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Ok?

domingo, 14 de novembro de 2010

Um Tema Em Fuga

Bandido
fn



Quer um conselho?
Foge
à bala abre caminho
despedaça partículas
engole fótons
integra-te ao ar
sufocado de pavor.
Só não te esqueças
aonde quer que vás
o meu dna
está impresso nos teus sonhos.

Não lembro de nada, juro, só me recordo de uma voz, pálida voz, ter dito, está na moda inventar personagens com amnésia, como se todo mundo conhecesse alguém que já teve amnésia na vida, você conhece?, perguntou, nem eu, respondeu. Amnésia, a verdadeira, não é fácil de ter. Parecia um eco na minha cabeça, aquela voz.

1 - O Fornecedor de Álibis

Quando pegaram o suspeito para interrogatório e futuras averiguações, todos nós ouvimos sair de seus lábios trêmulos estas toscas palavras: "Com que interesse eu mataria alguém que amo e depois deixaria a arma de minha propriedade no local do crime? Tudo isso sem possuir um único álibi, a não ser o de estar vagando naquele momento pelas ruas desertas de uma outra cidade, alheio à fina garoa da madrugada, me protegendo apenas com a gola do paletó erguida, talvez para que ninguém mais viesse a me reconhecer e a testemunhar a meu favor? Podem me dizer se acham que eu seria capaz de tamanha estupidez para me autoincriminar?"
Um dos homens respondeu que não era seu trabalho averiguar a índole das pessoas, muito menos escavar suas neuroses, deixava isso a cargo das... Não chegou a terminar a frase, porque alguém entrou na pequena sala de paredes espelhadas e resmungou algo no ouvido do chefe, que esmurrou a mesa, soltou uns dois ou três palavrões cabeludos, acompanhados pela tradicional e inofensiva expressão: "Só faltava essa..."

Quase todo mundo vê o futuro como uma continuidade do passado, olham para trás e acreditam que assim também será o futuro. Não se dão conta que o espelho que procuravam é falso, ilusório, quando não, traiçoeiro, demoníaco. O espelho do passado raramente joga luz no presente. O futuro? Não se meta com quem você não conhece, pode ser um bom conselho.

O suspeito quase perguntou se aquele "essa" que o chefe proferiu poderia ser a sua advogada que acabara de chegar com um habeas-corpus, conteve-se a tempo, tendo em vista a real possibilidade de ocupar o lugar da mesa nas mãos do chefe. O encarregado do inquérito retomou: "Acha que alguém vai acreditar nessa baboseira? Desde quando levam em conta o que um sujeito faz ou deixa de fazer contra si mesmo?" Ficamos naquilo de montar a peça acusatória, baseada em evidências, que eram muitas e apontavam para uma só pessoa.

Hoje, depois de todas as surpresas que tivemos que engolir, fico pensando naquele momento do inquérito, quando alguns de nós olhavam para o nosso único suspeito e chegaram a sentir uma certa simpatia pelo seu desolamento. Mais tarde, muitos confessaram que jamais lhes passou pela cabeça que era tudo parte de uma encenação. Eis porque, como lhes disse, os olhos do passado só servem para olhar o próprio passado.

Não é que a arma encontrada no local do crime não pertencesse ao suspeito. A perícia, no entanto, comprovou que a bala que matou sua amante não havia saído daquele revólver. De qual, então? O suspeito teve seu primeiro motivo para sorrir levemente.
O segundo motivo veio com fitas de vídeo apresentadas pela tal advogada, que sabia como ninguém irritar o chefe. As imagens gravadas por diversas câmeras de ruas e prédios comerciais identificaram alguém muito parecido com o suspeito, caminhando com a gola do paletó levantada, na mesma madrugada em que a mulher fora morta. As ruas, como todos devem imaginar, pertenciam à região central daquela cidadezinha que o acusado blá-blá-blá-blá...
Mais tarde, surgiu um misterioso frentista de posto de gasolina que jurou ter visto o ex-suspeito atravessando a pracinha da prefeitura, a defesa ainda teve a desfaçatez de juntar ao processo um bilhete de ônibus interestadual, em nome do acusado, em data e hora que se encaixavam como uma luva para comprovar sua inocência. Eu disse que podia ir atrás do motorista do ônibus e tomar seu depoimento para confirmar o embarque do quase-bode-expiatório, mas todos riram do meu "exagero", de modo que só me restou a alternativa de embolsar a grana que o assassino me pagara para destruir uma a uma as evidências de um crime torpe, porém altamente lucrativo, mesmo depois de subornar o detetive da seguradora.
Enquanto me dedico a essa nova e promissora tarefa de "fornecedor de álibis", volto a pensar que as pessoas ingênuas talvez tenham uma certa razão, quando dizem: "O futuro, a Deus pertence..."

