Vou começar do início. Tava na janela, chovia sem parar, tinha pouca gente na rua. Sabe como é, ninguém tem saco pra descer num dia de chuva. Ficamos por aqui, eu e meu cachorro, na janela, olhando as garotas que passam. De vez em quando, uma escorrega... É engraçado. Pelo menos é engraçado, quando não acontece alguma coisa melhor.
Estava olhando e pensando: “Puta que pariu, hoje vai ser foda. A rua vazia, nenhuma garota pra escorregar no tobogã”. Tobogã é a entrada da garagem. Quase todo mundo leva um escorregão quando chove, principalmente as meninas. E eu ali, esperando... Até que, de repente, não pude acreditar no que meus olhos enxergavam: uma menina apareceu no ponto do ônibus, junto com três caras estranhos. A mina usava uma sainha, coisa mais linda, uns dois palmos acima do joelho. Ficaram ali confabulando e, logo depois, a garota atravessou a rua e ficou andando de um lado pro outro, parecia uma puta, acho que era. Os caras deviam ser seus cafetões.
Saí da janela por um instante, fui pegar meu binóculo no quarto. Achava que até poderia ver a cor da calcinha da garota, refletida numa poça dágua. A imagem podia não ser das melhores, mas, pra quem tá a perigo, preso nesse apartamento de segurança máxima, sem poder sair pra transar e coisa e tal... Esqueci de dizer que minha mãe tinha ido ao cinema com a minha irmãzinha e tinha levado as chaves de casa, todas as chaves, de propósito. Tenho vergonha de confessar, mas eu estava era de castigo. Preso, não era o modo de dizer, era a pura realidade, caralho..!
Tem uma garota que eu conheço que diz que eu falo demais. Eu já acho o contrário: acho que eu penso demais. Penso nessas coisas todas que me acontecem... Daí já viu, né?
Quando voltei com o binóculo, os três caras tinham companhia: uma mulher também estava no ponto de ônibus. Ajustei o zoom bem na sua direção e percebi que ela falava qualquer coisa com o preto mais alto. Não deu pra ler os lábios, isso só acontece nos filmes. Mas deu pra sacar que os três caras, mais a mulher, mais a putinha no outro lado da rua, os cinco formavam uma quadrilha, isso ninguém vai me dizer que não.
A mulher não era feia, dava pro gasto. Mas não se comparava com a putinha de saia curta no outro lado da rua, quase na frente aqui do nosso prédio, essa era tudo que eu pedi a deus. Aliás, eu disse “nosso prédio” porque imediatamente liguei para um amigo no 701 e contei a ele tudo o que se passava. Achei que ele também devia ter um binóculo e que também se interessava por estórias assim como essa. Sabe o que o babaca disse? “Obrigado por me avisar, Marquinhos, mas eu não tenho binóculo e estou estudando com a minha prima. Você conhece ela, aquela moreninha que chegou de Minas e coisa e tal....” Devia estar fodendo a priminha no quarto, o sacana. Fiquei mais puto ainda. Só eu estudava a rua.
Mandei o cara à merda e voltei para a janela bem na hora que os caras tentaram roubar a bolsa da mulher, que tinha caído no chão. Ela parecia uma mulher decidida: daqui de cima deu pra ver que os bandidos a respeitavam. Tinha um líder, sem dúvida. O líder era o preto grandão. Mas, se a mulher era da quadrilha, também mandava um bocado. Agora eu fico pensando: será que aquele negócio de cair a bolsa e coisa e tal... será que aquilo não era uma senha? Digo isso porque logo depois a putinha ficou toda alvoroçada, só faltava dar uns pulinhos no outro lado da rua e, em seguida, um ônibus passou. Passou devagar, é bem verdade. Ninguém deve ter feito sinal e ele foi embora sem parar. Aí eu me perguntei, acho que até em voz alta: “O que é que esses caras estão fazendo no ponto se não é pra pegar ônibus porra nenhuma?”
O telefone tocou. Eu fui atender, é claro. Era minha mãe. Queria saber se estava tudo bem e tal e coisa... Engraçado, né? Trancafiam a gente nesse apartamento que mais parece Bangu I, e depois querem saber se está tudo bem. “Bem mal”, tive vontade de dizer. menos mal porque estava chovendo. Mas, não importa: sábado à tarde, trancam a gente aqui, depois se arrependem: “Meu filhinho tá bem? Tá com saudades da mamãe? Papai não ligou?” Ora, vá...
Sei que devia ter alguma sacanagem ali, porque os três caras ficavam muito em cima da mulher. Talvez estivessem planejando alguma farra ou, quem sabe, podiam estar querendo arrastar a mulher pra casa de um deles. Tinha mais a putinha do outro lado da rua. Seriam duas pra três. Tava mais do que bom, penso eu. Foi nessa hora que apareceu a van preta. A mulher do outro lado da rua ficou pra morrer. Só faltava tirar a roupa pra chamar a atenção dos caras. Eu, por mim, acho que nessa van devia estar o marido da garota no ponto do ônibus. Por que ele não parou e não deu carona pra ela? Isso eu não sei, mas o negócio é que não demorou muito e eles voltaram. Voltaram pra se vingar. Daqui de cima eu só ouvi o ratatatá...
Imagino que o cara da van atirou porque viu a mulher junto com aquela tropa. Deve ter pensado: “Porra, essa vadia resolveu me trair com três de uma vez? Agora aguenta!!!”
Eu estou falando assim, mas é pra tirar aquela cena da cabeça. Na hora a gente fica louco, não sabe o que aconteceu. Os caras metralharam todo mundo, com a maior frieza. Morreu até a moça que eu chamava de putinha, coitada... Acho que eles atiraram de metralhadora pra tudo quanto é lado. Depois se mandaram. Todos estavam mortos menos um, ou melhor, menos uma: a mulher que deve ter sido o estopim daquela zorra. Eu vi que ela se mexeu, levantou a cabeça. Não estava morta, talvez nem ferida. Ajeitou o vestido e partiu. Os outros pareciam mortos. Fui correndo pro banheiro vomitar. Tomara que alguém tenha anotado a placa da van dos assassinos. Fazer uma coisa dessas só por ciúmes. Vê se pode?
