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Ok?

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

O FUTURO TEM SEU PREÇO

Fn

Não cheguei a alcançar a fama, mas são muitos os que ainda se lembram de mim, embora nem todos com o mesmo entusiasmo ou benevolência . Possuía eu um dom inusitado, aquele de prever com exatidão o que iria acontecer amanhã, depois de amanhã, daqui a cinco, dez, quinze anos, ou minutos. E isso estragou minha vida. Explico melhor, estragou porque passei o tempo todo tentando me libertar de uma contradição, melhor dizendo, de uma arapuca, armadilha das mais traiçoeiras: se era eu capaz de adivinhar o futuro com exatidão de milímetros no espaço, ou de milésimos de segundo no tempo, de que adiantariam os meus conselhos para mudar o que quer que fosse? Se o futuro já estava traçado, e eu o desenhava em linhas precisas, das duas, uma: ou estava falando a verdade, e portanto era impossível mudar os acontecimentos, ou mentia descaradamente, logo não devia ser levado a sério. No primeiro caso, não havia mais nada a fazer, depois de relatadas as profecias, exceto resignar-se, coisa que os mortais abominam, ou fingem abominar. A segunda hipótese, a de estar eu mentindo ou padecendo de algum tipo de alucinação, merecia no mínimo o descrédito ou, no máximo, uma bela sova, se não tanto, ao menos que me expulsassem das cidades com desonra, o que de fato ocorreu algumas vezes ao longo de minha penosa, embora divertida, existência.
Devo explicar que, tal como acontece com todo profeta que se preza, o descrédito e o escárnio foram meus maiores obstáculos. Não estava disposto a fazer demonstrações gratuitas de meus poderes, tampouco podia atender àquelas solicitações esdrúxulas, como a revelação dos números do próximo sorteio da loteria, ou responder a especulações do tipo: “Minha mulher vai me trair? Quando? Onde? Com quem?”. Começa que nem era eu quem escolhia o tema e a hora das profecias. Na maioria das vezes, “aquilo” vinha e me dominava, me entortava a mente, tornava-se avassalador, incontrolável. Aí então as palavras jorravam da minha cabeça para a minha boca e lá ficavam, coçando-me a língua, doidas para atingir os ouvidos de quem estivesse ligado aos presságios. Por uma questão de ética, só poderia revelar as adivinhações às pessoas interessadas. Bem entendido: poderia ou não revelar os vaticínios, ficava a meu critério. Muitas vezes nada revelei, por temer as consequências.
Estou certo que alguns de vocês já têm inúmeras perguntas a me fazer. Vejo, inclusive, o risinho no canto da boca dos incrédulos. As dúvidas, como se fossem um enxame de abelhas africanas, rondam-me a colmeia pensante, na certa querendo devorar um segredo que nem eu mesmo sei traduzir. Para que não pensem que estou a fugir da verdade dos fatos, passo a narrar exemplos que tanto incomodam como também acabarão por comprovar o que venho lhes dizendo:

Meu primeiro vaticínio pegou minha própria família de surpresa, foi por isso uma espécie de tiro que saiu pela culatra. Estava eu sentadinho na cadeira de bebê, diante de um pratinho de mingau de aveia, quando, olhando para a prateleira mais alta da cozinha, gritei: “Vai cair...” Na hora ninguém entendeu nada, parece que uma das minhas irmãs mais velhas teria dito: “Vai cair o que, Dado?” Segundo consta nos anais familiares, nem tive tempo de responder, o pote de açúcar desceu lá de cima, como a primeira pedra a rolar montanha abaixo, trazendo com ele latas, louças, copos, pacotes... enfim, tudo que não deveria cair assim sem mais nem menos na cozinha de uma casa. Felizmente, ninguém saiu ferido com gravidade, só a empregada sofreu um pequeno corte no pé ao tentar aparar com bravura a xícara predileta de mamãe.