2 - Novíssimas Profissões

O homem parou sob a estátua do herói a cavalo, acendeu o cigarro. A outra mão, enfiou-a no bolso do casaco de lã. Apertou o frasco gelado. Passou pela sua cabeça uma irresistível vontade de olhar o vidrinho, talvez para conferir se ainda era o mesmo, com sangue até a metade. Conteve-se. Soltou uma baforada e atirou o cigarro quase inteiro na rua deserta. Parou de apertar o frasco, tirou a mão do bolso do casaco, vestiu as luvas cor da pele e atravessou a rua em direção à casa onde deveria fazer o "serviço".
Com o passar do tempo, desenvolveu o que chamava de "habilidades", a principal de todas: olhar para três, quatro posições ao mesmo tempo e conciliar situações, muitas vezes conflitantes. Um exemplo estava bem ali à sua frente: teria que entrar sem ser visto, driblar olhos humanos e eletrônicos, fazer o que devia ser feito, sem perguntar nada a ninguém, muito menos à sua própria consciência abandonada. E o que devia ser feito, além de espargir o sangue de um inocente (que em breve se tornaria culpado) na casa de uma vítima, cujo corpo lá deveria estar em repouso no chão da sala? Apertou de novo o vidrinho, olhou em volta e pensou que ninguém deveria ter pena do tal "inocente" que iria pagar o pato , pois era ele mesmo culpado de uns tantos outros crimes dos quais se safara até então, alguns bem piores do que esse de "matar" um vigarista igual a ele.
O verdadeiro culpado? Aquele que ia se livrar incólume tendo em vista as novas evidências? Sobre esse, tudo o que podia dizer é que sabia honrar seus compromissos e que não era a primeira vez que financiava esta novíssima profissão de fornecedor de DNA, que ele agora exercia com todo cuidado e respeito às normas.
Entrou na casa como um gato sorrateiro. Abriu o frasco, espalhou com parcimônia o sangue imundo. De lá mesmo ligou para a polícia usando o celular do morto. Serviço completo, todas as pistas foram deixadas conforme o roteiro, passo-a-passo na sua cabeça, que agora pensava que estava na hora de sair de cena e deixar que outros concluíssem o resto da trama. Cuspiu o chiclete e foi para casa sem tirar as luvas: a noite era negra e fria.

3 - Pêndulo

Naquele cartaz não tem um cara sentado? Isso, o cara olhando o cartaz, esse mesmo... Está sentado no banco da praça, desta praça onde estamos agora, de costas para nós, olhando o cartaz aqui em frente, no outro lado da rua, tá vendo? Só para ter certeza de que falamos da mesma pessoa, refiro-me ao sujeito de calça bege, paletó azul marinho, com um boné igualzinho ao que você usava antes do acontecido. Ele mesmo, é você... Só não sei quando, se ontem ou se amanhã, creio que ninguém pode afirmar. Pensam as pessoas que se é você no cartaz tem que ser uma foto, e uma foto só pode ter sido tirada antes dessa nossa conversa. Entendo que pensem assim, mas e se esse "você" que olha o cartaz e ouve minhas perguntas, for um "você" anterior à foto do cartaz? Como é possível? Muitas coisas nessa vida parecem impossíveis, Virgílio, eu mesmo não acreditava que você, esse você que está aqui do meu lado agora, fosse capaz de se levantar calmamente do banco de praça naquela foto e, como quem vai ali no bar comprar um cigarrinho a granel, fazer o que fez, só a título de vingança. Não foi vingança? Foi o quê, então? Diletantismo talvez; espírito de aventura? Queria eu saber, Virgílio, o que você sentiu de fato quando Manu se insinuou para o seu lado, e você pensando que devia ser pena ou um arrebatamento que algumas mulheres lindas como ela não conseguem controlar. Foi isso que pensou no primeiro momento, Virgílio? Manu com pena ou apaixonada?! Tá bom... Entendo que qualquer um, na situação em que você se encontrava, poderia pensar qualquer coisa, qualquer besteira mesmo, como essa de se iludir com a pequena e deslumbrante Manu. Armaram odiosamente contra você, isso todos nós sabemos. Só não o defendemos porque um pequeno detalhe, que só você não sabia, barrava qualquer ação em sua defesa. Agora que você já sabe que tudo não passou de um plano para testar duas coisas - sua capacidade de reagir nos piores momentos e sua efetiva lealdade -, o que nos diz, Virgílio? Arrepende-se da intriga que tentou construir contra mim e outros amigos, valendo-se de Manu e de suas ilusórias falsidades? Ou será que nem arrependimento você é capaz de sentir? No final das contas, fomos todos prejudicados, porque os diretores não gostam que seus planos se modifiquem no meio do caminho, você entende? Culpam a mim, por não ter alertado você no momento exato, mas como iria eu adivinhar que momento era esse? Culpam você porque não confiou cegamente na missão que lhe destinaram, mas, reconheço, como iria você adivinhar que a tal “missão” não passava de um teste? Culpam Manu por ter se envolvido, dizem eles, além da conta, mas, como disse a própria Manu, como iria ela adivinhar qual era o ponto certo para desiludi-lo de seus propósitos, Virgílio? Sobrou até para o marido de Manu, se você quer saber, consideraram “exagerado”, “despropositado”, o ciúme que sentiu, sentimento bem mais forte, segundo analistas, do que a tal lealdade que de todos nós é exigida. Parece que há mesmo um divisor de águas entre sentimentos pessoais, como o ciúme, a covardia ou a ganância, inerentes a todos, e os sentimentos ditos sociais, que muitos não possuem, como a honestidade, a fé, a lealdade. Finalmente, meu caro, gostaria de saber se você já imaginou o que poderia ter acontecido se o seu plano de vingança alcançasse os objetivos que você mesmo traçou? Se a tal pessoa que lhe ouviu não fizesse parte também da encenação? No mínimo, Virgílio, você seria encaminhado a um manicômio, enquanto investigavam os detalhes do “crime”, tão torpe quanto falso. Sim, meu amigo, você sairia daquela foto no cartaz para um manicômio, que é o lugar adequado para quem insiste em atrapalhar o bom andamento da vida, inventando estórias sem pé nem cabeça. E se eu te disser que até hoje, até agora, neste exato instante, você está sendo analisado e podem não estar gostando do jeito que você aceita as coisas, com toda essa passividade? Até com um certo desencanto? Infelizmente para todos nós, a vida não é só aquilo que passa diante dos nossos olhos, Virgílio, pense nisso. 
Só uma coisa muito me intriga: que ponto é esse do qual não podemos voltar? Que esquina é essa que não dá pra dobrar?

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