma bela gargalhada. Muito mais interessante do que o babaca do Batman, morcegão do establishment. Concorda, Luís?"


Não me lembro ao certo, mas acho que o soldado fez uma bela e extensa narrativa de quase uma hora, onde esgrimia argumentos como: "Você pode apreciar um sujeito mau não pela sua essência, mas por sua habilidade em denunciar os canalhas que você mesmo subornou, Luís." 

Não seria tolo a ponto de gritar: "Nunca subornei ninguém, recruta!", e depois ainda ter que encarar aquele sorriso oculto, indisfarçável, talvez mais em mim do que nele. O que eu disse foi algo como: "Se vamos perdoar o mal em sua essência, melhor dar férias ao carrasco."


Desvio de Rota: 


"Quem usufruiu das sombras que recolha do pátio as folhas secas"

Sonhei com isso. Foi um sonho teórico, desses que você enxerga em cores borradas, movimentos alternados, ora lento; ora mais lento ainda. Mas eu não estava no sonho, via tudo do alto, as cores, o som do vento nas árvores, cada cena em sincronia com lembranças, essas que se vão quando abrimos os olhos. 

Uma hora foi Rosa, Rebeca em seguida, o soldado... Todos me diziam: "Não, Luís Santiago, você nunca desejou sentir a morte de perto, nem o medo que ela nos traz."

Agora, mas só agora depois de acordar, podia encarar cada um deles e dizer: "É por isso que todos vocês se agarram com Deus e seus intermediários, não é? Na hora que o desconhecido se aproxima, que venha o maior e mais poderoso de todos os desconhecidos."

O que me responderiam se eu lhes dissesse que o verdadeiro Deus odeia e despreza a covardia? Mas eu sou ateu, agnóstico, iconoclasta, anarquista, o diabo... Não posso usar um argumento desses. Ainda bem que foi só um sonho e suas reticências.


Cena 1: 


Luís Santiago chega ao prédio onde mora, o porteiro Ôswald  entrega para ele um pacote pequeno. Luís pergunta o que é, o porteiro responde: “não sei, não abri”. Luís quer saber quem enviou o pacote, Ôsvald responde: “sei lá… Quem entregou foi um drone”. Luís nota que o  pacote é mole, contém alguma coisa como uma peça de roupa ou outros envelopes, sabe-se lá quantos. Assim que entra em seu apartamento. Luís Santiago senta-se no sofá da sala e abre o pacote. Lá dentro há um bilhete, tipo uma dedicatória: “Da Bety para Santiago, com amor”  Santiago fica pensando “que Bety é essa? não conheço Bety nenhuma...” Vamos ao que interessa, além do bilhete, havia no pacote pequeno e mole uma calcinha cor de vinho. “Ah, lembrei dessa cor, disse Santiago um pouco alto, mas que porra de Bety é essa?” 


Desculpem por voltar ao tema, mas preciso revelar: o morto ressuscitou na quarta-feira. O morto era "o morto", aquele que Rebeca deletou. Pelo interfone, Osvaldo perguntou se era pra deixar um tal de Aurélio subir. Não deixei barato: "Que porra é essa de tratar minhas visitas dessa forma, Osvaldo? Mais educação, mais educação..." O porteiro não entendeu, mas deixou o tal do Marcus Aurélio subir. 

Entrou, sentou, falou um monte de bobagens, menos uma: queria minha inestimável colaboração para reatar com Rebeca. Respondi que não tinha esse poder, e mesmo que tivesse não o faria: "Aurélio, vá em frente. Rebeca não é mulher de voltar atrás nessas coisas...", foi só que eu disse, com a melhor das intenções, mas que soou como uma senha para ele me olhar com aquela cara de "Já entendi, você tá comendo, não tá, seu filho da puta?"


Cena 2: 


Marcus Aurélio conta que estava escrevendo um conto, talvez virasse uma novelinha no futuro, o título ele já tinha: “Meu marido tem uma amante bi, mas não sabe que eu sei”. Me perguntou o que eu achava, respondi: “Interessante, mas pra título fica meio grande, né não?” Pra resumir a encrenca, disse que estava escrevendo com um pseudônimo. Perguntei qual era, e ele, na maior cara de pau: “Rebeca Guedes”. Porra, Marcus Aurélio, foi por isso que ela te deixou, você nem pediu autorização nem nada, não é? Disse que não e eu acrescentei: “Pelo menos, percebeu que Rebeca Guedes ainda por cima é um cacófato? Caguedes, entendeu?” Não havia entendido até aquele momento. Só me faltou o quê? Mandá-lo à merda, é claro, coisa que não  fiz porque tenho sentimentos e não gosto de chutar cachorro morto. 

De noite, no Bar do Beco, Luís perguntou a Lola, leitora de íris: “O que você faria se recebesse um envelope com uma calcinha cor de vinho e um bilhete assinado por uma tal de Bety?” Lola não pensou duas vezes: “Ia lá e comia ela de novo. Não é o que a vadia tá querendo, Luisito?” Foi só empatia, isto é, respondeu como se estivesse no meu lugar? Ou ela não criava barreiras do tipo “você é mulher e eu só gosto de homem”?

Depois que M A foi embora senti que deveria agradecer a ele qualquer hora dessas. Por que? Por ter confirmado uma teoria que há tempos rondava minha cabeça: "Somos nós, os homens, que levamos as mulheres a pensar que tudo que queremos delas é sexo, sexo e mais sexo, com exceção daquelas que não nos despertam nenhum desejo e que, portanto, podemos ser apenas amigos. Mas, convenhamos, aí sim a coisa será ofensiva", concorda?

Aurélio sofria de verdade com a separação. Por que ele, logo ele, confirmava a teoria? Isso é para quem sabe ler os olhos de alguém, como Lola, a sortista, por exemplo.


Saída de Emergência:  


Coloque-se no meu lugar: o que você acharia se Osvaldo, o porteiro porta-voz da máfia da proteção, perguntasse disfarçadamente: "Doutor Luís, um sujeito de nome Cássio foi lhe procurar?" Provavelmente, assim como eu, você responderia que não, nenhum Cássio havia procurado você: 

"Que Cássio é esse, Osvaldo?"

"Um sujeito que diz que é advogado e jura que é meu primo, doutor Luís."

"Ah, tá... Esse me procurou. Veio com uma história de que você não tem nada a ver com a cobrança pela proteção. Até sugeriu um processo contra insinuações, calúnias,  algo assim. "

"Doutor Luís, já se sentiu obrigado a fazer algo que não deseja pra salvar a própria pele?"

"Primeiro, não sou doutor; segundo, não me chame de Luís, prefiro Santiago, pode ser?"

"Claro. Sim ou não, Santiago?"

"Não me lembro, Osvaldo. Mas qual a razão da pergunta?"

"Esse Cássio, o tal que se diz advogado e meu primo, nunca foi nem uma coisa nem outra. Quando entreguei aquela carta a você e a todos os moradores, tava cumprindo ordens, tipo: 'Faz o que é melhor pra você, Vadão..."

"E ele ainda te chama de Vadão? Parece que jogou bolinha de gude contigo, Osvaldo."

"Pra você ver... Primeiro me obriga a fazer uma coisa que eu não quero; depois me defende, dizendo que eu não tenho nada a ver com aquilo que ele me obrigou a fazer. O que é que esse cara tá querendo?"

"Amedrontar, ameaçar, conquistar o controle de tudo. De preferência, em nome da lei. Se é advogado ou não, isso é o de menos. Intimidação, é assim que esses bandidos agem."

"Não foi só aqui no prédio que esse dr. Cássio encarnou, Santiago. Ouvi uma zoeira, uma conversa, tem outros prédios aqui perto com o mesmo problema."


Terminada essa conversa, fui ao beco, talvez para observar de longe aquele falso advogado de nome Cássio, que o porteiro Osvaldo dizia ser um dos chefes da máfia da proteção. Cássio não apareceu. O soldado da verdade pregava, com sua voz enrolada de falso bêbado: "Poder é o que todos procuram, mesmo sem saber. A própria riqueza procura o poder, sem se dar conta de que está numa relação incestuosa, pois é filha dele. A Fortuna é filha do Poder. A Glória é filha da Fortuna e neta do Poder. Geração após geração, incesto! Incesto!", e deu uma gargalhada apavorante, que só eu entendi. 