Disse que o tiro saiu pela culatra e explico por quê: depois de refeitos do susto, os adultos e meus irmãos mais velhos encheram-me de perguntas, do tipo: “Como foi que você sabia?”, “Ouviu a voz do demo falando ao seu ouvidinho?”, “Quem te disse que a prateleira ia cair?”. Claro que eu não tinha, como aliás não tenho até hoje, respostas para tais indagações. Como iria matar a curiosidade de meus parentes, se nem eu mesmo sabia dizer por que diabos abri a boca naquele minuto? “Por que diabos...” é uma expressão que vem em boa hora, pois foi a partir daquela primeira previsão que passaram a supor que eu tinha lá minhas partes com o dito-cujo. Lembro-me como se fosse hoje da criada, muito religiosa e temente a Deus, passando por mim e se benzendo, assim como também me recordo de minha irmã Matilde e meu irmão Ernesto imitando touros ou bodes, com os dedos empinados na frente da testa, correndo na minha direção. Minha bondosa e protetora mãe, como era de se prever, passou uma descompostura na empregada, aplicou uns cascudos em meu irmão e colocou minha irmã de castigo, coisa que, devo confessar, muito agradou a este profetinha que vos fala.
Minha segunda previsão quase jogou por terra o incipiente prestígio que recém-alcançara. Explico melhor, era um domingo de sol e minha alegre família caminhava a esmo no parque da cidade. Meu pai ocupava uma posição de destaque na política local, por isso e também pelo fato de gozar de uma excelente situação financeira, era ele cumprimentado por todos, bajulado por muitos, temido por poucos. Nossa família, como sempre conservadora e católica fervorosa, zelava pelos “bons costumes”. Até aquele dia, meus supostos poderes haviam sido guardados na lista de assuntos proibidos, não apenas porque temessem a reação da cidade - pequena demais, no tamanho e na alma - como também por imaginar, com toda razão, que nosso pároco não iria aceitar de bom grado qualquer concorrência no ramo espiritual.
Acontece que já naqueles tempos não me era permitido controlar as adivinhações, de modo que soltei novamente um “vai cair” bem alto no momento em que o prefeito descia as escadas da igreja. O silêncio tomou conta de todos. Só respiraram depois que o dito prefeito desceu incólume o último degrau da escada. Entre risos e gozações, vi meus poderes contestados, achincalhados, desacreditados por todos. A tal ponto que mereci beijos e abraços de meu pai, de minha mãe e, sobretudo, da fidelíssima empregada. Errei? O prefeito descera as escadas sem nenhum tropeço? Pois fiquem com essa: no dia seguinte, uma segunda-feira alvoroçada para os políticos, divulgaram nas estações de rádio e TV umas conversas comprometedoras, envolvendo o prefeito, alguns empresários, “gente da pesada”, meu pai dizia. A oposição ameaçou  pedir o impeachment na câmara de vereadores. Tarde da noite, quando meu pai abriu a porta de casa, estávamos todos sem dormir, esperando as novidades. Suas primeiras palavras soaram para mim como uma doce vingança: “Era verdade... O homem caiu, acabou de renunciar”. Minha mãe quase teve um troço, mais tarde identificado como uma crise nervosa, meus irmãos fingiram que não era com eles e a criada se ajoelhou no meio da sala e disse um “pai-nosso”, se benzendo e me olhando com temor.  Meu pai, coitado, dava murros na parede e me olhava como se eu tivesse culpa do acontecido.
Naquela época, ainda era muito criança para entender de política e negócios. Na realidade, mal sabia falar e caminhar com as minhas próprias pernas. Só mais tarde é que me disseram que o pai tinha um certo interesse na permanência do prefeito, por isso não queria nem que ele caísse da escada, que dirá do poder.
Mas, como diziam os antigos (e os modernos repetem à exaustão), uma desgraça nunca vem sozinha. Minha irmã Matilde e meu irmão Ernesto, convencidos de que eu era de fato um profeta, resolveram tirar proveito de meus dotes e saíram oferecendo o serviço de prevenção e antecipação do futuro, mediante o pagamento de  módicas cinquenta pilas, com direito a devolução, caso a profecia não se realizasse. Funcionou da seguinte forma: a pessoa interessada era trazida à minha infantil presença. Eu olhava fixamente em seus olhos e, se fosse o caso, tascava-lhe a profecia na lata. Talvez devido a meu estágio de inocência e candura, inerentes à tenra idade que então possuía, raramente me faltava o que dizer. Previsões certeiras, às vezes um simples “sim” ou “não”. Como é fácil concluir, jamais meus irmãos e empresários tiveram que devolver um só tostão a quem quer que fosse. O que eu ganhava com isso? Taí um problema que me acompanhou por toda a vida: nunca descobri como utilizar em benefício próprio esse meu “talento” , se é que assim  pode-se chamar o dom de adiantar o futuro.
Quando meus pais descobriram a empreitada que Matilde e Ernesto  arrumaram para mim, já era tarde. Todos os dias, uma longa fila de interessados formava-se no portão dos fundos da nossa casa a partir das seis horas da manhã. Meus irmãos distribuíam senhas e arrecadavam as “colaborações”. No muro, pregaram um cartaz com os dizeres: ‘QUÉ SABÊ O QUE ACONTECERA COM A SUA PESOA? PERRUNTE AO DADO. PREÇO DA CONÇULTA: 50 PILAS” Meu pai quase morreu de vergonha, não tanto pelas “barbaridades ortográficas”, como costumava dizer, muito mais pela falta de caráter de seus dois filhos mais velhos, capazes de enriquecer desonestamente, explorando um irmão menor.
“Desonestamente, por quê?”, perguntaram eles. “Dadinho nunca deu uma fora, acertou todas, né irmãozinho?”, completaram, para espanto de meu pai e desespero de minha pobre mãe.  E eu ali, sem saber se falava ou não a verdade, que, aliás, nem saberia dizer qual era.

