Gosto quando você pensa que eu quero te copiar, mesmo sabendo que a intenção nunca foi essa. Não tenho talento para isso, o seu talento eu não tenho, não sei mudar as palavras e com elas mudar também a realidade, que é toda feita de palavras.
Dizem que eu sempre vou gostar de tudo que você diz, mesmo que algumas vezes você escreva umas coisas que parecem ser contra mim, mas nós sabemos que não são, não é do seu feitio ir de encontro a pessoas que você mal conhece. Este é o meu caso: uma vez ou outra você me viu te olhando, escutando a tua voz que cantava desatenta. Raramente você percebeu que eu estava do lado de fora da janela, imaginando seus movimentos, sonhando com eles, querendo que um dia, não muito longínquo, você me incluísse na sua rotina, nem que fosse para desempenhar uma ponta qualquer, um papel subalterno, serviçal mesmo.
A única coisa que disseram a seu respeito e que eu não gostei foi quando me falaram que você olha de um jeito estranho para mim, estranho, disse eu, todos nós fomos um dia, confesso que nessa hora pensei que um dia também foi estranho o cara que dorme aí contigo e que muita gente pensa que te ama, talvez até você ache isso. Quem sabe, você também pensa que o ama, mas é muito fácil a gente se enganar nessas coisas do coração, não acha? Não quero falar mal da vida alheia, nem me passa pela cabeça pedir que você abra seus lindos olhos cor-de-mel e atente para o que pode ser uma doce ilusão no início, mas que a qualquer momento pode se transformar em amarga desilusão, não estou aqui para desejar que o mal lhe aconteça, nem a você nem a ninguém, o mal tem que viver no seu devido lugar, enfiado debaixo da terra, como um desses demônios que não existem.
Mas, e se for verdade?
Não verdade que o demônio exista, nem verdade que eu vá lhe desejar o mal, apenas verdade o teu jeito de me olhar, e se for?
Como eu disse no início, só o que me cabe é desempenhar qualquer papel que você queira me dar, por menor ou por mais sujo que seja ele. Basta que você me diga, vai lá, pega o cara, enfia nele a faca que você roubou da cozinheira, basta que me diga isso e ele estará de pronto sangrando no jardim, o filete vermelho escuro abrindo caminho sobre a grama úmida, manchando as pedras brancas do riacho, aquelas que eu mesmo fui buscar para agradar seus olhos tristes.
Depois?
Talvez entre no seu quarto sem bater, ainda com a faca pingando o sumo aguado do canalha, pra te prestar contas do que me pediu, talvez para te dar um pouco daquilo que você sempre quis de mim, e por isso deixava a porta entreaberta, você na cama e eu te olhando, te olhando, te olhando... Através de uma pequena fresta iluminada.
Fresta?
A porta do paraíso.