Pista 8 (Bifurcação em Y): 


Se descobrir por onde andava o advogado Cássio parecia impossível, o mesmo não poderia dizer sobre as notícias que corriam a seu respeito. A primeira delas foi Rosa Assis, a eterna-ex-sempre-presente, quem intermediou: "Luís Santiago, acabei de receber a visita de um famoso advogado, de nome Cássio Meireles. Ele queria saber por que diabos você não aceita entrar para um tal de Comando de Combate aos Corruptos, a sigla CCC não me é de todo estranha. Disse que você poderia até chefiar esse grupo e que seria fartamente recompensado, palavras dele, palavras dele, Santiago... Quanto a mim, queria que me explicasse por que diabos forneceu a este senhor Meireles meu nome, endereço, telefone, e-mail, cpf...? O cara sabia de tudo a meu respeito, Luís. Por que você não me esquece, Santiago? Por que?" 

Não me deu tempo para explicar coisa alguma. Como costumam fazer as mulheres ultrajadas, Rosa bateu com o telefone na minha cara e saiu do ar por uns tempos, não sem antes lançar uma de suas farpas: "Por que não fura os olhos, Lulu San? Você já vive na escuridão mesmo, não precisa deles."

O que respondi ou deixei de responder não faz a menor diferença, Rosa nunca me ouvia, qualidade que eu sempre apreciei e tentava imitar. Não ouvir o que eu dizia. Às vezes acho que sou a única pessoa a me escutar, e uma das muitas a não querer.


Pista 9 (Bifurcação em T): 


Parece que as duas irmãs malcriadas andavam sempre juntas. Logo depois do monólogo Rosa Assis, eis que Rebeca Flores me confronta no Skype: 

"Já tô sabendo de tudo, não adianta negar."

"?"

"Não seja cínico, Luís, nem faça essa cara de bom moço só pra me deixar na dúvida."

"??"

"Quem é essa tal de Lola que o advogado diz que você tá comendo?"

"Porra, mas não é possível... Esse filho da puta já te descobriu também, Rebeca?"

"Cássio Meireles? Me pareceu um bom sujeito, falou de Rosa, sua ex-esposa, minha ex-irmã de criação, sabia que brigamos feio?"

"Você e o advogado?"

"Não se faça de engraçadinho, Lulu. Eu e Rosa brigamos para sempre. Por sua causa."

"Isso eu já sabia, sou sempre eu o culpado. Quê que eu fiz agora?"

"Você está sempre no meio de todas as brigas, Santiago Luís. Até parece um triângulo amoroso."

"Parece?"

Com a entrada em cena desse novo personagem, Cássio Meireles, cheguei a cogitar que o triângulo amoroso poderia se transformar num quadrado mágico.

"Deus-me-livre, Rebeca. Só pra você ficar sabendo, Lola é a sortista, aquela que disse que eu vou passar minha vida inteira escrevendo e reescrevendo a mesma história."

"Gostei, concordo com ela. Pede pra ela dar uma passadinha aqui em casa pra ler minha mão?"

"Ela não lê mão, lê íris. Você abre os olhos e ela te enxerga por dentro, até a medula da alma, se é que alma tem medula."

"Gostei mais ainda. Marca uma consulta."

"Tá, quando ela aparecer no boteco, eu marco." 

"Ok, agora me fala se é verdade o que o advogado me contou."

"Só se você fizer o favor de revelar o que ele te contou."

"Disse que você está preparando uma reedição daquela triste cena na janela do seu prédio, lembra, né? Só que o advogado disse que agora você vai pular de verdade. Por que, Luisito? Por que está pensando em se matar, de novo, seu louco?"


A sortista parecia admirar-se no reflexo dos meus óculos. Perguntei se queria que eu os tirasse, Lola respondeu que ainda não estava lendo íris naquele momento. Segurou minhas mãos e eu tirei os óculos, mas só para observar sua beleza expressiva, a expressiva beleza das mãos de Lola. Parece que ela percebeu, porque recolheu as mãos num gesto brusco. Ficou me olhando e antes que eu elogiasse seus olhos, seu rosto, suas mãos, enfim, qualquer coisa que não fosse minha, Lola disse: "Você não pode viver do que os outros pensam a seu respeito, menino Santiago, ninguém pode..." Levantou-se, ofendida, acho eu, e lá se foi beco afora, não sem antes virar de um só gole o absinto no fundo do copo, do meu copo, Lola, Lola...


Ponto Fora da Curva n° 1: 


Não sei como entraram, não tenho ideia. Sim, ou melhor, não, não há sinais de arrombamento. Ainda não posso dizer com certeza o que levaram, mas aqui não havia nada de valor para gente desse tipo. Penso nesse tipo de gente que invade a casa dos outros valendo-se de um descuido, foi isso, não foi? Não acha que foi? Sei, como já disse, não há sinais de arrombamento, também não deixaram nenhuma pista, pelo menos nenhuma pista visível, é isso? Não, ela não, é só uma amiga, irmã de criação da minha ex, entendeu? Está muito nervosa para depor agora, mas nunca me falou sobre qualquer ameaça, eu sim, teve um dia que pensei estar sendo ameaçado, mas não era nada de concreto, ah, mesmo assim vocês querem os detalhes? Posso saber o que uma  coisa tem a ver com a outra, doutor? Tá, eles podem me atingir através da irmã de criação da minha ex? Não acredito nisso, também não posso acusar ninguém sem provas, sei, entendo, vou tentar lembrar dos nomes, é um advogado, falso advogado parece,  e o primo dele, sim, essa gente não vale nada, mas... Se eu disser que havia alguma coisa tipo milicianos por trás das ameaças, ajuda? 


De Volta à Curva: 


"Tá mais calma?"

"Não seja bobo, Luís Santinho. Achou mesmo que eu estava nervosa com a presença daqueles patetas?"

"Do jeito que chorava... Como diziam os velhos romancistas: chorou copiosamente. Não pensei na presença da polícia, mas nas ameaças."

"Não desconversa. Você tá cansado de saber que a minha preocupação sempre foi com você, Tô sempre preocupada que um dia descubram o que faz com as mulheres que diz amar, seu canalha."

"Forte essa, Rebeca. Quanto mistério... Posso saber que segredo você esconde, que nem eu conheço?"

"Lola."

"O que Lola tem a ver com isso? Tá delirando de novo?"

"Só quis te dar um exemplo, meu amor. Conversei com ela, sabia? Noventa por cento da sortista saiu direto da sua cabeça. E pra quê, Luís Santiago? Mais uma que você inventa pra torturar as mulheres que jurou amar a vida inteira. Mas fique tranquilo, não vou fazer com Lola o que tive que fazer com Marcus Aurelio."

"Péra aí, péra aí... Pode explicar melhor o que Marcus Aurélio tem a ver com Lola?"

"Nada, meu amor. Só estou lhe dizendo que não matarei Lola como fiz com Marcus Aurélio."

"Rebeca, que loucura é essa? O que eu tenho a ver com a separação, que você chama de morte, entre você e Marcus Aurélio?"

"Vai dizer que não sabe que eu tive que expulsá-lo da minha cabeça para que você não o matasse de verdade? O ciúme que sente é capaz de turvar seus sentimentos e anular sua compreensão para as coisas mais simples da vida, Santiago? Um amor como o seu dilacera qualquer mulher normal." 

"Normal? Faltou você concluir com aquela tradicional declaração de eterno amor: Você me paga, criatura!"


Mas este não foi nem de longe o maior problema do dia. Encontrei  o porteiro Osvaldo no elevador, ele e um cara que eu conhecia não sei de onde. 

Era dali mesmo, do prédio onde morava. Osvaldo me apresentou:

"Dr. Luís, este é o síndico do prédio, dr. Noronha. Não sei se já se conhecem."


Eu não o conhecia, mas o síndico, um sujeito gordinho, de terno cinza-chumbo, cinquenta e poucos anos, o tal de dr. Noronha já me conhecia e muito bem. 