Dias depois, meu pai, que já não estava muito bem de vida com as novidades na política, resolveu pôr a casa à venda, arrumar as malas e mudar de cidade. Juro que no dia da mudança ficou me olhando de um jeito estranho, enigmático, os olhos perdidos no quadro de São Francisco de Assis, cercado de pequenos animais. Cheguei a pensar que ele queria saber se o futuro nos sorriria, mas não deu o braço a torcer. Partimos. Enquanto minha cidadezinha natal ia ficando para trás e os primeiros prédios da metrópole, ainda iluminados, começavam a surgir diante de nossos olhos, meu pai se encheu novamente de esperanças, sorriu e disse um enigmático “...melhor assim, estava mesmo na hora de seguir em frente".

Eu era o único a entender que a vida sempre nos reserva coisas boas e ruins, é tudo uma questão de momento, de ponto de vista, ou de um ponto de vista sobre o dito momento. A bem da verdade, penso isso agora, quando o futuro daqueles dias já vai longe no passado...

As coisas começaram a dar errado, quando meu pai descobriu que não tinha fundos o cheque que recebera pela venda da casa. Aquilo foi como uma tempestade em muitos copos d'água que o pai tomou para ver se curava a dor no estômago e a sede de vingança no espírito. Ficamos sabendo da trapaça através do gerente da agência bancária, que entregou a ele o cheque devolvido. O gerente ficou sabendo de todos detalhes da história por intermédio de um advogado, que tinha seus honorários a receber. Minha mãe ficou sabendo porque pegou uma carta desse tal advogado no bolso do paletó de meu pai. A empregada ficou sabendo porque viu minha mãe chorar, se debulhar em lágrimas. Meus irmãos ficaram sabendo porque aqueles lá sabiam de tudo. Finalmente, eu fiquei sabendo porque adivinhava as coisas, lembram?

Pior é que o sujeito que comprara a casa, o vigarista do cheque sem fundos, era tão somente o juiz de direito da comarca. Torto na vida, direito no ofício. Considerando-se a velocidade de cruzeiro da tartaruga jurídica, ia levar pelo menos uns dez anos até meu pai pegar a grana ou conseguir a casa de volta. “Mau negócio, pensei eu, mau negócio...”

Como diria o zeloso cirurgião, cabe aqui um corte, para evitar que alguns tecidos podres contaminem o corpo inteiro.


Portanto, é hora de esclarecer que:


1 –  Nunca pedi um só tostão em troca de profecias. Se outros o fizeram em meu nome, ainda que parentes próximos, não contaram com a minha aprovação.


2 – Jamais descobri de onde provinham meus dotes adivinhatórios. Assim, se algum religioso levantou teses ou promulgou injúrias, fiquem certos que terá sido à minha revelia.


3  – Há uma enorme diferença, talvez um abismo, entre “querer” e “não consequir evitar”. Não sei quantos de vocês são capazes de entender a que estou me referindo, mas posso garantir que a maior parte da minha atribulada existência rodou na faixa do “não conseguir evitar”. O “querer” pouco se impôs, acreditem.


