- Um filme é coisa que você passa uma hora e meia, duas horas assistindo e sai dali com uma sensação qualquer... Pode ser boa, pode não ser tão boa, mas o filme cumpriu o que prometeu, fazer você sentir algo depois de duas horas dentro de uma sala escura. Um livro, um texto literário é diferente, você não passa duas horas com ele e fim, não é essa a proposta.
- Ah, não... Vai me dizer que mudou mesmo de pensamento?
- Acho que fui convencida pelos seus argumentos, Samuel.
- Nossa... antes era Samuca pra cá, Samuquinha pra lá... agora é Samuel? Seco assim?
- Não faz... Já te pedi, melhor manter o profissionalismo.
- Por que isso agora, Selminha?
- Tô na minha casa, não acho certo... Depois, meu filho e meu marido...
- Péra, péra, péra... O filho tá viajando; o marido, encontrei com ele na garagem lá embaixo. Até acenou pra mim, disse que ia trabalhar.
- Pois é, Samuel... Vai que ele volta. Depois, eu e Fonseca estamos numa fase tão romântica.
- Ah, é??? Bom, se você não quer, esqueça. Só vim aqui mesmo pra saber o que achou da nova versão. Gostou? Tá mais picante?
- Demais, picante até demais...
- Então, quer dizer que tudo bem?
- Mais ou menos, Samuel. Vamos ter que fazer uns ajustes.
- Pronto... Voltou com a mesma história. Que ajustes, Selminha?
- Me chama de dona Selma por enquanto, tá bom?
- Ihhh... Tá certo, que ajustes são esses no texto, dona Selma?
- Sabe o que é, Samuel, eu e Fonseca conversamos...
- Mas o que é isso? Seu Fonseca também entrou pro departamento de marketing da editora? Isso é quebra de sigilo literário.
- Hahaha... Boa essa, desde quando literatura inédita tem sigilo? Ninguém tá plagiando o texto, ouviu?
- Tá bom, o que é que você, a senhora, e seu Fonseca acharam?
- Sabe aquela parte que o personagem assedia a esposa do amigo?
- Sei, claro... Assedia coisa nenhuma, o cara come a mulher do amigo, você que me pediu pra colocar isso.
- Olha os modos, olha os modos... Aí é que está, andamos lendo umas pesquisas, assistimos a um vídeo sobre as preferências dos leitores... Não é que esteja ruim, entendeu? Mas tá fora do escopo.
- Escopo??? Que escopo, Sel... dona Selma?
- Já vi que você não entende nada de marketing editorial. O negócio é o seguinte: não pode ser tão direto, tão, tão, tão...
- Porra...
- Olha os modos, Samuel... Já falei. O fato é que nesse meio tempo, decorrido entre aquele primeiro texto que você escreveu e esse agora, o gosto dos leitores mudou, tá entendendo? A onda agora é romantismo. Conversa com o Fonsequinha, ele quer te dar umas dicas.
- Me explica essa história das pesquisas. O gosto das pessoas mudou como?
- Vou tentar, escuta bem o que eu vou te dizer: as pesquisas mostram que as mulheres estão lendo muito mais que os homens, ainda mais nessa área de ficção.
- Ah... E vai dizer que mulher só gosta de romantismo? Descobriram isso também?
- Claro que não, né...? Acontece que as mulheres que interessam à linha editorial da nossa empresa...
- Ihhhh...
- Conversa com o Fonseca, ele vai te explicar melhor. Outra coisa, teu livro ainda não foi recusado oficialmente, entendeu?
- Não tô a fim de conversar com seu Fonseca porra nenhuma, Sel... Acho que vou levar o texto pra outra editora, uma que goste de sacanagem explícita, tal como você gostava.
- Samuel, para com isso. Tira a mão, por favor... Como você está mudado, antes era um menino tão quietinho.
- E dizer que foi a senhora que me deixou assim.
- Larga... Mas será...?
- Tá bom, vou pra casa escrever o roteiro de um curta, vai se chamar: "O dia em que Sam se perdeu nas curvas de Sel".