Resumindo: não estava fácil alugar apartamentos ou conjuntos comerciais, mercado retraído; no prédio mesmo, havia várias unidades desocupadas; ele e a imobiliária que administrava o condomínio faziam de tudo, mas esbarravam sempre com uma pergunta desagradável: "Esse não é o prédio dos suicidas?" O gorducho tentava explicar que só um caso acontecera há muito tempo e que não foi um suicídio, mas um acidente. As pessoas não acreditavam, falavam de um sonâmbulo que por pouco não se jogou lá de cima, além daquele que se matou de verdade. Em seguida, davam uma desculpa, ou nem isso, e iam embora. Algumas mulheres saíam fazendo o sinal da cruz. 

O final foi apoteótico. O síndico chegou a insinuar que eu tinha uma parcela de culpa e que o condomínio poderia, em assembleia, pedir uma retratação, ou uma compensação, não lembro direito. Mandei Noronha à merda, mas só em pensamento.  


Sem Destino:


Essa vidinha já estava me enchendo o saco e virando rotina. Ou talvez: essa vidinha já estava virando rotina e me enchendo o saco, tanto faz. Você pode entrar com os olhos vendados a bordo de um transatlântico, sem saber para onde vai. Passa um tempo, tiram a venda, mas só quando o porto já vai longe, as casas minúsculas, as ruas desabitadas. Não há rotina, escolha o que quiser: convés, piscina, deck, cassino, bares, cinema, teatro, gastronomia internacional e tudo pra quê? Vai virar rotina, você sabe. Pode demorar um pouco, mas também vai cair na rotina, mais dia, menos dia. Não beba demais, não cante a mulher dos outros, não se arrisque, muitos já se afogaram nessa imensidão de mar azul.

Mas se vai cair na rotina, por que inventar essa história do barco, do transatlântico, do cruzador, do porto e tudo mais? Não é só que uma pessoa não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo, e se eu estou no prédio, me escondendo de Osvaldo, de todos os Cássios e Meireles, achando que já estava na hora de Rebeca encarnar o espírito de Rosa e sumir por uns tempos, se é lá que estou, ou na verdade não estou, virando a cara para o síndico que me olhava torto, claro que não poderia estar no transatlântico, essa não é a questão, não me seduz a ideia de entrar no desconhecido terreno do sobrenatural, nem que Jac Rowling me ofereça sua inestimável experiência. O que é então? O problema não é o lugar ou os lugares, mas a pessoa, que não pode desistir de ser ela mesma e entrar na pele, no corpo e na alma, de uma outra. Ou pode?

Um sujeito manda o capanga matar alguém. Ele não é o assassino, e sim o mandante. Só que o executor não tem nada contra a vítima. Emprestou seu corpo, sua alma, a habilidade e a arma para que o mandante deixasse de ser o que é, um cara pacífico, até "amigo" da vítima e de sua família, para entrar na pele do jagunço.

A garota de programa, que depois de uma noite intensa vai para casa lavar roupa e cuidar dos filhos, não é outro exemplo de que alguém pode ser ela mesma e outra pessoa, bem diferentes uma da outra?


Destino Incerto: 


Acordei com uma ressaca infernal. Umas lembranças luminosas dançavam como pingentes do lustre de cristal pendurado no teto. Claro que não havia pingentes nem lustre, talvez nem teto, mas as lembranças surgiram como grandes descobertas. 

A primeira delas, um cartão de visitas, fundo preto, letras prateadas: 

MEIRELES, CASSIANO & ADVOGADOS ASSOCIADOS

Onde? Gentilmente esquecido na mesa da sala do apartamento de Rebeca Flores. 

Quando? Naquele dia em que supostos bandidos entraram sem arrombar a porta e saíram sem nada levar.

A segunda lembrança precisou de alguns minutos para saltar de um neurônio a outro, nadar no mar de sinapses desconexas, ainda entorpecidas sob efeito do álcool, para só então brilhar no universo das obviedades irrefutáveis: se alguém te ameaça com a Justiça, o mínimo que você precisa é de um advogado, de preferência um de renome entre seus malvistos pares. 

A dúvida? Valia a pena me envolver com Cassianos e Meireles só para mostrar a um tipinho como Noronha que o condomínio não tinha nada a ganhar se metendo comigo?  

A terceira lembrança ainda não era lembrança, porque ninguém se lembra do que ainda não aconteceu. O celular vibrou suavemente e um sujeito disse que era o novo dono da cantina, que transformara-se em pizzaria e cantina, o nome era, pasmem, Cuadrada Luna. Uma pizzaria e cantina italiana com nome espanhol, no centro de uma cidade brasileira como poucas? Pensei, tô sonhando, mas não estava. O cara disse que se chamava Arturo, Arturo Falcone,  e que desejava me convidar para algo que agora sim entra no rol das lembranças, um jantar de boas vindas. Respondi que depois passava lá, devia ser aquela cantina lá de baixo, na mesma rua do prédio, ia desligar, mas ainda tive tempo de ouvir Arturo Falcone dizer baixinho: "Temos que nos unir, senhor Santiago." 

Intrigante. 

Como é que uma pessoa descobre o seu nome, seu número, te liga pra te convidar para uma inauguração, um jantar, diz que precisamos de união, aí você vai ver e o número do cara aparece como bloqueado, reservado, privativo, qualquer coisa do tipo?

No mínimo, intrigante.


De Volta à Pista de Rolamento (10): 


Gostava mais do bar do beco do que da cantina, mas já havia jantado lá umas duas ou três vezes, comidinha honesta, pelo menos era nos tempos do antigo dono: ravioli, risoto, carneiro, perna de cabrito, insalata caprese. A diferença da velha para a nova cantina era gritante, mais chocante que gritante. O salão com as mesas não era mais um salão e sim um cenário, Salonário, como escreveram em letras azuis no teto branco. Falcone era um artista ou, como ele mesmo dizia, um pesquisador de sombra e luz, claro e escuro. As paredes eram móveis, no sentido de "movíveis", movimentáveis, podiam ser invertidas, transportadas, redefinindo o salonário biombescamente. Havia spots, rebatedores e cortinas. 

Sentamos para conversar, somente eu e Arturo Falcone, antes que a Cuadrada Luna abrisse para o jantar. A idéia do ristorante era interessantíssima: todas as noites, além dos pratos, havia alguma manifestação artística: monólogos, pedaços de peças de teatro, trechos de filmes, projetados sobre uma tela móvel na entrada da cozinha, fotografias, instalações, projeções de textos, tudo muito curto, com a única proposta de levar alguém a pensar.

"Pensar em quê, Arturo?"

"Vou te dar um exemplo que me veio agora à cabeça: sabia que todas as máfias estão se organizando para entrar no Brasil e daqui comandar suas filiais do crime organizado?"

"Por que no Brasil?"

"Criaram um índice lá deles e parece que ganhamos disparado."

"Um índice para a máfia. Daria um bom título para um romance policial."

"Vai rindo, senhor Santiago. O índice leva em conta corrupção, impunidade, facilidade para disseminar o medo e, sobretudo, mede a quantidade incalculável de pessoas influentes dispostas a  subir na vida por qualquer escada. Estamos lá em cima na tabela de classificação das máfias. É triste, mas é a pura constatação da verdade, Luís."

"Só pensar não vai resolver, mas concordo contigo, Arturo: fechar os olhos é pendurar a corda em nosso próprio pescoço."

  

Os convidados para o jantar de inauguração foram chegando e entre eles lá estava o pessoal do beco, todos já devidamente "amaciados", prontos para enfrentar a longa noite de lazanhas e rondelis, sem falar em gordas fatias de pizzas e lascas de paletas de cordeiro apimentadas. O recruta da verdade andava como um patinador iniciante na pista escorregadia. Quase foi de cara ao chão. Arturo fingiu ampará-lo, depois sorriu e disse baixinho: "Já conheço a fama do soldado Leandro Evandro, não se preocupe, Santiago." De onde o conhecia? Não ousei perguntar. Dava pra ver que Falcone estava muito bem informado sobre quem morava e o que acontecia nas proximidades da Cuadrada Luna. Por que? "Por interesse comercial, só isso", Arturo me disse tempos depois. Acreditei, é claro. Não era da minha conta, ou era, e eu ainda não sabia...