Enquanto não havia dinheiro para comprar uma nova casa, mudamos para um pequeno apartamento alugado, próximo ao centro da cidade. Meu pai proibiu terminantemente o uso ou a divulgação de meus ditos poderes. Meus irmãos, minha mãe e a empregada foram orientados a esquecer para sempre aquele assunto, que, segundo meu pai, não passava de uma alucinação infantil. Acontece que a carroça, às vezes, corre mais  que o próprio cavalo. Antes que nossa primeira semana chegasse ao fim, recebemos a inesperada visita da diretoria de uma tal Associação dos Sortistas. Em nome de cartomantes, quiromantes, mães-de-santo, pais-de-santo, jogadores de búzios,  e até de  mágicos de circo, vieram eles trazer a meu pai um pedido para que proibisse as adivinhações, caso contrário seriam obrigados a entrar na Justiça com uma denúncia pela exploração de menores, curandeirismo, exercício ilegal da medicina (?!), crime contra a economia popular e dezenas de outras boboseiras.

Meu pai, que já estava resolvido a não permitir a exploração de meus dotes, “queimou-se” com aquilo e mudou repentinamente de idéia. Expulsou os vendilhões do templo, que vinha a ser nosso pequeno apartamento recém-alugado, e abriu as portas para os interessados em descobrir o próprio futuro, mediante, é claro, uma pequena contribuição para custear o que chamou de minha futura formação espiritual. Tivessem ficado quietos, nada daquilo teria acontecido. Agora, era espernear e aguentar calados o que chamaram até o fim de concorrência desleal.
Para evitar comentários maliciosos da vizinhança, passamos a atender com hora marcada, sempre na parte da tarde, isto é, depois que Matilde e Ernesto voltavam da escola. No início, as advinhações  foram melancólicas, prosaicas. Coisas do tipo: “Cuidado com as telhas do quartinho dos fundos. A empregada que dorme lá pode se machucar”. Mesmo assim, as pessoas que ouviam arregalavam os olhos e diziam: “Como é que esse moleque sabe que lá em casa tem um quartinho nos fundos? Como é que ele sabe que temos uma empregada? Como é que ele sabe que a empregada dorme no quartinho?” O problema é que, para testar meus poderes infalíveis, muitas vezes deixavam de trocar as telhas, que mais dia menos dia acabavam dando na telha da empregadinha. Contra a falta de fé, não há Cassandra que resista...

O tempo foi passando e minha família se acostumou com meus dotes, concluindo que não eram assim tão diabólicos. Na verdade, até caíram como uma luva para o tempo das vacas magras que mugiam à nossa porta. Meu pai, sempre prevenido, redigiu um contrato que os clientes deviam assinar antes de cada consulta. Entre muitas cláusulas anódinas, lá estava uma que impedia o consultante de reclamar por qualquer meio, formal ou informal, das assim chamadas previsões e seus efeitos na vida prática. Foi de enorme utilidade. Primeiro, porque o futuro quase nunca sorri com os dentes à mostra; além disso, com o passar do tempo, concluí: mais do que saber do futuro, o que as pessoas de fato desejavam era mudar o passado, e isso todos sabemos o quanto é difícil e penoso, senão impraticável. O futuro pode vir ou não vir; o passado pode ir ou não ir. Imaginem se tivessem a oportunidade de reclamar indenizações por danos morais e materiais, motivados por esse vai-e-vem existencial... Não haveria dinheiro no mundo capaz de cobrir tantos percalços.

