Do jeito como tem sido pensado, o futuro nada mais é do que o eco do presente. Cartomante, pitonisa, quiromante, sortista... Você pergunta daqui, ele responde de lá. Vai acreditar no que ouve? Ou acha que ele te engabela, dizendo coisas que você já devia saber, devolvendo com outras palavras o que você mesmo a ele informou?
Quando pegaram o suspeito para interrogatório e futuras averiguações, todos nós ouvimos sair de seus lábios trêmulos estas toscas palavras: "Com que interesse eu mataria alguém que amo e depois deixaria a arma de minha propriedade no local do crime? Tudo isso sem possuir um único álibi, a não ser o de estar vagando naquele momento pelas ruas desertas de uma outra cidade, alheio à fina garoa da madrugada, me protegendo apenas com a gola do paletó erguida, talvez para que ninguém mais viesse a me reconhecer e a testemunhar a meu favor? Podem me dizer se acham que eu seria capaz de tamanha estupidez para me autoincriminar?"
Um dos homens respondeu que não era seu trabalho averiguar a índole das pessoas, muito menos escavar suas neuroses, deixava isso a cargo das... Não chegou a terminar a frase, porque alguém entrou na pequena sala de paredes espelhadas e resmungou algo no ouvido do chefe, que esmurrou a mesa, soltou uns dois ou três palavrões cabeludos, acompanhados pela tradicional e inofensiva expressão: "Só faltava essa..."
Quase todo mundo vê o futuro como uma continuidade do passado, olham para trás e acreditam que assim também será o futuro. Não se dão conta que o espelho que procuravam é falso, ilusório, quando não, traiçoeiro, demoníaco. O espelho do passado raramente joga luz no presente. O futuro? Não se meta com quem você não conhece, pode ser um bom conselho.
O suspeito quase perguntou se aquele "essa" que o chefe proferiu poderia ser a sua advogada que acabara de chegar com um habeas-corpus. conteve-se a tempo, tendo em vista a real possibilidade de ocupar o lugar da mesa nas mãos do chefe. O encarregado do inquérito retomou: "Acha que alguém vai acreditar nessa boboseira? Desde quando levam em conta o que um sujeito faz ou deixa de fazer contra si mesmo?" Ficamos naquilo de montar a peça acusatória, baseada em evidências, que eram muitas e apontavam para uma só pessoa.
Hoje, depois de todas as surpresas que tivemos que engolir, fico pensando naquele momento do inquérito, quando alguns de nós olhavam para o nosso único suspeito e chegaram a sentir uma certa simpatia pelo seu desolamento. Mais tarde, muitos confessaram que jamais lhes passou pela cabeça que era tudo parte de uma encenação. Eis porque, como lhes disse, os olhos do passado só servem para olhar o próprio passado.
Não é que a arma encontrada no local do crime não pertencesse ao suspeito. A perícia, no entanto, comprovou que a bala que matou sua amante não havia saído daquele revólver. De qual, então? O suspeito teve seu primeiro motivo para sorrir levemente.
O segundo motivo veio com fitas de vídeo apresentadas pela tal advogada, que sabia como ninguém irritar o chefe. As imagens gravadas por diversas câmeras de ruas e prédios comerciais identificaram alguém muito parecido com o suspeito, caminhando com a gola do paletó levantada, na mesma madrugada em que a mulher fora morta. As ruas, como todos devem imaginar, pertenciam à região central daquela cidadezinha que o acusado blá-blá-blá-blá...
Mais tarde, surgiu um misterioso frentista de posto de gasolina que jurou ter visto o ex-suspeito atravessando a pracinha da prefeitura, a defesa ainda teve a desfaçatez de juntar ao processo um bilhete de ônibus interestadual, em nome do acusado, em data e hora que se encaixavam como uma luva para comprovar sua inocência. Eu disse que podia ir atrás do motorista do ônibus e tomar seu depoimento para confirmar o embarque do quase-bode-expiatório, mas todos riram do meu "exagero", de modo que só me restou a alternativa de embolsar a grana que o assassino me pagara para destruir uma a uma as evidências de um crime torpe, porém altamente lucrativo, mesmo depois de subornar o detetive da seguradora.
Enquanto me dedico a essa nova e promissora tarefa de "fornecedor de álibis", volto a pensar que as pessoas ingênuas talvez tenham uma certa razão, quando dizem: "O futuro, a Deus pertence..."