Rastros e Pegadas: 


Juntaram as mesas e os convidados sentaram-se, uns ao lado dos outros, "como uma bela famiglia", disse Falcone. Não gostei da alusão, mas não disse nada. Serviram as pizzas artesanais, como as do século XV, não sei de onde tiraram essa ideia, mas ninguém contestou. Não havia propriamente um garçom, as pessoas serviam-se e passavam a enorme tábua de madeira para o vizinho de mesa. Enquanto isso, nosso anfitrião segurava o ombro de Rebeca para explicar que nem a fotografia deve ser rebaixada como auxiliar das artes plásticas, nem, muito menos, a arte pode servir como matéria-prima da fotografia. Nessa hora quase encostava seus lábios no ouvido de Rebeca para revelar: "São irmãs que se amam, mas cada qual com seu destino." Bonito aquilo? Tá bom...


O salonário não era lá muito espaçoso, mas, ao lado da porta de entrada, o pé direito devia alcançar uns 15 ou 20 metros, era essa a minha impressão. O maitre, Hugo Hopper, um sujeito baixinho, de boina grafite e avental branco, que se dizia descendente do famoso artista Edward Hopper, vai saber se era ou não verdade, revelou que havia um plano para recriar as imediações da Cuadrada Luna, reproduzindo a rua estreita de uma cidade do quattrocento italiano. Hopper projetou na tela ao fundo do salonário o autorretrato de Sandro Botticelli. "Repara como já é possível vislumbrar o desespero do barroco no olhar de Sandro", Arturo Falcone comentou, mais uma vez com os lábios quase colados ao ouvido de Rebeca Flores, e aquilo já estava passando dos limites.

O maitre Hugo, que também era sócio de Arturo na pizzaria, disse que o quattrocento era apenas o início. Depois viriam o trecento, o cinquecento, a literatura oral de Homero, trechos de filmes de Kurosawa, nesse ponto foi subitamente interrompido por uma voz feminina estridente, que berrou da cozinha: "Mestre Hugo, não estraque o prazer da surpresa."

Falcone completou: "Qualquer um que pergunte: pra que tudo isso? não merece sequer uma resposta."


Antes que os artistas da Cuadrada Luna iniciassem a exposição sobre luz e sombra, Rebeca fez questão de me contar em detalhes os assédios do advogado Cássio Meireles: "Liga sem parar, Luís. Às vezes até de madrugada. Tô muito bem dormindo e lá vem ele com aquela voz de barítono do Municipal. Primeiro me elogia, depois começa com as indecências, você bem sabe do que estou falando, Santiago, meu bem. Esse homem não me dá um dia de sossego na vida."

Rebeca era incapaz de viver uma vida daquelas "normais", como se diz por aí. Desde que a conheci, estava sempre com dois ou três interessadíssimos em molestá-la (o sexo para Rebeca devia ser ligado à dor, à dominação, onde ela sofria, se vingava e em seguida sofria de novo por ter se vingado, isso pra falar o mínimo).   

Perguntei se Cássio Meireles não estava armando alguma intriga enquanto tentava seduzi-la. Pra quê??? A louca surtou. Me xingou em altos brados, disse que eu nunca dava o merecido valor a seu corpo, que não acreditava que os homens podiam cair de joelhos por ela, isso e outras maravilhas da mente feminina quando se julga injustiçada (Um pouco machista isso, não acham?) 


Um garçom, com um minúsculo crachá preto, onde mal se lia em pequenas letras douradas o nome Enzo Scariotti, me entregou um bilhete de Rosa Assis. Estava na porta da Cuadrada Luna, não desejava entrar, mas pedia encarecidamente que eu perdesse alguns de meus preciosos instantes, assim mesmo, com a sua pessoa, para tratar de assuntos do seu (meu) interesse. Porra, Rosa quando dava pra ser misteriosa exagerava como poucas.

Para encurtar o mistério sem desvendá-lo, Rosa queria me alertar sobre o relacionamento de Rebeca, sua irmã de criação, como sempre fazia questão de frisar, e um escroque de nome Meireles. No seu entender, aquele caso já estava indo longe de mais: "Esse Meireles, que alguns conhecem como Cássio ou Cassiano, parece que anda interessado em recrutar para sua organização criminosa mulheres bem sucedidas. Me parece que o problema também é com você, Luís. O homem passou lá em casa e fez muitas perguntas a seu respeito, algumas bem indiscretas, não me peça para revelar o conteúdo, mas fiquei com medo." 

Descrevi para Rosa o Cássio Meireles que eu conheci no Bar do Beco, nem de longe era o mesmo que a visitara e fizera as tais perguntas a meu respeito. Paranóia? Difícil... Tanto é que Rosa estava bem ali do meu lado e... não estava mais. Sumiu sem se despedir. Havia o tal garçom, de nome Enzo Scariotti, mas impossível encontrá-lo naquela enome confusão: a Cuadrada Luna já estava lotada, gente saindo pelo ladrão, por falar em ladrão, meu celular vibrou, era Rosa pedindo desculpas por não ter se despedido: "Santiago, fugi covardemente, o tal negro gigantesco que está enganando Rebeca, minha pobre irmãzinha de criação, desceu de um carrão preto, você viu? Tenho certeza que era ele, o tal de Cassiano Miranda. Cuide-se, Luís, meu ex-amor de toda vida." Ia responder: "Não é Miranda, é Meireles, Rosa Assis", mas a ligação já tinha ido pro espaço.  


Dois Sinais: Um Aberto; Outro Fechado:


De volta ao prédio, onde um dia tentei imitar o suicida do 10º andar, até eu já estava acreditando naquilo, eis que me deparo com a intrigante figura do porteiro Osvaldo varrendo o hall de entrada. Não o convidaram para a inauguração da Cuadrada Luna? Convidaram, mas ele não foi. De mau humor, disse que alguém tinha que cuidar do prédio, antes que um miliciano derrubasse as grades do portão automático com seu tanque de guerra. Fiquei olhando para a cara dele. Não disse nada. Não era uma observação típica de um porteiro. Os olhos deveriam permanecer abertos.

Subi dois lances de escada, sentei no degrau para ouvir os passarinhos e imaginar o café da manhã pelo aroma que inundava os corredores. Um café puxa outro, que puxa outro, que puxa outro... e eu dormi ali mesmo, sonhando que era um papagaio no poleiro, esperando minha dona acordar para acariciar minhas penas coloridas e dizer: "Vizinho, vai acordar com dor nas costas se continuar dormindo assim...", acho que era Márcia o nome dela, dona Márcia do 201, ou 202. Me olhou com aquele jeitão de quem vai perguntar: "Você não é o suicida que quase se jogou lá de cima e foi salvo por um ataque de pânico?" Quem inventou essa história de ataque de pânico? Isso era coisa do porteiro Osvaldo, em conluio com seu falso primo e falso advogado, falso Cássio, ou Cassiano, caralho, que confusão, ou será que tinha o dedo de Rebeca querendo me destruir, destruir o resto da pequena reputação que me restara? Dona Márcia foi embora e não disse nada, nem ao menos reclamou da mijada que deram na porta do elevador, talvez um bêbado, achando que estava no banheiro dos seus sonhos, eu, hein...

E a luna, continuava cuadrada.


Enquanto isso, no bar do beco, circulava um boato, que voava de boca em boca e voltava aos ouvidos de quem não tinha nada a ver com a história, eu, por exemplo: 

"Contrataram o soldado da verdade como gerente de uma loja de móveis."

"Bom pra ele confrontar suas verdades com as verdades do mercado."

A turma toda foi lá, admirar o soldado em suas novas e honrosas funções. Para a maioria, estava sóbrio como nunca, solícito, educado, de terno azul-marinho. 

"Uma vergonha, Luís. O sujeito, uma hora é uma coisa; outra hora é outra..."

Perguntei se a vida também não era assim, mas ninguém gostou da ideia.

