Fn
- Fonseca. Vem cá, meu amor...
- Sei não, sei não...
- O que é que você não sabe?
- Ainda agora te perguntei se o tal do Samuel, vulgo Samuca, já tinha terminado o novo livro de autoajuda e se você deu uma olhada nele. E o que é que você me respondeu, Selminha?
- Eu disse que sim, ué... Que já tinha dado uma olhada.
- Hãhã... O que você disse foi: "Dei sim e que olhada!"
- Ah, Fonsequinha, esquece isso... Tô meio confusa hoje.
- Tô sabendo... Você confusa aqui, o Samuca confuso lá, e eu no meio dessa confusão levando chifre.
- Que chifre, Samuca? Tá louco? Vai ficar com ciúme do pirralho agora?
- Do que é que você me chamou?
- De Fonseca, Fonsequinha... Oras.
- Hãhã... Não foi não. Do que é que você me chamou, Selminha?
- De Carlos Eduardo?
- Que Carlos Eduardo é o caralho!
- Olha os modos, olha os modos...
- Você me chamou de Samuca, Selma... De Samuca!
- Foi?
- Foi!
- Tem certeza?
- Tenho!
- Tá vendo como você me deixa? É esse teu ciúme doentio. Você sempre foi assim, Carlos Eduardo Fonseca.
- Ah, é?! Troca o meu nome pelo do amante e ainda vai colocar a culpa em mim, sua cachorra!
- Me solta...
- Sua vadia!
- Me larga, tá machucando...
- Vagabunda... vagabundazinha.
- Para, Fonseca... Já pedi.
- Me chama de novo de Samuca pra ver se eu não te encho de porrada, safada.
- Detesto violência, você sabe disso. Tira a mão daí, Fon... Não faz.
- Safadinha. Vem cá.
- Espera, deixa eu trancar a porta.
- Tranca não, nem precisa se preocupar, Selminha.
- Como assim? E se chegar alguém?
- Pensa que eu ainda tô a fim de alguma coisa contigo? Pode ir tirando o cavalinho da chuva, ou melhor, a eguinha.
- Fonseca!
- Voltando à vaca fria...
- Olha os modos, olha os modos...
- Não era de você que eu tava falando, é só uma expressão antiga, minha avó que gostava de dizer; (imitando a avó): "Voltando à vaca fria..."
- Fala logo que o Samuca tá pra chegar.
- Você não tira a porra do Samuca da cabeça, não é?
- Nossa, Fon, você fala cada coisa. (Em aparte, para a platéia): A porra do Samuca, ai, ai...
- O que foi que você disse?
- Nada, nada... Tava sonhando alto, deixa pra lá. O que é que você queria saber afinal, Fonsequinha?
- O livro de autoajuda que o Samuel tava escrevendo, o Maylson já deu uma lida?
- Que Maylson?
- O Maylson da Corretora, mas será possível?
- Ah, aquele que é teu sócio e que já leu até o tal de Tchecov em russo?
- Em primeiro lugar, Maylson não é meu sócio, trabalha pra mim na Corretora, entendeu? Em segundo lugar, não sei e não quero saber se ele leu Tchecov em russo, de russo eu só conheço o Yashin, que foi goleiro da seleção.
- Um russo? Goleiro da seleção?!
- Da seleção russa, não é, estúpida?
- Ah, tá... Não me chama de "estúpida" que eu não gosto. Você acha que todo mundo que não entende de futebol é estúpido. Esse tal de Maylson é a mesma coisa...
- O quê??? Com o Maylson, você também...
- Para, Fon... Mas que homem desconfiado. Eu disse que esse tal de Maylson deve ser a mesma coisa, eu só o conheço de vista.
- E eu de testa...
- Para com isso, mas que mania... Não sei direito se o Maylson leu o novo livro do Samuel, parece que deu nota cinco.
- Cinco?! Ele tinha dado seis e meio pro outro.
- Bem que o Samuquinha avisou que autoajuda não é a praia dele. Gosta mesmo é de ficção. Você que insistiu, dizendo que autoajuda é que vende, que você precisa do seu capitalzinho de volta, essas coisas que o senhor fala sem parar, seu Fonseca.
- Nota cinco, nota cinco... Eu tô é ferrado com vocês.
- Você? Tá bom... Você só se ferra quando o dólar cai e a bolsa despenca, não é isso que diz?
- Não gosto de perder dinheiro, me dá alergia, fico todo vermelho de raiva. Aliás, não gosto de perder nada, nada, tá ouvindo?
- Você nunca perde, nasceu pra ganhar. Desde pequeno Fonsequinha é do time dos winners.
- Devia ter deixado a editora se ferrar. Você que fosse pro cartório, Selminha.
- E você ia junto, esqueceu que é meu fiador e sócio na Editora?
- Assinei os contratos com a mão esquerda, até o carimbo de reconhecimento de firma é falso, tudo fake, tudo fake...
- O quê??? Você fez isso comigo, Fon?
- Fiz, mas depois fiquei com pena e meti aquela grana pra salvar vocês. Aí é que eu me ferrei de verdade, entendeu?
- E o nosso casamento? Também é fake?
- Mais ou menos... O casamento é de verdade, mas tem uma cláusula no contrato que diz que se você entrar numa fria no mundo dos negócios, sai sem nada, com uma mão na frente, outra atrás, entendeu?
- Agora entendi. Você deve me achar a pior das piores, não é?
- Não gosto de julgar ninguém, Selminha. Não tô aqui pra julgar as pessoas.
- O problema é que você tá sempre dizendo isso. (Imitando o marido): "Não gosto de julgar ninguém", mas acontece que não faz outra coisa na vida, Fonseca.É assim mesmo, todo mundo julga o tempo todo. Julga o que é certo, o que é errado; o que devia fazer, o que não devia. Você, por exemplo, diz que não julga, mas vai ferrando todo mundo, sem direito de defesa.
- Vai chorar agora?
- Devia... Eu é que vou sair perdendo nessa história: "uma mão na frente; outra atrás".
- Nada, Selma. Quem mais vai sair perdendo é o Samuel.
- Samuel?! Como assim?
- Então, começou escrevendo literatura, passou pra autoajuda, se bobear ainda faço ele escrever um livro só de crítica literária, ele em parceria com o Maylson, arranjo um patrocínio, umas verbas do Ministério e pronto, não precisa nem vender.Tá pensando que vida de artista é moleza? ahahahaha...
(Soa a campainha da porta. Fonseca abre e diz):
- Samuel, tava todo mundo te esperando.
- Bom dia, seu Fonseca. Bom dia, dona Selma.
- Bom dia, Samuca. Entra, pode entrar... (baixinho para Samuel): Ele merece.
- Não entendi, dona Selma.
- Esquece, tava só pensando alto. Entra, vai...
- E aí, Sam? Já sei que você terminou de escrever o livro. O Maylson já leu e te deu nota cinco.
- Nota cinco, seu Fonseca?! Isso não é justo... Nota cinco?!
- Também achei sacanagem, Samuquinha... Mas não se preocupe que o Fon tá querendo te propor um outro livro, não é, Fonsequinha?
- Já escreveu crítica literária, Sam?
- Crítica literária?
- É, critica literária... Mas tem que ser diferente, bem movimentada, entendeu, Sam? Uma coisa que ninguém fez ainda, Como num filme...