O Paladino
Vê só como é que são as coisas: você não consegue escrever uma porra de uma redação na escola, aí eles te pegam e te enfiam aqui, sem dó nem piedade. Quer dizer, não é bem assim... Você escreve umas coisas que eles não gostam na redação da escola, o babaca do professor mostra pra diretora – uma mulherzinha de um metro e meio, cheia de manchas por tudo quanto é parte da cara e do corpo – e ela resolve chamar os seus pais, primeiro a sua mãe, depois o seu pai também. Eles olham pra você com toda pinta de quem não concorda com o que você disse, os dois tem uma cara só, pelo menos é isso que você está vendo na sua frente, parado que nem bobo na sala da tal diretora. Aí você pensa: “Será que essa mulher tem manchas também na...?” Mas não te dão tempo de dizer nada. Seu pai parece ter vontade de enfiar a mão nos teus cornos; sua mãe parece que está com vontade de chorar por isso. Mas você não está nem aí, seu maluco.
Depois que saíram, começou o drama. Tentaram explicar umas coisas que você não entendeu, nem concordou. Então, te trouxeram pra cá à força, ou melhor, levaram você para um lugar parecido com esse, só que não tinha grades nas janelas, e você fugiu. Aí te acharam perambulando na pracinha perto do colégio abandonado, te trouxeram pra cá e te deixaram sozinho novamente, não sem antes seu pai dizer que tinha vontade de dar umas porradas em você e tal e coisa... E você até achou normal, vê se pode?
Agora, pense bem, todo esse rolo só porque você entregou uma redação na escola com uma única frase, repetida trinta vezes: “Eu acho que fiz o que tinha que fazer”. O professor achou que era sacanagem, que você tava era querendo desmoralizar a escola, provocar uma revolta, esses negócios que eles sempre falam quando qualquer um de nós faz alguma coisa diferente, fora do que eles chamam de “padrões de normalidade”. Você já viu isso escrito em algum lugar, só que não sabe onde.
A tua cabeça tá uma merda, uma confusão que dá gosto. Tem horas que você diz pra você mesmo que não importa se o seu pai é isso ou aquilo, se você assiste a um crime, a uma covardia daquelas, velho, tem mesmo que denunciar, pôr a boca no trombone e foda-se o resto. Mas tem outras horas que você, seu filho da puta, começa a dar ouvidos a uma voz que vem lá de dentro (parece que vem do peito, e vai ganhando a garganta, e a cabeça...) e essa voz diz com todas as letras que você só estava querendo se exibir, se mostrar, bancar o valente. Depois que essa voz se vai, o que aparece na porra da tua cabeça é a imagem de uma garota que senta no outro lado da sala e que olha pra você com desprezo, mas é um desprezo diferente, e você sente alguma coisa por ela, ou talvez sinta alguma coisa pelo desprezo diferente que ela sente por você. O silêncio tem dessas coisas.
Uma loucura dentro da outra, e dentro da outra, e dentro da outra... E você ali no meio, sem saber de que lado se colocar nessa história. Acho que é por isso que dizem que você é maluco, seu doido. Uma vez eu li um conto que o cara olhava uma foto na parede, só que era ele que estava ali na foto, e ele não sabia por que olhava a foto, nem por que estava na foto, nem o que ele estava olhando na foto... Em resumo, o cara tava era perdido mesmo. Uma história é boa quando a gente se põe no lugar do infeliz que tá contando.
O diabo é o seguinte: eles trouxeram você pra cá, quer dizer, pro outro lugar, ah, chega...! Pouco importa... Mas o diabo é que eles te trouxeram baseados numa mentira, uma sacanagem daquelas, coisa que não se faz nem com o pior inimigo, ainda mais com um filho que, afinal de contas, você não deixa de ser. Disseram que você correu atrás de alguém do sexo feminino, e você não se lembrava de nada, não é, seu porra? Você não correu atrás de ninguém, mas mesmo que tenha corrido, não foi por isso que você veio pra cá. Depois disseram que você mostrou o negócio duro pra ela, mas você não mostrou foi nada, você não teria tanto peito. Quer dizer, armaram uma bonita sacanagem pro teu lado. Agora, por que??? Porque você disse a verdade. Quando vieram te perguntar o que é que você viu, você disse: “Vi uns filhos da puta metralhando todo mundo no ponto do ônibus”. Aí seu pai te olhou de um jeito estranho e você completou: “Tem mais, acho que foi meu pai quem mandou. Ele é quem manda fazer esse tipo de coisa.”
Como era de se esperar, a tal coisa ficou preta: “Filho do braço direito do secretário abre o bico e conta tudo”. Foi essa a única manchete que você conseguiu ler na banquinha. Aí você ficou um pouco arrependido, porque talvez não fosse verdade, nem você tinha dito aquilo, com todas as letras. Você disse apenas que achava que tinha sido ele, “achava...”, entendeu? Mas os caras são sensacionalistas e fazem você entrar na maior fria
“De onde lhe veio essa ideia, Marquinhos?”, seu pai perguntou. E você não teve dúvidas, contou que tinha visto os muros pichados perto do colégio, ligando o nome dele, do seu pai, a coisas não muito amenas, seu pai quis saber que coisas eram essas e você novamente não teve dúvidas, sapecou nas bochechas dele: “Te chamavam de assassino e tal e coisa...” Por essas e por outras é que você veio parar aqui, depois de ter fugido do outro lugar, que não tinha grades e essa porra toda. Você se lembra direitinho que depois que você disse isso, ainda no carro, você viu os dedos do seu pai batendo em sequência na perna, como se estivessem acompanhando uma musiquinha dos velhos tempos, uma valsa? Um chorinho? Choro vem a calhar. Você bem que podia ter falado a verdade, quer dizer, que você ficou desconfiado quando ele veio com aquela conversa de querer saber em detalhes tudo o que você tinha visto antes de ir correndo pro banheiro vomitar e tal e coisa. Você podia ter perguntado por que tinha tanto interesse em saber se a tal mulher no ponto do ônibus era branca ou era preta, de que jeito estava vestida, se saiu ferida ou só apavorada com os tiros que os caras deram na sua direção. Daí te deu vontade de ter uma amnésia, de esquecer tudo o que disse e o que se passou, você bem que fez o possível e o impossível, mas não rolou, a amnésia.
Tem uma pessoa que não deve estar de acordo com o que estão fazendo contigo. Ela vem aqui te ver e fica te olhando com aquele olhar parado, sem ter coragem de perguntar nada além do tradicional: “Estão te tratando bem? Você precisa de alguma coisa, meu filho?” Você sabe que ela também tem lá suas dúvidas sobre a verdade, a verdade verdadeira, não essa que contaram pra ela, que você estava meio louco, desajustado no colégio, correndo atrás das garotas e tal e coisa... Chato é que ela é uma pessoa dessas que a gente pode chamar de normal. Tem dois filhos, uma menina ainda pequena, separada, depende do ex-marido até pra ir à feira no sábado de manhã. Sabe muito bem que ele pode ser mesmo tudo aquilo que você falou, só que as pessoas normais não fazem o que você fez, entendeu, seu porra-loca? As pessoas normais, quando estão perto de um formigueiro não sentam em cima dele.