No trabalho, o soldado era caxias. De noite, soltava o verbo contra a intolerância e o preconceito de qualquer natureza. Um veterano do bar do beco perguntou como ele conseguia beber tanto à noite e acordar inteiro no dia seguinte para trabalhar. Lola, a sortista, sorriu enigmática. 

A maioria dos "amigos" do soldado não ficou nada feliz com suas novas funções. Um deles, talvez por inveja, chegou a inventar a notícia de que a loja sob sua verídica gerência estava contratando um provador de colchões, cuja única missão seria dormir o dia inteiro no semi-ortopédico, em exposição na vitrine, aquela coisa de HQ. O cara ainda publicou um anúncio classificado no site Estamos Contratando. No dia seguinte, a fila de candidatos à maravilhosa vaga dobrava o quarteirão. Por pouco os moveleiros não chamaram o soldado às falas.


Navegando Suavemente Por Uma Estrada Bem Asfaltada, Lado A Lado Com Uma Via Secundária Mal Aterrada:


O fato é que alguém estava tentando confrontar o soldado com suas "verdades". Sábado, a loja de móveis abria na parte da manhã, como o comércio de rua em geral, só que não: aquele sábado era feriado religioso. Leandro Evandro dirigia tranquilamente seu velho Ford, depois de ter passado a noite "enchendo a cara" com falsos cowboys e long drinks sem álcool. Como sempre, saiu trôpego, um passo à frente, dois para os lados, outro pra trás. "Lamentável, lamentável... ", alguém dizia, "... um rapaz tão moço".

O soldado diminuiu a marcha para dar uma olhada na vitrine da loja de móveis, não a sua, mas a líder de mercado. Quase parou. Deu uma volta pela avenida e acabou estacionando em fila dupla, obedecendo a um motociclista da polícia do trânsito que acenava para ele com a sirene ligada. Desceu, mostrou a carteira, os documentos do carro, pensou no que disse o policial e considerou que não havia motivo aparente para fazer aquele teste que pegam  bêbados no mundo inteiro. O policial argumentou que havia uma denúncia, embora sem evidências de embriaguez, é bem verdade. Leandro Evandro respondeu que não ia soprar bafômetro algum e o policial respondeu, está bem, tenho ordens de levar seu carro para o depósito e o senhor para a delegacia. O soldado sentiu o cheiro de traição no beco e por pouco não manda o motociclista à merda, cuidado, disse o policial, resistência à prisão e desacato são delitos bem mais graves do que dirigir alcoolizado, senhor. 

O fato em si tem pouca importância. Penso que para Leandro o que interessava era descobrir quem havia feito a denúncia, a falsa denúncia que talvez esse alguém não achasse tão falsa assim, já que ele saíra bêbado do bar. Queriam desmascarar o soldado e suas verdades ou apenas prejudicá-lo na gerência da loja que acabara de assumir? Só espero que ninguém pense que fui eu o autor da sórdida armadilha, não, não seria capaz de tamanha traição, mas confesso que gostaria muito de saber por que diabos Leandro Evandro optara por manter a farsa do abstêmio bêbado, ao invés de provar que estava apto a pilotar veículos na via pública. Mais dia, menos dia, Lola haveria de me contar o que o soldado pretendia com seu disfarce. 


Arturo Falcone era mais amigo de Leandro Evandro do que eu imaginava. Pediu que eu me unisse a Enzo, talvez a Rosa, a Rebeca e a quem mais eu achasse necessário para, como ele disse, no telefone, descobrir quem andava colocando aquelas minas no trajeto do soldado-gerente. 

O mais interessado em desvendar o mistério deveria ser o proprio Leandro, certo? Pode parecer estranho, mas foi ele o que menos se interessou. Passou umas duas ou três horas sentado na recepção da delegacia, respondeu a meia dúzia de perguntas sobre embriaguez, direção temerária, essas coisas que não tinham nada a ver com o caso em si. Depois, assinou o termo de compromisso elaborado pelo escrivão Macias, levantou-se, cumprimentou todo mundo e foi-se embora a pé.

No bar do beco começou a circular um boato, não sei qual sua origem, aliás, todo boato que se preze é de origem desconhecida, mas esse afirmava que o autor da denúncia era nada mais, nada menos do que o soldado da verdade em pessoa, "não há provas, não há provas", Leandro Evandro protestava com sua hilária voz de falso bêbado, muitos sorriram; eu, não.


Nem Toda Transgressão É Fruto Do Acaso:


O primeiro cara que eu deixei entrar no meu apartamento sem medo, desde a falsa tentativa do fracassado suicídio, foi Arturo Falcone, o dono, ou melhor, um dos sócios da Cuadrada Luna:

"Sabia que o soldado quase foi demitido da loja, Arturo?"

"Sim, tive que interceder por ele. O dono d'O Cabideiro é meu amigo há muito tempo."

"Que argumentos você usou?"

"Disse a verdade, Luís. Leandro não estava bêbado, nunca bebeu na vida."

"Por que não fez o teste do bafômetro? É o que todo mundo quer saber."

"Bom, você conhece o soldado, talvez melhor do que eu. Aquele lá, quando enfia uma ideia na cabeça..."

"Que ideia? Transgredir e ver no que vai dar?"

"Não é só isso de transgressão, Luís. Ele tem uma tese, tudo na vida de Leandro Evandro gira em função desta tese."

"A tese de que as pessoas podem ser facilmente iludidas? E por isso finge que está bêbado sem nunca ter colocado uma gota de álcool na boca?"

"É isso, mas não só isso."

"?"

"No fundo o que o soldado da verdade deseja é provar que a aparência é tudo."

"Ah... Uma vez, no bar do beco, eu vi ele escrevendo no guardanapo: Você é o que aparenta ser. Foi isso que quis dizer, Falcone?"

"Sim. Já conversei longamente com Leandro sobre isso. Não vou dizer que ele não está errado, mas é radical demais."

"Ele acha que no fundo a essência é a aparência?"

"Nos dias de hoje, cada vez mais."

"De certa forma é uma bobagem. Nem todos veem a mesma aparência. Na verdade, cada um de nós vê o outro com seus próprios olhos, escolhe o que quer ver."

"Tem razão, Luís Santiago, ainda não tinha pensado nisso. A crítica ao superficial é perfeita, mas daí a acreditar na tese 'você é o que aparenta ser' vai uma enorme distância. Concordamos nesse ponto? Luís, onde você está?"

"Desculpe, Arturo, tava pensando... A minha essência é o que reconhecem em mim. Pode não ser verdade, mas é literário."

"Mudando de assunto, tem notícias do advogado primo do porteiro?" 

"Não vi mais o cara. Só o Osvaldo é que encontro de vez em quando lá no prédio."

"Ah, ia te falar, cuidado com um tal de Noronha."

"O síndico??? Ele também tá na...?"

"Não posso te dizer mais nada por enquanto. Foi um cliente lá na Luna que me alertou, mas pode ser intriga, claro que pode..."


Ciclovia:


O bar do beco ficou fechado uns dias para reforma, uma semana talvez. Quando reabriu, ostentava um luminoso na fachada em neon vermelho: Bek's Bar. Um pouco abaixo do letreiro, uma espécie de quadro de aviso eletrônico exibia um slide show com o que chamaram de "Os melhores momentos do velho beco". Fotos e vídeos de seus frequentadores, isto é, nós mesmos, bebendo, beliscando petiscos, conversando, discutindo, em animadas cenas de pugilato... essas coisas que costumam acontecer de madrugada nas melhores casas do ramo. De vez em quando piscava um texto: "Bek's Bar. Agora sob nova e revolucionária direção. Divirtam-se"

Alguns gostaram da transformação, outros odiaram, a maioria não ligou, queria mesmo era encher a cara no Bek's Bar, mas com o precinho do velho beco, aquele que nem nome tinha. Isso, é claro, não era possível.

O porteiro Osvaldo especulou: "Mais um ciclo que se fecha, Santiago."

"Outro que se abre", respondi.

