- Achei muito lento, infelizmente não vai dar, Samuca.
- Lento como?
- Lento, lento... Sem movimento, as pessoas não gostam de ler coisas assim.
- Mas é um conto, não é um filme.
- Hoje em dia tudo é filme, entendeu? Desde que inventaram os "efeitos especiais" ninguém mais quer saber dessa coisa parada, entediante.
- Entediante? Entendo, acho que entendo...
- Leva pra casa, dá uma revisada, muda algumas coisas.
- Tipo o quê?
- Por exemplo, essa parte que o cara beija a mulher do amigo.
- Que que tem? Acha que ficou muito forte?
- Mas que forte? Em que mundo você vive? Acho que ficou foi fraco... Só dizer que o cara a beijou "dos pés à cabeça" não resolve, entendeu? Tem que ser mais explícito, as pessoas gostam dos detalhes.
- Mas aí não fica meio pornô, dona Selma?
- Vamos acabar com esse negócio de "dona", já te falei... Que coisa mais chata isso.
- Tá bom, Selma... Fica ou não fica?
- Fico.
- Como assim?
- Não era isso, Samuca... Onde é que eu tô com a cabeça, menino?
- Se não é pra chamar de "dona", também não é pra falar "menino".
- Tá certo, tem razão... Você perguntou se ficava pornô, não é? Fica não, Samuca. Mesmo que fique, é o que as pessoas gostam, entendeu?
- Entendi, só não sei se vou conseguir ser mais explícito. Não tô acostumado.
- Tá se vendo...
- O que?
- Nada, deixa... Tava pensando alto. Mas, como eu ia dizendo, tem que ter movimento, agitação, umas pegadinhas talvez.
- Tipo as que tem nesses programas de TV?
- Por aí...
- Gosto não.
- Então não põe... Pensa em algo mais quente entre o cara e a mulher do amigo. O amigo descobre e os dois se pegam no tapa, que tal?
- Pode ser... Se a senhora acha...
- Daqui a pouco vai me chamar de tia, Samuca?
- Desculpe, Selma, se você acha...
- Quem tem que achar é você, eu só digo que do jeito que está não vai dar.
- Pensei que o amigo não devia descobrir a traição, ficava uma coisa que só quem lesse ia entender, mesmo assim sem ficar totalmente claro, percebeu?
- Percebi, só que não é isso que os leitores querem, Sa. A turma tá de saco cheio de tanto problema que tem na vida real, problema no trabalho, problema em casa com a família, problema de grana, cartão com limite estourado... Se for pra ler alguma coisa tem que servir pra tirar esses problemas da cabeça, não pra por mais alguns, concorda?
- Pra isso tem o cinema, o teatro, a TV. Literatura é diferente, tem que dizer alguma coisa, mesmo que não seja agradável de se ouvir.
- Por isso que vocês, poetas e escritores, são todos uns mortos de fome, vivem forçando a barra, querendo enfiar coisas na cabeça dos outros. Pensa bem nesse teu conto, Samuca. Um cara tá comendo a mulher do amigo...
- Não sei se ele tá comendo, você é que tá dizendo.
- Ah, não? Se não está é porque o cara é broxa, broxinha da silva. A história não começa com o sujeito abrindo a porta do quarto e encontrando a mulher do amigo deitada na cama, inteiramente nua?
- Começa... Mas foi um acidente, entendeu? Talvez ela tenha feito de propósito, mas o cara não sabe.
- Ah, vá... Samuca, deixa de ser bobo. Claro que o cara sabe que a mulher quer dar pra ele. Toda mulher quando quer dar o cara descobre na hora. Só não descobre se não for do ramo.
- Como assim?
- Broxildo ou boiolildo, entendeu?
- Nem uma coisa nem outra.
- Eu sei, tava mexendo com você. Não te acho nada disso.
- Ei... A história não é biografia, muito menos autobiografia.
- Mas que tem umas coisas tuas aí, lá isso tem, fala a verdade.
- Um pouco.
- Voltando, vai refazer?
- Não.
- Então, tá.
- Você diz que tem que ser como num filme, mas o Saramago...
- Ah, lá vem o Saramago de novo... Faz o seguinte, vai pra casa, escreve uns duzentos romances, ganha o Nobel e depois vem aqui que eu publico e nós dois ganhamos uma bela grana.
- Mas não é só isso que importa.
- Tem mais, Saramago é mais ou menos como Umberto Eco. Todo mundo compra, mas quase ninguém lê. O Nome da Rosa, por exemplo, tirando uns intelectuais e os ex-seminaristas que sabem latim, quem mais leu de verdade?
- Eu li... Pulei as partes em latim.
- Sucesso mesmo foi o filme, com o Sean Connery. Infelizmente, nem isso aconteceu com Saramago.
- E ele não tá nem aí. Gostou, ótimo; não gostou, paciência...
- Nessa altura do campeonato é só isso mesmo que ele precisa dizer. A minha posição é que a união perfeita entre talento e sucesso acontece de cem em cem anos de solidão.
- Ahahaha... Gostei dessa. Talvez tenha razão, mesmo assim vou continuar escrevendo do meu jeito. E não esqueça que Cervantes e Shakespeare foram contemporâneos, os dois morreram no mesmo dia, 23 de abril de 1616, sabia?
- Poxa, Samuca... Você leva tudo a sério, não é? Eu não quero te convencer de nada, muito menos mudar sua história, acho que você escreve bem demais, só queria que apimentasse um pouco.
- O problema não é esse, Selma, o que eu não aceito é a ditadura do realismo, entendeu? Até o cinema já caiu nessa.
- Como assim?
- Você pode ver, é a receita do sucesso, de uns tempos pra cá só dá comediazinha burguesa estilo Rede Globo, realismo AR-15, favela do alemão, naturalismo amarelo-manga... Isso tudo no século XXI. Vende bem aqui e é "For Export" também.
- Paciência, eu te digo, é o que o povo quer.
- Não é nada. O problema é que ninguém pode querer o que não conhece. Você já sentiu tesão por um marciano?
- Eu?! Senti.
- Sério?
- Por você, revoltadinho...
- Primeiro, eu não sou marciano.
- Com essas idéias, até parece.
- Segundo, não faz assim... Seu Fonseca pode chegar a qualquer momento.
- Fonsequinha tá viajando. Só volta semana que vem. E nós estamos meio que separados, entendeu?
- Terceiro, eu e seu filho somos amigos, amigos de verdade... Não acho certo.
- Quê que tem isso? Vem aqui, eu só quero te mostrar como é que teu personagem devia fazer com a mulher do amigo.
- Para... Tô pedindo.
- Sentiu? Vejo que sim.
- Tranca a porta, então.
- Tá tudo trancadinho, menos eu, Selminha natureza viva... Tá entendendo agora do que é que o povo gosta, Samuquinha, seu bobo?