Se você não pode fazer nada pra salvar a moça, a tal que saiu da guerra sem levar um único tiro, então o que é que adianta saber quem fez, quem mandou, se foi ele ou se não foi ele? É assim que ela pensa, você sabe disso, porque é assim que pensam as pessoas que têm a cabeça no lugar. Quantas vezes você ouviu sua avó dizer: “Boca fechada não entra mosca, meu filho”? Mas você, não... Você tem que ser diferente. Herói dos oprimidos, paladino da justiça, escravo da verdade. Me diga se não era melhor você ter feito como aquele amigo do 701? Sábado chuvoso, convidava uma priminha, sua mãe saía e tal e coisa... Quem é que tá certo? Me responde com toda a sinceridade.
O Louco e a Flor
Podem dizer o que quiserem, mas a verdade é uma só: mãe é mãe! Não tem uma que deixe o filho abandonado no hospício, por mais doido que ele seja.
A minha veio me buscar assim que soube que meu “probleminha” não era assim tão sério. Me abraçou, me beijou, tadinha... Tá certo que eu fiquei envergonhado e tudo. Os loucos e os enfermeiros, que são mais loucos ainda, rindo de mim e da minha mãe. Mas se não fosse ela, se dependesse da boa vontade ou da piedade do sacana do meu pai...
No caminho de volta foi de novo aquela lenga-lenga: “Não culpe seu pai, meu filho. Ele anda nervoso”. Quantas mães você já viu repetindo essa mesma frase? E olha que a minha sabe que comigo a coisa é diferente. Digam o que disserem, podem dizer que eu sou maluco, um vagabundozinho que não tem onde cair morto. Podem dizer tudo isso, mas uma coisa eles sabem: injustiça, covardia, sacanear os outros e ficar por isso mesmo? Comigo, não...
Foi por isso que eu continuei fuçando até descobrir o que estavam querendo aprontar pra cima da garota. A coisa era feia. Peguei uns telefonemas, umas linhas cruzadas, depois andei remexendo umas gavetas. Pelo que eu entendi ela andava se escondendo, com certeza fugindo dos caras que tinham comandado a chacina, aquela do ponto de ônibus na frente aqui de casa. Uma vez eu li que todo mundo tem uma hora que fica adulto de repente. Acho que a minha hora chegou naquele dia, nunca mais achei graça em nada.
Uma coisa eu também aprendi: se você é meio louco, ou até se finge de louco, primeiro que todo mundo fica com medo de você, te olhando de um jeito diferente, assim como se você de repente, sem mais nem menos, fosse pular no pescoço deles, ou pôr o pau pra fora e mijar no sapato de todo mundo, entende? Segundo, você fica mais à vontade, já não ficam te vigiando, querendo controlar a tua vida. Acho que eles pensam que todo louco é burro ou esquece rápido, daí são capazes de falar um monte de segredos na tua frente, só porque você está andando que nem robô, se fingindo de doido de propósito. Peguei o sacana do meu pai combinando com um filho da puta qualquer do outro lado da linha, acho que o cara se chamava Simão, Chico Simão, uma coisa assim. Falava baixinho: “Eu sei que você sabe onde ela está... Peraí, peraí, Simão... Fala devagar, porra!” Nessa hora o sacana parece que teve uma intuição e olhou pra trás. Eu estava bem ali na porta do quarto, andando que nem eu tinha visto os caras fazendo lá no manicômio: as pernas duras, os braços largados, sem balançar; meus olhos grudados na janela lá no fundo. Ele falou baixinho no telefone, alguma coisa como: “Dá licença. Guenta um pouco aí...” e foi lá trancar a grade da janela, deve ter pensado que eu ia me atirar ou qualquer coisa assim. Não disse? Todo mundo acha que só porque um cara tá louco é burro também. Melhor pra mim, que pude ouvir o resto da conversa sem problemas.
Claro que o filho da mãe do meu pai estava falando com um desses capangas de uma delegacia qualquer sobre a moça, a tal que assistiu a tudo naquele sábado que eu não gosto nem de lembrar. Ele anotou o lugar onde a mulher estava, deu um esporro no sujeito que falava com ele no telefone, pegou as chaves do carro e se mandou. Achou que ia pôr as mãos sujas na pobre da garota, né? Se ferrou bonito. Claro que ela ia morrer, com uns cinquenta e três balaços perfurando o fígado, o coração, estilhaçando a cabeça, até que ela era bem bonitinha, devia ser... Mas, de qualquer jeito, não merecia o fim de linha. O papel ele levou, com o endereço do lugar onde ela estava. Mas a folha debaixo dava pra ver o decalque das letras, era um papelzinho fino, um bloco de propaganda de remédio. Depois, sabe como é, o cara quando escreve com raiva põe mais força na mão. Era fácil ler o que ele tinha escrito: Pensão das Carmelitas, rua tal, número tal. Quarto 113. Tinha até o telefone pra facilitar o meu trabalho.
Não pensei duas vezes: liguei. Um cara atendeu, com voz de gigolô. Eu engrossei um pouco a minha, sabe como é, pra impor respeito: “Queria falar com a moça do 113”. O cara falou um “já vai...” com uma tal má vontade que eu pensei que fosse ficar esperando o resto do dia. Mas, não... Voltou rapidinho: “Olha, a moça disse que não quer falar com ninguém.” Aí eu tive que engrossar com ele, nem sei como é que eu consegui: “Então, fala pra ela que tá indo um monte de cara aí pra arrumar a maior confusão. Vai ser chumbo grosso. Quero ver se ela vem ou não vem falar comigo, porra!”