Fiquei sabendo, pela minha ex sempre onipresente Rebeca Flores, que o bar não mudara só de nome, mas também de dono. Rebeca não sabia dizer se o novo dono era dono mesmo ou apenas um testa de ferro, mais um sujeito oculto fora da gramática. Seu nome: Cássio M. Era o que estava no site. "M de Meireles?", perguntei. Rebeca não disse que sim nem que não, mas tava na cara.


Reservaram uma távola com tampo de acrílico preto brilhante para a turma dos velhos tempos, ou, como diziam agora: os fundadores. O soldado da verdade, agora respeitosamente chamado por alguns puxa-sacos de dr. Leandro, isso devido ao pomposo cargo na gerência de O Cabideiro, pois então, tinha ele um lugar especial no Bek's Bar, uma espécie de cadeira exclusiva, que ele podia levar para qualquer outra mesa, privilégio que o soldado nunca usufruiu, diga-se a bem da verdade.

A princípio poderia haver uma concorrência entre a Cuadrada Luna e o Bek's, mas isso não aconteceu. Quem ia almoçar ou jantar na cantina, poderia participar da performance artística que Falcone e Hugo preparavam, para em seguida, bem mais tarde, encontrar os amigos no bar. Até mesmo o contrário era possível: dar uma passada no Bek's e depois ir jantar na Cuadrada. Para a maioria, difícil mesmo era deixar de frequentar os dois, ou um dos dois.

Infelizmente, esse clima de paz e concórdia durou pouco.

         


Passagem Subterrânea:


As duas bombas explodiram ao mesmo tempo, sem ferir ninguém, mas assustando quem passava, às cinco e vinte e três da manhã de sábado, em frente ao Bek's Bar ou à Cuadrada Luna. Quebraram vidros e vidraças, derrubaram portas e janelas, em poucos minutos lá estava a TV, os jornais, os curiosos de sempre, mas o que interessou mesmo à polícia foi a coincidência dos horários. Concluíram que era "coisa de profissionais", isto é, não concluíram coisa alguma.  

Vamos aos fatos:

    • Cuadrada Luna combinava uma exposição de jovens artistas inspirados em Rembrandt com a representação de uma peça, encenada na calçada em frente à cantina, que recriava Amsterdam do século XVII. Em determinado momento, uma atriz, disfarçada entre os espectadores, começa a ofender a Igreja, a Santa Inquisição, o Papa, a falsa moral de judeus e católicos... Um outro espectador, que não fazia parte do espetáculo nem estava sabendo que a tal mulher era atriz, enche-se de brio e desfere um sonoro tapa no rosto da infeliz artista. Pronto. Estabeleceu-se uma enorme confusão, todo mundo brigando com todo mundo. Arturo, que sempre foi contra a performance anticlerical por achar arriscado, olhava para Hugo Hopnner, autor da ideia, como quem desafia: "Agora resolve, seu fdp..."

    • Entre os frequentadores e profissionais do Bek's, houve apenas um garçom que se lembrava de um pequeno incidente na porta, por volta das duas ou três da madrugada: um maluco, vestido de branco e com uma cruz bordada no peito do camisão, brandia uma espada de plástico e ameaçava a todos com a destruição do meio ambiente. O garçom revelou ainda que não havia quase ninguém, umas três ou quatro pessoas no máximo dando ouvidos às suas ameaças e que os seguranças do Bek's apenas pediram gentilmente que o cidadão deixasse o local para não provocar tumulto. Que tumulto? Era apenas um maluco discursando na madrugada de sábado na porta de um boteco metido a chique. 

    • A polícia foi chamada para controlar o tumulto na porta da cantina. Quando chegou, não havia mais ninguém por ali. Alguns funcionários foram ouvidos e o incidente foi registrado como rixa.

    • O garçom do Bek's bar estava no ponto do ônibus às 5:23. Quando ouviu o ruído da bomba, não deu importância. Achou que podia ser algum segurança atirando para o alto, quem sabe para assustar o maluco da cruz no peito.     


Cuidado. Animais Na Pista:


Como não descobriram logo quem era o autor (ou os autores) dos atentados, todos começaram a desconfiar uns dos outros, e eu não fugi à regra. Não suspeitava de ninguém, mas era suspeito. Primeiro porque jantei na Cuadrada; depois porque passei no beco para encontrar os amigos de sempre. Assim como eu, que não tinha nenhum motivo para sair por aí detonando bombas nos lugares que costumo frequentar, quantos não fizeram o mesmo trajeto naquela noite de sexta, madrugada de sábado? 

"Mas acontece, sr. Santiago, que nem todos têm um passado comprometedor, inclusive com acusações vindas do condomínio do edifício onde mora."

"Acusações? Que acusações?"

"Isso foge à minha alçada, sr. Santiago. Está na sua ficha, é só o que posso dizer."

"Preciso de um advogado?"

"Hoje em dia, quem não precisa?"

Ainda fui obrigado a ouvir insinuações sobre bigamia, poligamia, mas que merda, desacato, conduta imprópria, tudo bem genérico, como aqueles remédios que a gente compra por um precinho mais em conta.

Fiquei um tempo pensando sobre o número incrível de pessoas que  tudo o que fazem é acusar os outros, alguns para ganhar a vida; outros, sem motivo algum. Não têm provas, não têm indícios, suas acusações podem não levar a nada, embora em alguns casos chegam até a um linchamento. Duvida? Depois daquelas perguntas e insinuações, fui recebido no beco com uma nova  enxurrada de "foi você?", "por que é que você fez isso, Luís?", "Foi só pra marcar posição?" Queria saber como é que se marca posição explodindo bombas sem deixar um bilhete sequer, mas enfim...  Felizmente, havia Lola para me tirar dali e dizer baixinho: "Não te falei que é sempre a mesma história?"


Se Beber...:


Estava eu muito bem dormindo para me recuperar dos últimos acontecimentos, eis que recebo a inesperada visita de Rosa Assis, ela mesma, minha ex-primeira mulher, embora jamais única. Mandona, ansiosa, objetiva, como sempre, queria saber em primeiro lugar se eu havia sido preso, era o que corria entre nossos amigos e inimigos comuns. Depois, quando ficou sabendo que eu não passava de um suspeito, como qualquer frequentador da Luna e do Bek's, me olhou desconfiada e murmurou um daqueles "sei...", com o desprezo que era mestra em expressar quando queria. A segunda pergunta de Rosa foi sobre Marcus Aurélio, um cara que, segundo ela, a estava assediando. Fiquei em dúvida se devia abrir logo o jogo e perguntar se esse M A era o tal que viveu uns tempos com Rebeca Flores, sua irmã de criação. Dessa vez, a ansiedade de Rosa agiu a meu favor e ela mesma respondeu à minha dúvida: "Luís, o rapaz que eu estou falando é um que viveu com Rebeca, diz que foi casado com ela, ex-marido, entendeu? Me pareceu sincero, bom sujeito, você conhece?"

Até aí tudo bem. Aquilo era algo que só interessava a Rosa e a Marcus Aurélio. Se valia ou não a pena acreditar um no outro só os dois podiam resolver, eu é que não tinha nada a ver com a história. 

Conversa vai, lembrança vem, ainda tentamos, eu e Rosa Renovada, uma inocente aproximação, depois uns "amassos", seguidos de ensaios para cenas de sexo explícito, mas não rolou. Rosa Renovada continuava empedernida, pelo menos comigo. Surgiram 345 motivos para questionar se valia ou não a pena se entregar à luxúria novamente, seguidos por umas 818 razões para se sentir culpada: comigo, porque ia me iludir outra vez; com sua irmã Rebeca, que estava sendo traída; com a própria Rosa e sua reputação ilibada, pois estava há séculos sem transar e seus gritos desesperados, de mulher solitária e abandonada colocariam a vizinhança em estado de choque, mesmo que eu tentasse abafá-los com minha boca sobreposta à sua, para com isso, Lulu, estou a ponto de explodir em suas mãos, mas não vai rolar. Já viu coisa mais broxante do que enfiar a cabeça errada na hora do sexo?

Rosa saiu ajeitando a saia e a calcinha que nem estava usando. Na porta, lembrou-se de um folheto que haviam entregue horas antes nas proximidades do prédio. Abriu a bolsa, colocou o folheto em cima da mesa e lá se foi com a sacola cheia de dúvidas e culpas.    


