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domingo, 23 de agosto de 2009

Tangências e Menções *
Fn
O cão, um labrador de pelo claro, cuidava, pode-se dizer, desatento. O ambiente era mal iluminado em certos pontos, mas não necessariamente nos cantos ou debaixo da mobília. Pela janela escancarada entravam o ar e o crepúsculo: o primeiro, gelado, a julgar pela roupa que todos usavam; o segundo, em tons vermelhos e amarelos, melancólico, se é que existe um entardecer melancólico por si só. Estávamos acostumados a examinar cenas como esta sem projetar na paisagem nossos próprios sentimentos. O único interesse era retirar dali um pequeno detalhe, subtrair algo que até então nos escapara, pinçar, como gostávamos de dizer, um pedaço da verdade sempre duvidosa.

Uma vez me aconselharam a não dar voltas na realidade, sobretudo para não cansar os raros leitores que ainda se interessam por narrativas incomuns, caso contrário podem eles enjoar do ar de mistério que paira no texto, de modo que vou logo esclarecendo que observávamos um quadro, melhor dizendo, um mural, que o artista morto recém-terminara (ou será: "recém-morto terminara"?). A pista deveria nos levar às razões de sua morte. Corria a versão de suicídio, mas nunca se sabe ao certo por que um homem, como aquele artista, o famoso e bem-sucedido Jesus Galhardo, seria capaz de enveredar por um caminho sem volta, se o fizera pelas próprias mãos ou contara com a ajuda de algum "colaborador" ou "colaboradora". Que havia sido um suicídio estava fora de questão, tendo em vista o teor da carta, dirigida a uma tal Patrícia Pat.
Claro que antes de examinar o mural com a lupa da desconfiança procuramos descobrir que Patrícia era aquela e qual o papel que desempenhava na vida do morto. O mistério, o tal que pairava no ar, tornou-se cada vez mais denso, pois à medida em que avançávamos na investigação menos sabíamos quem era essa mulher. A carta estava repleta de alusões a encontros casuais, desencontros inexplicáveis, rotinas e excentricidades variadas. Encontraram-na sobre uma banqueta no atelier do pintor. Não havia envelope, nem endereço, nada enfim que materializasse o destinatário. Ligamos para amigos e parentes do artista, interrogamos jardineiros, faxineiras, motoristas... mas ninguém a conhecia. A única pessoa a nos dar uma relativa esperança foi Anne Marie, sua colega de faculdade, tida por muitos como amante de Galhardo durante anos e anos.
Por que uma esperança apenas relativa?
Parece obra de ficção, mas Anne Marie nos disse que essa tal Patrícia Pat não passava de uma alegoria, uma personagem a quem o artista se dirigia nos momentos decisivos de sua vida.
"Que conselhos Patrícia Pat dava a Galhardo?", Garcia quis saber.
Anne Marie sorriu com tristeza e disse, aparentando uma certa mágoa: "Parece que o último foi esse que chocou a todos nós, com a intensidade de um meteorito em chamas que desaba sobre nossas cabeças..." Depois saiu trôpega, murmurando algo como "Galhardo vive, Galhardo vive, sua puta..."
Voltando ao mural que nos servia como última referência para elucidar o caso (que nem caso era), devo esclarecer que se tratava de algo bem diferente de uma dessas pinturas comuns, tais como as de Victor, Diego ou Siqueiros. Era um mural que ganhava dimensões e movimento, dependendo do local em que estávamos e do tempo que olhávamos para este ou aquele detalhe. Havia a tal janela, por onde entrava o ar gelado e a luz crepuscular, mas acima e ao lado dezenas, talvez centenas de rostos, alguns angelicais, outros atormentados, sobrepunham-se a cenas de um cotidiano banal. Por mais de uma vez julguei que estivesse em meio a uma alucinação ao ver, por exemplo, que a mulher vestida como feirante estendia para mim uma cesta de frutas, tão perfeitas que as gotas que delas se desprendiam molhavam o dorso de um alazão, que de pronto saía em disparada. Olhava eu então para os lados e percebia que meus companheiros de investigação deviam estar passando pelo mesmo processo, a julgar pelo comportamento absorto e alguns sobressaltos, idênticos aos que me acometeram.
"O que é isso, afinal?" , perguntei em voz alta a Jorge, mas este parecia ainda mais hipnotizado pelo enorme mural e suas armadilhas.
Garcia respondeu por ele: "Acho que está na hora de investigar a comida e a bebida que servem na lanchonete de Rita Fontes, talvez venha dali a resposta, talvez não..."
Felizmente, para não dizer que saímos do atelier de mãos abanando, Juan Carlos fotografou alguns poucos milímetros quadrados no canto inferior esquerdo do mural. O que parecia uma pequena mancha marrom revelou-se um novo desafio para a nossa inteligência. Galhardo escrevera em letras inseguras: "Encontrei finalmente o que tanto buscava. Mas o tempo passa para todos e também há de passar para ti, Patrícia Pat".  


* Isso de contar uma história (ou uma estória) com palavras e cenas já está me cansando, embora eu não o faça há quase seis semanas. Na verdade, sinto-me incapaz de escapar do plágio, não do conteúdo em si, pois não disponho de tamanha desfaçatez, mas plágio do clima, da atmosfera, do universo enfim...

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