Veio. Falou um “alô” tão legalzinho, tão desprotegido... Não sei como é que teriam coragem de fazer mal a uma coisinha linda daquelas. Eu continuei no meu papel de durão: “Escuta, você não sabe quem está falando... É um amigo, mas você nem me conhece. Fuja daí. Fique sentada no banco de uma pracinha aí perto, duas ou três quadras pra cima, onde tem um colégio abandonado. Vou passar pra te pegar, você entendeu?” Nessas alturas eu não sabia se a garota tinha perdido a voz, se estava com medo de mim ou se já tinha se mandado como eu disse. A única coisa que não saía da minha cabeça é que eu precisava de dinheiro para pegar um táxi e voar na direção da pracinha do colégio, por coincidência, onde eu tinha aprontado um monte durante tantos anos, e que depois fecharam por causa dos assaltos e tal e coisa. Vasculhei as gavetas, arrumei uma grana, um relógio de ouro da minha mãe (juro que a minha intenção era devolver tudo isso depois)... Do jeito que estava, desci, saltando os degraus da escada de dois em dois, de três em três... Achei melhor esquecer o elevador para evitar surpresas desagradáveis. Tinha uns quatro táxis no ponto. Peguei o de um crioulo sorridente que já tinha me levado várias vezes pra escola, acho até que era ele que buscava umas encomendas pra minha mãe. Eu disse: “Cara, você vai ter que voar porque eu tenho que tirar o pai da forca. Quer dizer, não é bem o pai... Mas é naquela pracinha do colégio.” Primeiro o crioulo riu; depois, concordou: “Tá bom, Marquinhos... Entra aí”. Não quis nem saber se eu tinha ou não tinha dinheiro. Pisou de verdade, cantava pneu e outros bichos, grande sujeito...
Quanto mais ele corria, mais eu pensava: “Não vou encontrar essa putinha mesmo. Deve estar achando que eu é que estou a fim dela, da vida dela, pra pôr fim” Sabe como é, isso não era de todo mentira, mas falava no outro sentido, no bom sentido, né? Tava a fim, mas não pra pôr fim, pra pôr um começo, quem sabe. Uma hora, quando já estávamos chegando, deixei escapar que era um caso de vida ou morte. Pra quê? O preto, que se chamava Epaminondas, arregalou os olhos, pisou ainda mais fundo, quase fez aquela Caravan preta envenenada levantar vôo. Eu disse: “Manera, meu... senão a morte chega mais rápido.” Ele deu uma gargalhada e eu fiquei pensando naquilo que eu disse, “A Morte Chega Mais Rápido”, tinha cara de título de filme cult, desses que a gente assiste de tarde na TV a cabo, aí também ri acompanhando meu amigo. Pedi que ele desviasse da rua da pensão. Fomos pegar a pracinha lá em cima, por trás do colégio. Devia ter falado: “Pára aqui e fica me esperando que eu vou encontrar uma mina que precisa muito de mim.” Devia ter dito, mas não tive coragem, nem o nome dela eu sabia, por isso pedi que ele ficasse dando voltas devagar ao redor da praça, que é bem grandinha por sinal.
Na terceira ou quarta volta, vi que tinha uma mulher parecida com ela, sentada no banquinho, olhando os pombos. Eu só a conhecia de vista e mesmo assim a uma certa distância, por isso não tinha como garantir se era ou não era a mina. Resolvi pedir para o negão: “Encosta aqui, por favor, e fica esperando. Eu vou resolver essa parada agora”. Ele me olhou com admiração e acrescentou: “Se precisar de qualquer coisa, tamos aí... É só assobiar que eu tô na área. Você sabe assobiar, não sabe?” Disse que sim e desci, pensando: “Vê se pode? Uma hora dessas e o cara quer saber se eu sei assobiar... Claro que eu não sei assobiar, nunca aprendi esses negócios. Esquecem que sou bi-polar, tri-polar, sei mais o quê?” Já estava chegando perto da moça, quando me deu um puta medo: e se alguém estivesse olhando, de campana ali por perto? Vai que seguiram ela da pensão até a pracinha. Nesse caso eu tava era ferrado pra toda vida. Começa que os caras não brincam em serviço; pra atirar, não pensam duas vezes. Depois, quem me garante que não iam reconhecer o filho do homem? Aí, cara, tem muita gente com raiva, querendo ferrar o poderoso. Umas balinhas perdidas, sabe, né...? Podiam me acertar perfeitamente. Acho que até o sacana do meu pai, lá no fundo, ia sentir um certo alívio, com o infeliz aqui batendo as botas, minha mãe chorando no velório e o cara consolando: “Tadinho do louco... mas foi melhor assim”.
Segurei o medo, a vontade de sair correndo, entrar no táxi e dizer pro crioulo meu amigo : “Vamos embora, acho que ela não vem mesmo”. Agora, eu me pergunto: segurei por quê? Que diabo de mania é essa de me meter em encrenca, de ir até os confins do inferno pra defender os outros? Aliás, uma tal que eu mal tinha visto se jogar no chão naquele sábado. Tava pensando essas coisas quando a garota percebeu que eu tinha me sentado no banquinho ao lado dela. Levou um susto, mas eu falei primeiro: “Se você é você mesma, não tenha medo, mas vamos sair daqui nesse minuto.” Do jeito que ela se levantou, ficou me olhando fixamente e depois perguntou: “Sair daqui pra onde? Posso saber?”, não dava mais pra ficar na dúvida, tinha encontrado a tal que estava viva até agora por milagre.
Não perguntei o nome dela nem disse qual era o meu. Me lembro que olhei bem dentro dos seus olhos e falei com a voz mais grossa que podia: “Tem um táxi esperando a gente... Eu já cuidei de tudo”. Preciso confessar uma coisa, acho que ela gostou do que eu disse, porque sorriu de um jeito sincero, e eu não vi no seu rosto nenhum tipo de dúvida ou ironia, nem o ar de superioridade que algumas mulheres mais velhas demonstram quando se sentem atraídas por sujeitos da minha idade. Quem sabe não estava mesmo precisando de um cara como eu, alguém para protegê-la, que a levasse para um lugar seguro, que a amasse e coisa tal. Coitadinha, uma florzinha. Tão bom seria se na minha cabeça não zunisse umas balas de ficção.
Dentro do carro, se apresentou: “Meu nome é Patrícia, e o seu?” Acho que falei tão baixo que o crioulo berrou: “Fala alto, Marquinhos! Vamos pra onde?” Talvez nem assim ela tenha escutado ou entendido. A pessoa, quando se assusta, tranca todos os sentidos, ou não...? Eu respondi: “Pé na tábua, Epaminondas. Lá vamos nós, que os homi tão em cima...”
A Flor do Louco
Não sabia que era tão boa nesse negócio de escrever estórias para o cinema. Sei que não era bem um roteiro, como fazem em Hollywood, é claro. Ia ter que mudar uma coisinha aqui, outra ali, tinha que dar uma bela de uma revisada no português – o meu não é lá essas coisas... Mas o principal é que eu estava gostando desse novo passatempo. Algo que inventei mais pra desabafar, pra pôr pra fora a sensação de inutilidade, pra me solidarizar com alguém que estava numa situação parecida com a minha. Estou falando da personagem, é claro... Aquela que caiu na tal armadilha preparada pelo marido e acabou de bruços no chão, ferrada em todos os sentidos. Estava até me sentindo melhor, mais animada, achando que mais dia menos dia essa tortura ia acabar e eu estaria de volta à minha vida normal. Aí eu poderia reassumir meu emprego, ou procurar outro, quem sabe terminar essa estória e vender para algum estúdio, ganhar rios de dinheiro, ficar famosa e contratar os melhores detetives do mundo pra descobrir que quadrilha é essa que me persegue sem razão.