Meu irmão Ernesto cuidava da administração da microempresa que papai fundou, para dar ares de legalidade às profecias. Foi Ernesto quem divulgou as primeiras estatísticas, indicando que as mulheres respondiam por noventa e cinco por cento do volume total de consultas. Os homens ficavam com apenas um por cento, restando aos gays os restantes quatro por cento. Nunca descobri que importância isso poderia ter, mas todos balançavam a cabeça e franziam a testa quando liam o relatório. Matilde estava encarregada da marcação de consultas e recepção aos clientes.  Meu pai controlava entradas e saídas, saldo bancário, essas coisas... Minha mãe preparava o cafezinho e uns quitutes para a freguesia, como gostava de dizer. A empregada de vez em quando vinha nos visitar, sempre desconfiada e ressentida, ainda mais depois que as vacas magras comeram o seu emprego.
Os políticos, sempre eles, começaram a chegar através de suas mulheres e filhas. Em pouco tempo tornaram-se os principais clientes, não só em quantidade como também em valores pagos. Era uma gente mão-aberta, gastavam como se o dinheiro não lhes pertencesse. Foi com os políticos que instituímos a consulta “sim ou não”. Os clientes tinham direito a três perguntas e todas elas seriam respondidas tão somente com um “sim” ou um “não”. Como os políticos sempre temiam as possíveis gravações de áudio ou de vídeo, nunca compareciam eles mesmos às consultas. Sempre mandavam suas mulheres, filhas ou funcionárias com as perguntas impressas e esperavam receber as respostas escritas em outro papel. Na maioria das vezes, indagavam sobre os destinos de um determinado assunto ou queriam saber quais eram as chances de vencer seus opositores. Como as respostas eram dadas através de simples afirmativas ou negativas, as perguntas vinham formuladas de maneira direta, mais ou menos dessa forma: “A morte de fulano de tal acontecerá ainda nesta legislatura?” Ou então: “Se agir conforme desejo, meus planos serão descobertos?”
Com medo do que poderia acontecer à nossa família, meu pai resolveu divulgar que havia um oráculo permanentemente consultado. Eu, ou qualquer outro membro da família, tinha o poder de ouvir do oráculo as respostas que os clientes pretendiam. O problema é que o dito oráculo era tomado de ira por certas atitudes ou comportamentos. Neste caso, não se admirassem se, ao invés das respostas pretendidas, recebessem em troca o silêncio ou meia dúzia de impropérios. Mais tarde fiquei sabendo que meu pai pretendia desativar aos poucos a central de adivinhações. Tinha medo que a polícia batesse à nossa porta, motivada por alguma denúncia dos invejosos, que, diga-se a bem da verdade, não eram poucos.  
A maioria dos clientes acreditou no oráculo sem fazer maiores indagações ou opor obstáculos à possibilidade de erro nas profecias. A primeira bomba real que desabou sobre as nossas cabeças foi armada por um membro da Associação dos Sortistas e Magos. Na manhã de uma segunda-feira, fria e chuvosa, a polícia bateu lá em casa com uma acusação de curandeirismo e engodo, que podia resultar em estelionato. Fizeram umas perguntas, mexeram nos armários, tiraram fotos de todo mundo e também de todos os cômodos da casa. No final, o chefe da diligência disse para o meu pai: “Não podemos provar nada, mas ficamos assim: se não reincidirem no erro, tudo será esquecido e nada lhes acontecerá. Mas, se em algum momento voltarem à atividade ilícita, irão pagar por tudo, inclusive pelo que foi aqui esquecido.” Achei infantil esse tipo de justiça. Todos sabem que você cometeu um erro, mas, como não podem provar, exigem que você prometa que não o cometerá novamente. Se obedecer, tudo bem, mas se reincidir e for pego, pagará por tudo em dobro, inclusive pelo erro que não foi provado, embora tenham a certeza que você o cometeu. O desafio era tentador. Só há duas maneiras de reagir à tirania: ou você se submete e se cala; ou você desobedece e contesta. Escolhemos a segunda, é claro. Nenhum de nós conseguiria olhar nos olhos do outro, caso nos submetêssemos à chantagem do policial. Além disso, àquela altura dos acontecimentos, não sabíamos ganhar a vida sem o futuro dos outros.
 A saída foi mudar o “oráculo” para um outro local, não mais na casa em que morávamos. Uma chácara nas cercanias da cidade foi escolhida. Os clientes poderiam enviar para aquele novo endereço suas perguntas impressas ou, se preferissem, havia na chácara profissionais para gravar em vídeo e áudio suas perguntas. As respostas seriam enviadas pelo correio, depois de compensados os depósitos em uma conta-corrente. Eu e minha família nunca fomos à tal chácara. A triangulação era muito bem feita, jamais colocaram as mãos em qualquer um de nós. Como podem ver, já naquele tempo futuro e modernização caminhavam juntos,  “coisa de estrategista”, meu pai sentenciou, e concluiu: “Se é pra continuar com a brincadeira, vamos mostrar a eles que aqui o mais bobo leva o bode e deixa o cheiro...” Todos rimos, menos a mãe, que não gostou da menção ao bode, um bicho simbólico demais para a sua religião.
O sossego, contudo, não demorou muito lá em casa. Quando ficamos livres das ameaças externas, eis que minha irmã Matilde resolve apresentar seu primeiro namorado à família e, como podem imaginar, começaram as ameaças internas. Não que algum de nós tenha rejeitado o rapaz ou tenha oposto obstáculos ao namoro, muito ao contrário. As dificuldades começaram talvez em função das divergências. Érico, esse era o seu nome, devia medir uns dois metros e dez, pesando uns cento e trinta quilos. Minha irmã Matilde, coitada, batia (no sentido de alcançar) na cintura dele. Até aí, nada demais... Não seriam diferenças físicas as mais importantes a levar em conta. O problema é que meu pai, com toda a responsabilidade que julgava ter sobre os destinos de seus filhos, veio para o meu lado com uma conversa mole, de cerca-lourenço, como se dizia naquele tempo, insinuando que se eu, por acaso, tivesse alguma visão do que iria acontecer com os dois, teria o dever de contar a ele para que as providências fossem tomadas. Convencido de que estava agindo da melhor forma, disse eu a meu pai: “As intenções do Érico são ótimas, tanto é que vai levar Matilde com ele para uma vida de aventuras, bem longe daqui.” Imaginem a reação de meu pai, ou melhor, imaginem a reação de cada um dos envolvidos na, digamos, profecia intrigante...