"Quer Vender Seu Apartamento No Recanto dos Suicidas?

Aproveite enquanto é tempo e faça um bom negócio. Vem por aí a maior crise imobiliária. Se está difícil vender os novos, imagine os velhos e mal falados. Entre no site e agende uma visita: 

                             www.magiadoscorretores.com.br" 


Claro que foi a primeira coisa que fiz assim que Rosa fechou a porta atrás de si e foi-se embora batendo com as sandálias no chão do corredor, ao ritmo de "Sacode, Carola", na interpretação de Wálter Alfaiate, que alguém colocara no mais alto volume de seu sofisticado equipamento de som. Estranho como as coisas combinam nesse mundo. 

O tal site mencionado, pasmem, pertencia à trinca Osvaldo, Enzo, Cassiano. Osvaldo, o porteiro? Enzo, o garçom da Cuadrada Luna? Cassiano, aquele Cássio de sempre? 

Tem horas que a gente acorda, mas parece que o pesadelo está de volta.


Na Dúvida, Não Ultrapasse:


Arturo Falcone não soube me dizer se aquele Enzo era o mesmo Scariotti que trabalhava como garçom na Cuadrada Luna, prometeu averiguar; Leandro Evandro, como sempre amante da verdade acima de tudo, não sabia se Osvaldo era o porteiro do prédio, nem se Cassiano era o advogado Cássio, mas argumentou que desvalorizar o prédio podia ter relação com as bombas, que também desvalorizavam o bairro. "Estão apertando o cerco, Luisito", Lola disse baixinho na entrada do beco. Minha orelha ferveu, só a direita.

As notícias correm. Quando passam de uma pessoa para outra, de boca em boca como dizem, dificilmente permanecem as mesmas. Em pouco tempo, o tal site dos corretores mágicos recebia mais visitas do que o face da Scarlet ou do Tom Cruise juntos (é só o modo de falar, é claro...). O filho da dona Marta, aquela vizinha do segundo andar, era hacker, cracker, essas coisas. Invadiu e detonou a página dos caras, que não demorou muito e saiu do ar. Osvaldo jurou que não passava de um porteiro, que nunca pensou em se tornar corretor de imóveis. Enzo Scariotti garantiu que não era ele o segundo integrante do site. Cassiano, por sua vez, não deu sinal de vida em nenhum de seus desconhecidos endereços ou telefones, nem no Bek's apareceu por um bom tempo, de modo que as coisas foram voltando ao que a gente costuma chamar de "normalidade".

Não demorou muito e o interfone soou novamente. Osvaldo, o fiel guardião do Recanto, avisa desesperado: "Luís, some daí. O tal do Marcus Aurélio subiu atrás de você, com uma pistolinha prateada na mão, parece uma beretta 6,35. Corre, porra!" Não era sonho, nem alucinação. Era ele mesmo, M A em pessoa, metendo o pé na porta, invadindo o apartamento, gritando algo como: "Foi você, não foi, seu filho da puta? Foi você que falou mal de mim pra Rosinha? Apareça, covarde!"

Eu? Diante das circunstâncias, "abriguei-me" novamente no velho parapeito do lado de fora da janela, naquele curto espaço que fica entre o medo de morrer nas mãos de um louco ciumento e o pavor de escorregar e cair lá de cima. Só faltava juntar gente na rua a gritar o tal "pula, pula, pulaaaa!" Mas, ao contrário, o que ouvi foi a voz de dr. Noronha, honorável síndico do Recanto, expulsando Marcus Aurélio, ameaçando chamar a polícia, processá-lo por lesões corporais, invasão de propriedade particular, e sua voz foi sumindo, sumindo... até que Osvaldo disse baixinho: "Luís, onde você está? Debaixo da cama? Pode sair, eles já foram..."


Mão, Contra Mão, Não Ultrapasse Pelo Acostamento:


Blitz de rotina. Na calçada quase em frente à Cuadrada Luna revistaram um sujeito com uma maletinha 007. Mandaram ele abrir, tava cheio de detonadores, pavios, bananas de dinamite, controles remotos, o diabo... enfim, parece que juntaram tudo que cabia na maleta para um novo atentado. O cara disse que era ator e tinha sido contratado para representar uma peça ultrarrealista, não lembrava o nome. Foi nessa hora que começaram a desconfiar duplamente. Pegaram os documentos e desconfiaram triplamente: o camarada se chamava Cássio Miranda Meireles. Algemaram o sujeito, chamaram Falcone, Enzo, Hugo Hoppner e seus ajudantes de cozinha. Ninguém conhecia o novo Cássio, nem havia peça alguma programada para aquela noite. A Cantina ia servir pizzas, lazanhas, nhoques e depois promoveriam um baile funk, nada radical, com o intuito de cativar camadas populares e divulgar o projeto.  

Na manhã seguinte, Leandro Evandro me ligou da loja para dizer que Arturo Falcone chegara à brilhante conclusão de que Cássio, Cassiano, Miranda, Meireles, não era nome de gente, mas sim uma  sigla, um genérico: "Uma franquia do crime, o que acha você, Santiago?"

Não achava nada àquela hora da manhã, mas ao longo do dia concluí que fazia sentido: uma super organização criminosa com nome de gente. Enquanto todo mundo andava à procura de um só  Cássio, os manuéis, horácios, genílsons, carlões passeavam por aí carregando maletas e detonando bombas. 

"O Soldado me falou sobre a franquia dos cássios e cassianos. Acha que é só o medo que eles querem espalhar, Arturo?"

"Por enquanto preparam o terreno, Luís. Uma bomba aqui; outra ali. Daqui a pouco, um arrastão na Cuadrada; outro no seu prédio."

"Nããããooo!!! No meu prédio, Falcone?"

"Ahahaha... Ou lá em casa, tanto faz."

"Por falar nisso, onde é que você mora?"

"Na Cantina mesmo. Quando fizemos a reforma, mandei construir um bunker lá nos fundos, já prevendo que dias difíceis estavam a caminho."

"Tá bom. Ótima ideia, se fosse verdade. Te contei que um louco entrou lá no meu apartamento querendo me matar com uma Beretta meia, três cinco?"

"Louco mesmo. A Berettinha não mata ninguém, mas faz um estrago danado. Por que foi isso? Quem era o cara?"

"Um tal de Marcus Aurélio. Tava a fim da minha ex, aliás, das duas. Como não comeu nenhuma, achou que foi por minha culpa. Vê se pode."

"Imagina, todo mundo se protegendo da máfia das bombas e vem um Marcus Aurélio de Beretta e..."

"Vira essa boca pra lá, Arturo Falcone."

"Desculpe... Como é que você se livrou desse cara?"

"Osvaldo, o porteiro, me avisou. Depois, veio ele e o síndico, o tal do dr. Noronha, lembra que você me avisou sobre a figura?"

"Ah, sim. Correu um boato, não sei se é verdade, que ele tem ligações estranhas, depois conversamos, ok?

"Ok. Talvez dê uma pulo na Cuadrada hoje."

"Até."


Com aquela sinceridade que os bêbados, principalmente os falsos, costumam ter, o soldado Leandro Evandro perguntou a Cássio Meireles se o seu nome era aquele mesmo ou se tudo não passava de um disfarce. Eu estava ali perto, no balcão, e ouvi a resposta: "Amigo Evandro, já escutei essa história por aí. Me disseram que foi Arturo quem inventou. Agora imagine se eu te disser que Falcone é que está querendo jogar uns contra os outros. Tudo não passa de uma experiência, sei lá pra quê. Essa é a verdade. E você que é seu soldado, o Soldado da Verdade, já devia saber, amigo Leandro."

Ouvi aquilo tudo e esperei uma reação explosiva do Soldado em defesa de Falcone, mas não houve reação alguma. Estranho? Estranhíssimo? Leandro passou o resto da noite em silêncio, talvez meditando que até ele próprio tinha lá os seus disfarces.


Na saída, ouvi Cássio, ou aquele que se dizia Cássio, perguntar a Leandro Evandro se a romancista Abgail, mulher de Arturo,  continuava internada por vontade própria. Mais uma vez o Soldado fingiu que não era com ele.  