Estava assim tão absorta, retocando um ou outro pensamento, que mal dei por mim quando bateram na porta. Levei o maior susto, lógico. Encostei o rosto e perguntei baixinho: “Quem é?” O sujeito respondeu: “Telefone pra senhora...” Não precisei pensar duas vezes. O medo era tanto que imaginei que o rapaz da pensão podia estar sendo obrigado a dizer aquilo: “Telefone pra senhora..” E na verdade não era telefone coisa nenhuma. Eram eles que tinham vindo me buscar, sei lá por quê, e encostavam o cano da arma nas costelas do sujeito. Murmurei, quase mastigando as palavras: “Não quero falar com ninguém...” Saiu tão baixinho que o cara não deve ter ouvido, porque voltou a perguntar: “Não vai atender?” Eu disse que não, que não queria falar com ninguém e finalmente percebi, para minha alegria, que o rapaz se afastava e o barulho era de apenas uma pessoa no corredor da pensão. Fui juntar as folhas de papel que tinham caído no chão e estava pensando em tomar um banho frio, qualquer coisa assim, quando o sujeito voltou e disse: “É um garoto. Diz que precisa muito falar com a senhora. Parece que está correndo perigo, sei lá...” Eu pensei: “Garoto? Que garoto será esse? Não me lembro de garoto nenhum a não ser o filho da minha irmã mais velha. Mas esse tá em Paris ou em Frankfurt, sei lá... Será que é ele? O meu sobrinho que está em perigo?” Aí pensei que não custava nada ir ver o que era. Mesmo porque se fosse alguém que quisesse me fazer mal já tinha metido o pé na porta e metralhado a infeliz aqui, sem dó nem piedade. Portanto, fui...
Engraçado, era uma voz de garoto mesmo, só que dava pra perceber que ele estava querendo se passar por homem mais velho, vai saber por quê... No início ele gaguejou um pouco, ficou meio que se desculpando, dizendo que eu não o conhecia. Depois foi direto ao assunto, contou bem rápido que eu estava correndo perigo de vida, que alguém ia aparecer aqui pra me ferrar. Eu pensei: “Grandes novidades...” Mas gostei da voz, do jeito do menino. Achei que ele estava falando a verdade. Fiz o que tinha que fazer: saí dali direto para as escadas e depois para a porta da pensão, para a calçada, para a rua e finalmente para um banco da pracinha onde deveria esperá-lo. Claro que nessas horas pinta um monte de coisas na cabeça da gente. Começa que “esqueci” de pagar a despesa da pensão. Lá é assim, todo dia a gente paga uma diária mais a despesa do dia anterior. O meu consumo tinha sido um pacote de bolacha maisena mais um copinho de iogurte de morango. Passei o dia de ontem com aquilo e ainda não tinha quebrado o jejum, a não ser por uma xícara de café preto que me deram por cortesia, ou piedade, sei lá... Tá certo que não veio ninguém correndo atrás de mim e gritando: “Pega ladrão, pega ladrão...!” Até porque eu tinha saído sem a mala onde estavam as minhas roupas e sem o manuscrito, aquela estória da mulher que foi traída e violentada, etc., etc...
Aí despontava um outro problema, o maior de todos: acabei deixando para trás a única prova de que eu continuava viva e pensante. Na verdade, esqueci na pensão tudo o que tinha feito de aproveitável nos últimos meses, e isso me deixava angustiada, frustrada e, de certa forma, com mais raiva ainda, para dizer o mínimo. Lembro que do outro lado da rua, perto de um orelhão, tinha um sujeito com uma aparência estranha, parece que me olhou de relance e desviou os olhos rapidamente. Eu registrei, pensando no que o menino havia me contado, mas dei o devido desconto, porque nessas horas muita bobagem vem à cabeça da gente. Devia ser um desses caras que ficam nas esquinas e nas portas dos botecos, com um palito de dentes no canto da boca, olhando todas as bundas e peitos que passam indiferentes. Eu nem posso dizer que ele tenha me olhado, porque estava tão assustada e com tanta pressa que nem virei para trás. Deve ter olhado, eu bem que gostaria de saber...
Quando cheguei na praça sentei no único banco que não tinha ninguém. Aí comecei a pensar naquilo tudo, mais dialogando com alguém que eu aprendi a guardar dentro da minha cabeça para os momentos de perigo: “Acho que já não estou regulando muito bem. Primeiro, eu nem sei direito de quem estou fugindo; depois, vem um garoto, que eu também não sei quem é, e me diz, engrossando a voz de propósito, que eu estou correndo risco de vida, e isso e aquilo... Porra! Quem me garante que esse garoto não faz parte do bando? E eu, a maior santinha da história, obedeço e venho me sentar aqui no banco da pracinha do colégio”. Era isso mais ou menos o que eu pensava, tá certo que não é assim que a gente pensa, com as palavras na ordem certa, os pensamentos com vírgula, ponto-e-vírgula, essas coisas que não existem na cabeça de ninguém, a não ser que você tenha, como eu, alguém lá dentro pra te ouvir. A conclusão era mais ou menos essa: devia continuar ali sentada, esperando não sei quem me salvar, ou voltava para o meu quarto naquela pensão imunda, pedia um cafezinho , um sanduíche, e esquecia toda essa loucura? Devo ter pensado mais uma porção de coisas, acho que fiquei meio desconfiada até da babá que empurrava um carrinho de bebê vazio, sem nenhuma criança dentro. Como dizia minha avó, aí é que a porca torce o rabo... Quando a gente começa a desconfiar, sai de baixo. Tudo é suspeito, até a pobre da babá que tinha perdido a criança, ou sei lá o quê... Pra falar a verdade, naquela altura do campeonato acho que eu estava desconfiada até dos pombinhos que catavam migalhas no chão. Pensei em perguntar: “Algum de vocês aí é pombo-correio, não é? Pensa que me engana?”