Minha mãe foi a primeira a levantar a questão ética. Disse ela: “Que direito tem o Dado de se intrometer assim na vida de sua irmã?” Ao que meu pai respondeu com outra pergunta ética: “Ah, é... ? E que direito tem ele de se intrometer na vida das irmãs, irmãos, mulheres e maridos dos outros?” Aí, Matilde ficou sabendo da profecia e disse baixinho no meu ouvido: “Érico tá uma arara contigo, Dadinho... Disse que é bem capaz de te dar uns cascudos.” Ao mesmo tempo em que não tive medo das ameaças, porque sabia que aquilo não iria acontecer, me vi enredado pela primeira vez na tal armadilha que lhes contei no início da narrativa. O fato é que o namorado de Matilde resolveu enfrentar o destino e, talvez contrariando seus instintos e desejos profundos, não fugiu, não viajou, nem se aventurou. Apenas se vingou de mim, dizendo para quem quisesse ouvir: “Estão vendo como o baixinho é? Não pensa duas vezes antes de solapar a honra de um homem correto. Sua profecia era mentirosa!”
O que eu fiz? Bom, primeiro, Érico nem homem era ainda. Na verdade, não passava de um jovem “armário”, sem muita bagagem nas gavetas. Depois, eu não havia determinado o momento exato em que Matilde acompanharia o namorado na tal aventura. Poderia ser hoje, amanhã, daqui a dez anos. O problema é que a questão central que envolvia a lógica das profecias tinha sido pela primeira vez levantada: “Pode alguém mudar o destino depois de ter conhecimento do que iria acontecer?” Estou até hoje esperando a resposta.
Não demorou muito e outro imprevisto familiar mudou o rumo de nossas vidas. Meu irmão Ernesto, vejam só, começou a escrever, além de elaborar estatísticas inúteis. Publicava no jornalzinho da escola, uns contos aqui; umas poesias ali... Tinha ambições aquele lá. Queria se tornar um grande escritor, rico como Paulo Coelho, respeitado como Saramago, inesquecível como um Gogol. Em vez de me oferecer seus contos para uma simples leitura, o que fez Ernesto? Adivinharam? Claro... Me obrigou a revelar o que as letras fariam de sua enigmática vidinha.
Fui sincero: "Alcançarás um relativo reconhecimento, irmão, mas terás problemas com os críticos, em especial com aqueles que passam 24 horas de cada dia tramando esculhambações homéricas, frases bombásticas, verdadeiros torpedos contra quem ousa fazer o que eles mesmos nunca fizeram. Mas não ligue, não dê importância a esse tipo de gente, sempre pronta a se vingar da própria secura, desancando a fertilidade alheia."
Não sei se Ernesto entendeu tudo o que eu disse, mas pegou a essência e ficou um tempo sem nada escrever, triste com a notícia de que a literatura nunca lhe daria a fama e a fortuna que pretendia conquistar.
Até aí, tudo bem... Ou tudo mal. O problema surgiu quando minha mãe, ao ver Ernesto naquele estado sorumbático, investigou e descobriu que eram as minhas profecias responsáveis por mais essa "desgraça familiar". Como nunca teve papas na língua, sapecou: "Mas será que toda hora é isso? Porra, Eduardo, quem te autorizou a mexer com as leis de Deus?"
Foi a primeira e a única vez que eu a vi explodindo daquela forma, devia estar tão zangada que acabou berrando aquele palavrão, tão inocente, mas que para ela significava um pecado mortal.
E a culpa era só minha?
Por tudo isso concluí que estava mais do que na hora de dar um basta nos vaticínios e fechar para sempre as portas do oráculo. Se não lograva barrar o conhecimento prévio do que iria acontecer, pelo menos poderia eu não contar a ninguém o que sabia, intuía, adivinhava, sei lá mais o quê.
O tempo passou e parece que nossa família se tranquilizara sem pensar no dia de amanhã. Meu pai fechou a empresa e usou o capital acumulado para abrir uma padaria, que ao mesmo tempo era uma mercearia, depois também um botequim, casa de artigos importados e outras atividades que já nem me lembro. Os negócios prosperaram, meus irmãos cresceram e eu também, é claro.
Um dia, quando resolvi mudar de cidade, todos aguçaram suas antenas para descobrir se acaso havia eu recebido novos sinais do além e coisa e tal. Fiel a meu juramento, não disse que sim, nem que não. Mal sabiam eles que o verdadeiro motivo da mudança adorava vestidos vermelhos, para combinar com a cor sempre morena de sua pele, lisinha como um veludo. Atendia pelo nome de ... melhor nem falar, pois a perdição era, e ainda é pelo que me consta, casada com um sujeitinho truculento, grosseiro, desses que só resolvem as desavenças no braço ou no tiro, e ainda por cima escrivão de polícia.
Lá fui eu atrás da ... perdição. Não vou entrar em detalhes, mas resumidamente, na velha tática do sim ou não, devo confessar que sim. É o bastante? Se não é, fiquem por aí imaginando todas as vezes que... deixa pra lá.
Agora não sou mais um jovem intempestivo. Cresci no corpo e na mente. Aprendi a domar os generosos impulsos que me levavam a dizer a verdade, toda a verdade, somente a verdade, custasse o que custasse. Feliz (ou infelizmente) Não perdi nem vi atenuados meus poderes de adivinho. Eu e a perdição nos perdemos por anos a fio. Aí entra aquele drama com cara de novela da TV, campeã do Ibope: se ela pedisse o divórcio, provavelmente seria morta ali mesmo na sala de jantar, na frente dos filhos pequenos. Se fugisse comigo... Não, o futuro mais uma vez me avisava que não seria uma boa alternativa. Se parássemos de nos encontrar... Taí uma opção que nunca nos passou pela cabeça, por que será? Interessante isso...

