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Ok?

terça-feira, 9 de março de 2021

ROTEIRO PARA ENTENDER A MORBIDEZ QUE ASSOLA O PLANETA

f.n. TUDO É PROVISÓRIO. Sexta-feira à tarde, você está no seu escritório vendo um filme. É a história de dois prisioneiros que ocupam duas solitárias, fétidas e sombrias, uma ao lado da outra. Comunicam-se apenas por batidas na parede. Você não sabe o que as batidas significam, mas os prisioneiros sabem, e o guarda que caminha no corredor também. Para enganá-lo, as batidas confundem-se com seus passos. Você se levanta e tira o som da TV. Na parede há um alvo de borracha e você começa a atirar os dardos, como em um pub. Erra todos (Isso se você for homem; se for mulher irá ao toalete arrancar pelinhos das sobrancelhas. Escolha o seu sexo, não faz a menor diferença para a morbidez a que me refiro). O tédio toma conta do escritório e você volta a se sentar na frente da TV. Não há mais som. No entanto, ainda escuta as batidas. Elas agora vêm da porta, e rapidamente você conclui que tem alguém querendo entrar nesse seu mundinho vazio, melancólico como toda sexta-feira depois das três e meia e antes das seis da tarde. Você não sabe se diz: “Por favor, tenha a bondade de entrar”, ou “Entra, porra...!”, ou ainda se deve ir até a porta e perguntar “Quem é?”. Na dúvida, tudo o que você consegue fazer é usar o controle remoto para aumentar novamente o som da TV. As batidas lá estão nas celas dos prisioneiros, como se nada tivesse acontecido em todo esse tempo. Agora elas se confundem, não só com os passos do guarda na ala, mas também com os socos que alguém dá na porta do seu escrit�rio de representações artísticas. No filme, há um corte da cena das solitárias para alguém que diz: “Benson?!” É um sujeito malencarado, imenso, um típico chefão da máfia que está diante de uma porta com a plaquinha em close: “Gabinete do Diretor”. Lá de dentro vem a ordem: “Entre”. Como o som da TV estava altíssimo, a pessoa que pretendia entrar no seu escritório acha que a voz é sua. Diz um “Dá liceinça”, com sotaque paulistano e põe a cara, depois o tronco, depois as pernas para dentro da sala. Você se esconde atrás da cadeira giratória, desliza pra debaixo da mesa e fica dali observando a elegante mulher que acabara de entrar (Continue adaptando o sexo dos personagens. Por exemplo, se você for do sexo masculino, deixe como está; se for do sexo feminino, mude o personagem para um homem elegante; mas se for “outros”, bem... aí fica a seu critério, ok?). Por um minuto ela não sabe o que fazer. Depois se ajeita na pequena poltrona cor de vinho, abre a bolsa, acende um cigarro e fica assistindo à TV. O diretor da penitenciária, Oscar Benson, discute com o grandalhão que há pouco entrara em seu gabinete. Ameaça se levantar, mas o homem o empurra. A mulher na poltrona intui que algo terrível irá acontecer. Vira o rosto, solta uma baforada e murmura: “Odeio esperar...” Ela certamente pensa que você está no banheiro, por isso descruza as pernas sem pudor, ajeita a minúscula sainha branca, e joga o corpo para trás. Lembre-se que você continua debaixo da mesa e que sua posição é, no mínimo, “privilegiada”. (Lamento, mas neste ponto não há como adaptar a história para os sexos “feminino” e “outros”...) Da posição em que se encontra, você não consegue mais assistir ao filme. Apenas ouve uma voz de homem gritar: “ISTO é pra você não se meter com a mulher dos outros, Benson, seu CANALHA!” Há um ruído, semelhante a um corpo que se estatela em algum chão de algum escritório. Você acha que foi Benson quem caiu, mas acontece que ali, na frente da mesa debaixo da qual você está escondido, seus olhos encontram um corpo de mulher jovem e elegante, com um cigarro na boca, boca essa que não mais respira. Você sabe perfeitamente que não pode ficar escondido debaixo da mesa por toda a vida. Em breve vai ter que dar explicações. Você passa um scanner na memória. Tudo o que poderá dizer será algo como: “Ela usava calcinha cor-de-rosa e fumava sem parar...” Talvez não resolva o seu problema, mas ainda assim é melhor do que repetir o que diz na TV o assassino de Benson: “A era de desmandos chegou ao fim. Libertem os prisioneiros das solitárias.” MAS NEM TUDO É PERECÍVEL. Quando o inspetor chega, acompanhado por uma equipe de arrogantes investigadores, você ainda está