Não é que de repente o garoto senta no banco da praça, bem do meu lado, e eu nem reparei. Levei o maior susto quando ouvi ele dizer: “Se você é quem eu estou procurando, venha comigo e coisa e tal...” Juro que na hora tudo que me passou pela cabeça foi uma frase que nem tinha muito sentido para a ocasião, mas lá vai: “Era só o que me faltava...” Concordo que foi bastante preconceituoso da minha parte, o tal pensamento, mas refletia principalmente um alívio, a quebra da tensão a que estava submetida. Só pelo fato de descobrir que o menino era um amigo de verdade, e não um mensageiro do demônio, só por isso eu me sentia capaz de pensar coisas como aquela frase, antes de mais nada injusta com quem estava querendo me ajudar, parece que estava. “Era só o que me faltava...” o quê? Uma proposta de fugir sei lá pra onde? A desilusão de concluir que esse desespero poderia nunca ter fim? Ou a simples presença de um moleque ao invés de um homem de verdade?
Logo me refiz do susto e disse baixinho, sem que ele ouvisse: “Era só o que me faltava, pensar dessa maneira...” Mas a pergunta que eu fiz, e ele ouviu, foi: “Pra onde vamos? Posso saber?” Aí o menino disse que tinha um táxi esperando e eu fiquei mais tranquila, porque, afinal, ele não era tão maluco quanto parecia. Isso de arranjar um táxi já era um bom sinal. Fui atrás dele, certa de que as coisas estavam melhorando pro meu lado. O táxi, havia mesmo um, graças a deus, era um Chevrolet antigo, preto, reluzente, bancos enormes... Aliás, preto e reluzente também era o motorista e eu pensei cá comigo: “Vê lá o que você vai pensar, hein sua cadela...Racismo, eu não admito!” O sujeito tinha cara de ser um boa praça daqueles e o garoto... Bem, o garoto me olhava com uns olhos que vocês nem acreditam. Estava se fazendo de valente, mas era um menino legal. Os dois trocaram umas frases, mas eu nem ouvi, o guri bateu nas costas do motorista risonho e disse: “Pé na tábua, Epaminondas...” Disse mais um negócio que eu não consegui entender, porque o ronco do motor do carro atropelou suas palavras...
Eu ainda não sabia qual era o nome do garoto nem para onde ele estava me levando. Só o que eu pude perceber é que atrás de nós vinha alguém. Isso eu não tinha a menor dúvida. Agora, vê se dá pra entender uma situação como a minha? Estamos eu e adolescente dentro de um táxi, dirigido por crioulo risonho e, ao que parece, alienado. Atrás da gente vem outro táxi com um sujeito que não me é estranho no banco ao lado do motorista. De repente concluí que nem o motorista nem o garoto sabiam para onde estavam me levando. Passamos duas vezes pela mesma rua, tive a sensação de que andávamos em círculo. Mas se nós não sabíamos, o cara que vinha atrás, esse nem desconfiava...
Pois é... Achei que já estava me acostumando com esse tipo de vida: atentados, perseguições, inimigos invisíveis, fugas cinematográficas. Uma zorra dessas e eu preocupada com o roteiro que tinha esquecido na pensão. Só pra mim mesmo. Depois ainda acho que os outros é que são loucos.
Roleta Paulista
Não tem graça falar de uma coisa depois que ela aconteceu. Melhor é imaginar como vai ser. Juro que não tinha a menor ideia do que fazer com a mulher. Nós três naquele táxi voador, Epaminondas rindo alto pra caralho, aliás me deu até vontade de bater no ombro dele e reclamar: “Paraí... Tá esquecendo que o louco aqui sou eu?” Mas achei que ele não ia entender, talvez continuasse a rir e a pisar acelerador até o fundo. A mina, coitada, acho que se imaginasse onde estava se metendo era capaz de chorar, gritar e pedir que a gente a levasse de volta, pra aquele quarto de pensão, já deviam ter estourado o dito-cujo a uma hora dessas.
E eu ali, do lado dela, vendo que ela toda hora olhava pra trás. Sentia o seu perfume, que não era nem um Chanel... Devia estar sem tomar banho, a coitadinha. Me passou cada coisa pela cabeça que ninguém é capaz de imaginar, ou é?
Primeiro eu ia dar uma ordem ao negão: “Mais devagar, por favor... Está colocando a vida da moça em perigo.” Pensei na frase e achei que ficava com cara de filme americano, desses bem babacas de uns quatrocentos e quinze anos atrás. Aí imaginei que poderia pedir ao meu amigo motorista que nos levasse de volta pra casa. Eu poderia hospedá-la em meu quarto. Sabe como é, ninguém entra lá, a não ser a empregada duas vezes por semana, é quarto de louco. Mas depois calculei direitinho e concluí que a minha mãe e minha irmãzinha iam descobrir tudo na hora. Sabe como é, mulher sente longe o cheiro de outra mulher. A quilômetros de distância uma sente que a outra está por perto, ameaçando o território, pior que cachorro, no bom sentido. Aí minha mãe ia fazer o maior escândalo, chamar o meu pai, pôr a boca no trombone e nós estávamos perdidos. Era entregar a galinha pra raposa. Aliás, “galinha”, não é bem o caso, não foi bem isso que eu quis dizer, mas deixa pra lá...
A segunda coisa que eu pensei foi alugar um quarto num hotelzinho sem vergonha. Tá certo que eu sou menor e coisa e tal... Mas o meu amigo Epaminondas não é. Além disso é preto, grande e gordo. Impõe respeito. Ele podia chegar na recepção e dizer: “Escuta, meu chapa (é assim que ele fala até hoje), eu quero um quarto para eles dois. São meus filhos, entendeu?... adotivos.” Se o cara dissesse: “Sinto muito, senhor... Só temos quartos com cama de casal...” Ele poderia responder... Bom, é melhor de parar de pensar bobagem, passa cada coisa na cabeça da gente...
Tava com essas minhocas cavucando meus neurônios quando a voz do crioulo me interrompeu as idéias: “Escuta aqui, ô miolo mole, já resolveu pra onde é que vai levar a mocinha? Eu não posso ficar rodando com vocês dois o dia inteiro...” Me deu vontade de responder: “Miolo mole é a mãe, seu crioulo filho da puta....” Mas, sabe como é, a gente precisava do cara, que tinha lá seus motivos pra reclamar. A merda foi que a moça ouviu o nego me chamar de “miolo mole” e também entendeu que a gente não tinha pra onde ir. Ficou uma fera: “Que brincadeira é essa? Você me disse que estava com tudo arrumado direitinho... Era mentira, não é?” E eu fiquei com aquela de bobo, pedindo desculpas e tentando enrolar de alguma forma. Fiquei com mais ódio ainda do negão quando vi que ele ria de nós, ou só de mim, sei lá...