Ao terminar este breve relato, confesso que minha narrativa contém algumas contradições:


1 - A partir de um certo momento, quando os recursos escassearam até chegar ao fundo do poço, usei sim meus ditos poderes para sair daquela situação humilhante.


2 - Ao contrário do que prometera a mim mesmo depois daquele distante episódio em que minha mãe perdera a cabeça, voltei a vaticinar, a profetizar em pequena escala, apenas para clientes escolhidos, a maioria deles recomendada vocês sabem por quem.


3 - Confesso, se for este o verbo adequado, que sempre acertei muito mais do que errei, muito embora tenha ouvido frases do tipo: "Você tem mesmo a capacidade de prever o futuro? Então, adivinha o que vai te acontecer nos próximos minutos, seu filho da puta...” Mas isso faz parte do jogo da verdade, que ninguém quer aceitar se não lhe convém.


Para evitar que qualquer um de vocês venha a me importunar com pedidos extemporâneos sobre o que vai ou não acontecer em suas vidinhas, deixo claro que me retirei da labuta premonitória. Hoje em dia, dedico-me exclusivamente a prever, de quando em quando, o resultado de uma licitaçãozinha aqui, uma concorrência ali, faço os cálculos da empreitada e é sempre comigo a palavra final: vamos ou não vamos aceitar o desafio de construir as obras gigantescas que este País precisa? Acima de tudo, vamos ou não vamos encher os cofres da empreiteira com aquela montanha de dinheiro que sobra depois de pagas as gordas comissões, de todos os tamanhos, em todos os escalões?

É a vida?
Sim, é a vida... Mas também é uma merda!

(Você veio até aqui, agora vai aqui, quando quiser, lógico: http://liquidacaodeneuronios.blogspot.com e http://filialdoeu.blogspot.com

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