escondido debaixo da mesa, olhando como um pateta as cinzas do cigarro sobre o tapete. O inspetor dá uma rápida vasculhada no ambiente do crime, mete a cara debaixo da mesa e encontra... nós já sabemos quem. “Ora, ora... Mas o que temos aqui”, ele exclama sorridente. Pede que você se levante e saia do esconderijo. Você reluta, mas ele diz que não há perigo, “...o assassino já se foi”. Quando você se ergue, depois de tanto tempo encolhido debaixo da mesa, sente dor e dormência nas pernas. Está um pouco confuso e amedrontado. Olha para os homens do inspetor com uma natural desconfiança. São quatro. Todos de terno preto e sapatos de verniz, parece uniforme. Você tem vontade de rir, mas são eles que esboçam um sorriso maledicente, olhando ora para você, ora para o corpo da jovem caída no chão. Você quase escuta seus pensamentos e o comentário é um só: “Sortudo... Mais uma vez o sacana se deu bem”. (Vamos esquecer de uma vez por todas aquela bobagem de adaptar o personagem ao sexo do leitor, ok?. Isso nunca deu certo antes. Acho que nunca vai dar.) Do alto de seu metro e meio de altura, o inspetor aparenta impaciência. Pergunta de onde você conhece a vítima. Você diz que nunca a viu mais gorda. Um dos investigadores dá uma gargalhada e comenta: “Gorda?! Tá brincando…?” O inspetor grita, soca o ar, dá uns pulinhos... Acha que a gargalhada e o comentário foram pra ele. Fica puto da vida. Pra se vingar, olha duro na sua direção e avisa: “Não vou mais tolerar brincadeiras desse tipo...” Apesar de tudo você não se intimida. Sente uma ponta de inveja na ameaça do inspetor: “Depois do inquérito, vamos ver se você ainda será o mais famoso private eyes que o mundo já conheceu. Você reclama, alega que nunca foi detetive particular, é apenas um pequeno empresário, que trabalha com representações artísticas. O pessoal todo cai na gargalhada. Pelo andar da carruagem, parece que você está cada vez mais encrencado. A sexta-feira azedou definitivamente por volta das cinco e quarenta e sete, quando o pequenino inspetor ordenou que você não se afastasse do escritório até que ele tivesse em mãos o resultado da perícia no corpo da jovem assassinada. Em seguida, um fotógrafo esquadrinha o ambiente sob todos os ângulos possíveis, dois assistentes vestidos de branco colocam o corpo na maca, um investigador ajeita a microssaia da jovem morta e a tropa toda vai embora sem se despedir. Aquele escritório já não era mais seu. Tanto faz se você é um detetive famoso ou um insignificante caçador de talentos. Você sabe que seu reduto foi invadido, violentado. Aquelas paredes, aquele chão, a TV antiga... nunca mais serão os mesmos. Você pensa: “Como é que alguém pode representar bailarinas, cantoras, atrizes famosas, depois de tanta confusão?” NA HORA DA VERDADE. “Mildred, é o nome dela: Mildred, registro nº 0652”, o inspetor diz como se estivesse contando algo que você há muito tempo já sabia. Em seguida, o inspetor dá um sorriso e revela que o passado de Mildred não é nada recomendável: “Foi babá, auxiliar de vendas, provadora, espiã do exército, monitora de jovens iniciantes, dançarina profissional... Até chegar ao status de hit das sex-shops. Finalmente, quando os homens cansaram de seu rosto, passou de mão em mão. A última delas parece ter sido a sua.” A surpresa nem sempre dá ao adversário a vantagem que ele procura. Você fica examinando o inspetor com uma certa curiosidade defensiva, e isso parece irritar o homem. Ele coça o queixo, diz uns palavrões entredentes e chama um daqueles auxiliares gigantescos. Manda o sujeito escrever numa folha de papel o endereço do depósito, que vem a ser o lugar onde largaram Mildred. O inspetor diz: “Mildred é clone, Petrarca. E contra os clones não há crime. Por falar nisso, nem morte houve. Parece que foi uma pane nos circuitos que regem os movimentos.” Antes de sair, o inspetor não se contém: “Você sabia de tudo isso, não é? Quis nos fazer de bobos. Cuidado, mais uma dessas e vai direto para a penitenciária de Oscar Benson, seu canalha...” O inspetor e sua troupe vão embora, novamente sem se despedir. Você olha o papel com o endereço do depósito e jura a si mesmo que nunca mais vai aceitar um cálice de absinto na hora do almoço, ainda que a oferta venha da mais sedutora de todas as Mildreds.

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