A moça explicou que estávamos sendo seguidos por um outro táxi com um sujeito branco, cadavérico, ao lado do motorista. Eu olhei e reconheci o filho da puta: “Não é a primeira vez que esse pentelho se mete na minha vida”, disse eu. O negão acrescentou: “Faz tempo que tô de olho na fera...” E aí pisou tão fundo que a moça soltou um suspiro lá de dentro e eu fiquei achando que não íamos escapar daquela armadilha. A qualquer momento podiam nos fechar em algum beco sem saída, ou, quem sabe, o crioulo se achando o melhor dos melhores podia derrapar na curva... Foi só pensar e acontecer. Os pneus rangeram, Epaminondas se deitou de lado no banco e o carro passou junto ao poste, acho que ficou faltando uns três milímetros. A moça? Bem, ela foi jogada para cima de mim, bateu com a cabeça no meu queixo e quase sentou no meu colo. Depois se arrumou, pediu desculpas um monte de vezes, chegou a passar a mão no meu rosto e perguntou: “Tá doendo? Desculpa, foi sem querer...” Eu quis bancar o durão e respondi: “Não foi nada, acontece...” Mas tava doendo pra caralho e me deu uma vontade incontrolável de chorar. Acho que até saíram algumas lágrimas...
Lá pelas tantas não havia mais táxi algum atrás da gente. Eu bati com a mão nas costas do motorista e pedi que ele aliviasse o pé. A moça concordou: “É bom mesmo... Acho que não chegou a nossa hora ainda.” O preto deu uma risada estranha, dessas que mastigam as letras, a gente só ouve os “erres” e os “esses”. Fiquei olhando pra cara dele no retrovisor. Estava a fim de dar um esporro, até pra mostrar autoridade. Meu pai sempre me disse que alguém tem que mandar. Seja qual for a situação, alguém tem que mandar. O diabo é que esse “alguém” era sempre ele, o sacana, pra não falar outra coisa. Não tive tempo de dizer nada ao crioulo, porque ele olhou para a moça e perguntou: “O que você prefere, um quartinho de fundos na Baixada ou uma suíte num puteiro do Centro?” Juro que faltou pouco pra pular no pescoço do negão, o que, aliás, não ia adiantar nada, porque ele devia ser umas duzentas e vinte vezes mais forte do que eu, e nem pescoço tinha. Portanto, já estava com a boca aberta pra reclamar delicadamente, pedindo respeito e coisa e tal... quando a moça respondeu: “Toca pro puteiro...” Eu nem pude acreditar no que estava ouvindo.
O crioulo foi. Claro que sabia o caminho, de cor e salteado. Olhou pelo retrovisor e resolveu me encurralar: “O garotão fica ou volta pra casa?” A pergunta não foi nada. Era até natural, ele estava querendo receber o dele e precisava terminar a corrida de uma vez. Duro foi ver a cara que os dois faziam, como se estivessem me gozando amistosamente, um riso que equivalia a dizer: “Como é que você pode responder, se nunca na vida entrou num lugar desses, não é mesmo?” Eu fiquei sem jeito, é claro... quem não ficaria? Ainda mais porque a moça estava bem à vontade, como se pra ela fosse a coisa mais natural do mundo se hospedar num rendez-vous qualquer. Pensei, num relâmpago: “Será...?” Mas logo tirei essa bobagem da cabeça. Até porque não tinha nada com isso, quem é que me deu autorização pra me meter na vida dela? (Essa frase é da minha mãe, e eu de vez em quando repito. Ela fala, solta essa intimação, quando acha que estou avançando o sinal, perguntando coisas, dizendo que ela devia fazer isso ou aquilo. Mãe, sabe como é que é...).
Descemos. Achei que ficava melhor nem responder à pergunta. Descia e pronto, a resposta estava dada. Não era um puteiro qualquer, se chamava “Lua de Cristal”. Na porta tinha um cara, acompanhado por uma mulher. A mulher era horrível; o cara, um pouco pior. Era uma portinha pequenina que dava direto para as escadas. Um local escuro, mas nem um pouco assustador. Fiquei olhando a reação dos dois para tentar imitá-los. Não ia abrir a boca por nada desse mundo; mas pensar, até que podia... E nessa de pensar achei aquele lugar estranho. Se fosse gente em vez de prédio, todo mundo ia ver que estava deslocado, desenturmado, até mais do que eu. Era algo que nasceu para viver à noite. De dia, fica estranho, sonolento, adormecido, mais sujo do que é de verdade. Quem é que vai acender as lâmpadas e o neon durante o dia? Daí aquele ar de abandono, moleza, sei mais o quê... A pintura descascada só ajudava. Foi a primeira vez que eu pensei que um lugar também pode ter alma, personalidade. A maioria das pessoas não liga pra isso, mas a verdade é que ninguém não é nada sem a casa, ou a rua, ou o palco em que representa. Imagine trazer alguma atriz famosa da TV ou do cinema para um lugar assim como esse... Queria ver se ela ia ter a mesma pose da mulher que subia as escadas atrás do crioulo, me puxando pelo braço e dizendo: “Acho que você ainda não tem idade pra frequentar um lugar como esse...”
Lá em cima tinha um bar e uma sala com alguns sofás cor-de-rosa e poltronas verde-limão. O decorador devia ser mangueirense. Tinha também uma TV antiga, mas estava desligada. Mulher mesmo, não vi nenhuma... Só o tribufu amiga do negão. Foi ela que tocou uma campainha escondida no balcão do bar. Logo depois chegou um viado, todo cheio de frescuragem. Eu fiquei morto de vergonha, senti meu rosto pegar fogo. Olhei para o chão, bem na hora que o sujeitinho falava: “O que é que essa criança está fazendo aqui? Olha o Juizado, hein...” E soltou uma gargalhada sinistra. A moça, coitada, não sabia onde se enfiar. E eu que cheguei a imaginar que ela podia ter alguma experiência e coisa e tal... Epaminondas, o negro e risonho motorista, esse tava em casa... Por sorte era gente fina. Cochichou alguma coisa no ouvido do tal frutinha. Ele ficou um tempo sério e pensativo, acho que estava medindo se valia a pena se envolver naquela história. Devia ser amigo do meu amigo, ou então estava devendo alguns favores a ele, porque disse, com aquela voz fina, de mulherzinha: “Está bem... Mas é só por uma ou duas noites. Não podemos arriscar o prestígio da casa.” Todos nós entendemos que a coisa estava parcialmente resolvida, olhei para a mulher e ela para mim. Juro que senti que ela me agradecia por tudo aquilo, vê se pode?
