Logo percebemos que não seríamos iguais um ao outro, nem eu igual a ela, nem ela igual a mim. Nunca precisei dizer com todas as letras que jamais gostaria das mesmas bobagens que ela gostava, também nunca me disse que não pretendia entender o modo como eu me comportava diante das minúcias que preenchem a vida, tenho pra mim que isso, na verdade, sempre foi para ela a própria vida, as minúcias, a argamassa que assenta o piso e não apenas o rejunte que o finaliza. O fato, dizia ela, é que você, no caso eu mesmo, tem muito dos defeitos que julga encontrar nos outros. Foi o bastante para que eu começasse a enumerar os defeitos que julgara encontrar nela, mas ainda não os tinha declarado. A proximidade não conta?, perguntou, conta, respondi, principalmente para aguçar a sintonia fina na arte de descobrir farelos, migalhas talvez, que antes passavam quase imperceptíveis, mas também serve para atenuar certas circunstâncias?, retornou ela, desde que a tal lembrança da proximidade já não tenha ido também por água abaixo. Quer um exemplo? Sabe o que consegue com essa tática de contar as coisas nas entrelinhas, falar tudo pela metade, perguntou e ela mesma respondeu, consegue deixar todo mundo em dúvida sobre o que é verdade ou não, se aquilo é aquilo mesmo ou se foi mal-compreendido, enfim, completei como se estivesse ajudando, dando uma mãozinha aos seus pensamentos, enfim, de novo e de novo enfim, resta todo mundo sem saber o que de fato aconteceu, é isso? Vi sua cabeça balançar levemente, concordava afinal com alguma coisa que eu enfiava de contrabando em suas ideias emaranhadas. A raiva, dizia eu, quase nunca é dirigida ao que de fato a provoca, na maioria das vezes, descarregamos em qualquer coisa que nos incomoda naquele momento, mas a verdadeira razão da raiva ou da agressividade pode ser uma antiga frustração, uma insatisfação com a gente mesmo, só que eu nunca vi, ela argumentou, alguém ficar com raiva e esmurrar a própria cara na frente do espelho, tem, respondi, mas de fato não é comum. Os hiponcondríacos, pensei eu, aqueles que vivem inventando doenças e se queixando a todo momento, o que na verdade procuram é despertar a atenção de quem está próximo, é a tal da carência que vem lá de pequenininho, inconscientemente reproduzem o prazer que sentiam ao ouvir o adulto dizer, tá doentinho?, coitado, toma esse chocolate que você já melhora. Recompensar a dor, começa aí um longo ciclo escravizante. Mas a dor, tem quem goste de sentir, ao mesmo tempo em que reconhece no outro o regozijo da compaixão, que simula a dor pela dor, tudo fake, tudo fake... mas bem dentro aqui da gente.