Não que eu tenha "tomado as dores", como se dizia nos velhos tempos, mas não resisti e devolvi com outra pergunta, que ficou no ar do beco envenenado, "quantos de nós pode se vangloriar de levar a vida por vontade própria?"


Vire A Primeira À Esquerda, A Segunda À Direita, Vá Até O Final:


Não posso dizer se foi sonho ou se partiu de uma dessas realidades que se aproximam quando a gente escorrega na porta de um bar ou na saída de um beco onde estava o bar não posso dizer em pleno gozo da famosa sã consciência ai ai ele está mordendo morde os bicos quando mama indecente ela disse mas era mentira pode ser uma mordiscada ou outra mas de leve nada que doa além do ponto a vida dos outros taí coisa que ninguém se mete até que já tá falando o futuro só não vem para quem já lá chegou sempre é uma boa merda pensar nela a vida como viagem no fim a morte.


Foi mais ou menos isso. Acordei com aquela sensação esquisita, a mesma da janela, quando vi a morte de perto e recuei de seu abraço. Não lembro bem se foi Rosa ou Rebeca quem me disse um dia: "Luís Santiago, se alguém nos ameaça, o melhor a fazer é evitar o revide e escolher uma terceira pessoa com bons 'argumentos' para dar o troco". Quem, afinal, era a mulher de Arturo Falcone? Onde e por que estaria internada? Cássio (ou a franquia do crime) se defendeu de Leandro Evandro recorrendo a um passado desconhecido de Arturo Falcone. Foi, no mínimo, hábil ao deslocar o centro para Falcone, mas, sem dúvida, cruel ao mencionar uma Abgail que nenhum de nós conhecia, internada onde ninguém sabe, sabe-se lá por quê.


Lola demorou, relutou, disse que ia pensar no meu caso, mas acabou aceitando o convite para olhar o mundo da janela do décimo-andar. Na verdade, faz tempo que eu queria traduzir o que diziam aqueles olhos, que sabiam ler os dos outros. Sempre que você conhece uma pessoa, ainda mais se for do sexo oposto, vai logo projetando qualidades que são muito mais suas do que dela. "Qualidades", neste caso, não significam coisas boas ou ruins, depende de você, do que você é e como sente a vida. Com o tempo, essas qualidades sempre mudam: se acentuam ou se perdem. Com Lola não foi diferente. Desde que a conheci no bar do beco, havia um tesão no ar, que se acentuou. Quem primeiro percebeu, é claro, foi Rebeca Flores, a minha segunda ex de plantão, ciumenta, sensitiva, possessiva, em algumas coisas semelhante a Lola; em outras, bem diferente. Defina as diferenças? Rebeca tentou menosprezar Lola, que por sua vez fingiu ignorar Rebeca: "Não é comigo o seu passado, Luís". Lola sabia muito mais do que falava; Rebeca falava o que sabia e o que não sabia mas podia inventar. Lola possuía uma memória prodigiosa, que raramente usava a seu favor; Rebeca, sempre que precisava, trazia à tona fatos do passado, narrando detalhes em alta definição, que davam a ela vantagens em qualquer disputa ou discussão.        

Perguntei diretamente a Lola o que ela sabia a respeito daquelas acusações que Falcone e Cássio trocavam, farpas que poderiam acabar em bombas, era uma hipótese.


Em resumo, Lola ouviu dizer que tempos atrás Abgail sabia das  falcatruas de Arturo: fraudes fiscais, invasão de propriedade privada, desacato e outros delitos mais graves. Depois de se separar de Arturo, Abgail teria fugido com um sujeito que não regulava bem da cabeça, ninguém sabia seu nome, mas o apelido parece que era Ventania. Nessa história havia um juiz de nome Simeão que se envolveu a pedido de Falcone, seu amigo desde os tempos da faculdade. Prontificou-se a ajudar. Descobriu que Abgail já se relacionava com aquele sujeito antes de se separar do marido e desaparecer. Simeão Neto usou de toda sua influência, que não era pequena, para descobrir onde os dois se escondiam. Internou o casal numa instituição particular e clandestina para alienados mentais. Por quê? Quando o juiz a encontrou, Abgail poderia ter dado dezenas de explicações, até mesmo nenhuma, mas preferiu dizer que não se lembrava de nada, estava com amnésia. Simeão, diante de sua rara beleza e sensualidade, fingiu acreditar e usou isso como motivo para autorizar seu internamento compulsório. Talvez para continuar iludindo Arturo Falcone e impedir que em algum momento ele chegasse à sua ex-mulher, o juiz internou Abgail com o nome de Helena, dizem que ainda debochou da sua "amnésia". O sujeito que vivia com ela, o tal amante de anos, tentou reagir com indignação. Foi sedado e também conduzido para o "retiro". Cássio, ou Cassiano, seria o braço-direito do juiz Simeão Neto.

Fiquei conversando com Lola e ouvindo ela contar horrores, coisas inacreditáveis desse tal Simeão Neto, entre elas o fato de ser   fundador de uma seita esdrúxula, que se autodefinia como Obscurantista, pois seu objetivo era provar que o lado perverso do ser humano sempre sairia vencedor na luta entre o Bem e o Mal. Simeão chegou a patrocinar uma série de TV, subornando professores e acadêmicos, para provar que o Iluminismo nunca passou de uma fraude histórica e que a Inquisição precisava voltar,  para resgatar "nossa verdadeira essência". 

Perguntei a Lola se não seria o caso de visitar instituições pra descobrir onde esse juiz internara a mulher de Arturo, que se chamava Abgail ou Helena, vítima de uma real ou imaginária amnésia (muitas dúvidas, poucos dados). Tudo que Lola  respondeu foi:  "Como se tira alguém do hospício, Luís? São as piores prisões do mundo." 

Depois, ficamos por ali conversando, especulando sobre a natureza humana, e eu disse a Lola, mais para ver sua reação: "Na vida, a maioria das pessoas, em algum momento, procura se fazer de vítima, até mesmo um sujeito cruel, algoz da pior espécie pode se julgar vítima do destino. Será que não é o caso desse juiz Simeão? Duvida que ele se ache um Páris nas mãos de sua adorada Helena?" Lola sorriu e disse que Abgail sim devia ser a grande vítima daquela história: "Parece que ninguém perguntou o que ela queria ou não queria. Carimbaram um rótulo de louca em sua testa e tiraram a coitada de circulação."


Nem me passou pela cabeça perguntar como Lola sabia de tudo aquilo que me contou, nem se era mesmo confiável a fonte que lhe forneceu tantos detalhes. Pra falar a verdade, gostava mesmo era de ouvi-la, me surpreender com suas deduções, descobrir sua lucidez, tão espontânea quanto a intuição que sempre exibiu. 


"Convém não tocar neste assunto com Arturo Falcone. Nem imagino qual seria sua reação, Luís Santiago."

Eu disse um "tudo bem" não muito convicto. Em algum momento, nós sabíamos, a história de Falcone, Abgail e Simeão seria revelada, assim como não havia como ocultar para sempre a franquia do crime, se é que "Cássio Meireles" era de fato uma franquia.


"Não mereço nada, depois de te contar tudo isso", perguntou Lola. E eu respondi: "Merece tudo, tudo mesmo..."

"Me dá seus olhos, Luisito. Eu vou tirar a roupa."



            FIM DA 1ª PARTE



PS - Não ver sentido em uma ou outra coisa na vida é normal, todo mundo pode passar por isso em algum momento. Mas quando você começa a não ver sentido em muitas coisas, cada vez mais, até chegar a um ponto em que você não vê sentido na própria vida, aí, lamento dizer, mas a vaca foi pro brejo.




 * Não é autobiografia, ok? Também não é a história de alguém que eu conheço ou de quem ouvi falar. São coisas que eu expulsei da minha cabeça. Só isso. Não terminou, é claro. Nunca termina esse pulsar.

** Desculpe os erros de edição, tipo parágrafos repetidos, ideias surradas pela falta de memória de curto prazo, etc. Aos poucos, vou tentando arrumar. 


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