O viado mostrou à moça a tal suíte de luxo enquanto eu descia com o negão, para acertar os ponteiros e tudo o mais. Lá embaixo ele me disse: “Você vai ficar, não é? Vê se não me arranja encrenca com seu pai. Todo mundo sabe que o homem é da pesada...” Eu disse que ele podia ficar tranquilo, ninguém saberia de nada. Tirei do bolso da calça duas notas de dez, amassei e dei pra ele. Não era tudo o que eu tinha, mas devia dar pro gasto. Ele nem contou. Enfiou o dinheiro no bolso e entrou no táxi. Antes de partir disse que voltaria amanhã e que era pra eu me cuidar. Não sei por que, mas nessa última parte me bateu um frio na espinha, uma coisa que eu nunca tinha sentido antes. Acho que era pra eu me cuidar de verdade.
Quando subi, a mulher, a tal horrorosa, perguntou se não tínha trazido nada, nem bagagem de mão e tal e coisa... Eu disse que não, que ia comprar. Ela deu um muxoxo e resmungou: “Não sei como é que pode se viver assim. Nem calcinha pra trocar ela tem... Daqui a pouco tá me pedindo emprestado.” Foi aí que eu me flagrei que ela tinha razão. Meti a mão no bolso da calça e vi que estava com uma grana razoável. Resolvi sair pra fazer umas compras, só o essencial, é claro... Antes de alcançar a escada o viado segurou meu braço: “Pagamento adiantado, benzinho...” Me deu vontade de meter o braço no cara, mas eu me controlei, porque se há uma coisa que eu não quero é ficar igual ao meu pai: violência é a praia dele, não a minha. Perguntei quanto é que era a diária e acertei ali mesmo, no alto da escada. Antes de descer, engrossei a voz: “Deixa o recibo pronto, na volta eu pego.” E lá fui eu fazer mais uma coisa que eu nunca tinha feito na vida: comprar calcinhas, escova, pasta de dentes, uma revistinha do Pato Donald... Mas estava feliz. Por dentro alguma coisa me dizia que aquele era o dia mais importante da minha vida, o dia em que aprendi que ninguém te trata como louco, se não souber que você é um deles...
Lá embaixo olhei em todas as direções, procurando o branco azedo, o esquelético que tinha partes com meu pai, o tal Simão, qualquer coisa assim. Curioso é que se você tem alguma ideia na cabeça, pode saber que ela vai te dominar. Dito e feito: achei pelo menos três caras com toda pinta de tira. Um estourava pipocas na carrocinha; o segundo varria devagar a rua imunda; o último desviou o olhar quando me encarou. Era esse, eu tinha certeza. Um sujeitinho magro, branco como papel, cheio de falsidades – a gente vê logo pela cara do puto. Mesmo assim, como não tinha outro jeito, decidi passar no mercado e resolver todos os problemas antes de subir: “Azar.... – pensei – Eu é que não vou pegar a moça pelo braço e sair correndo a pé, com esse babaca atrás da gente...”
Na volta já não havia quase ninguém na rua do puteiro. Nem o varredor, nem o pipoqueiro, muito menos o esquálido. Subi correndo as escadas e cheguei lá em cima pondo os bofes pela boca. O viado, sempre ele, ficou me olhando e sapecou: “Precisa parar de fumar, doçura...” Tive vontade de dizer a ele que não sou eu que ando com fumo na boca, mas não disse nada, ao invés de xingar a bicha corri para o quarto. Ele veio atrás de mim, todo assadinho: “Espere, pegue a chave da suíte, menino... A mocinha saiu logo depois de você.” Eu pensei: “Mais essa agora... Quem sabe não foi por isso que o esquelético desapareceu?” Perguntei ao cara se ela tinha deixado algum recado, ou se tinha avisado pra onde ia. Ele abriu os braços, me entregou a chave e lá se foi, saltitante.
Pra encurtar a estória, a moça estava era com medo, por isso foi atrás de mim. Assim que eu saí, ela me seguiu. Viu que eu tinha ido ao mercado, viu o que comprei, quanto paguei... E o babaca aqui nem se tocou, vê se pode? Isso, porque eu estava preocupado pra ver se tinha alguém me seguindo. Na volta, logo depois que eu peguei a chave e entrei no quarto, ela me apareceu toda risonha e me tirando: “Sabia que eu fui atrás de você? Não queria ficar aqui sozinha. Se eu fosse uma cobra, você estava perdido...” Me deu vontade de perguntar: “Teve medo que alguém entrasse na suíte e confundisse você com uma das meninas, não é?” Só que eu não disse nada. Balancei os ombros, fiquei sem jeito, acho que até um pouco vermelho novamente. Ela notou, ou sei lá se notou, e disse: “Vou tomar um banho nessa banheira. Faz tempo que não sei o que é água quente...” Fiquei esperando que ela me convidasse pra ir junto, mas nem me chamou pra desabotoar o sutiã... Tem horas que eu tenho é raiva dos meus pensamentos.
Foguetes e Morteiros
Nem é o caso de lembrar. Esse negócio de ficar pensando no que aconteceu é coisa de velho, mas que foi bom, lá isso foi... Tinha uns caras lá no colégio que gostavam de contar vantagens, falavam que fizeram e aconteceram, coisa e tal... Eu nunca achei legal. Se um cara teve uma experiência com uma mulher, é problema dele, é não é? Não falava isso pra eles, é claro... Também prestava a maior atenção no que eles diziam, assim meio distraído, como quem não quer nada. Até que uma hora um deles lembrava que eu estava por perto e começavam a me provocar: “Ih, olha o louco...! Tá querendo aprender como é que faz, tá? Vem cá que eu te ensino”. Coisas assim, imbecis... Provocações da pior espécie. Até que chegava um daqueles caras que iam com a minha cara e, mais ou menos, tentava me defender: “O que é que tem de mais? Ele é louco mas não é viado, porra...” Aí todo mundo concordava, esqueciam que eu estava por perto e voltavam a contar aquelas estórias, a falar das minas que todos nós conhecíamos e tal e coisa... Acho que é por isso que eu nunca acreditei de verdade no que diziam. As meninas eram nossas colegas, às vezes um pouco estranhas, é verdade. Mas daí a achar que elas faziam tudo aquilo que eles contavam vai uma grande diferença... Teve até um dia que eu apertei um dos caras, deixei ele na pior. Bem na hora que ele explicava pra todo mundo como fazia lá suas armações com uma das garotas, entrei para dizer: “Engraçado, não sabia que a fulana ia com a tua cara... Ainda agora ouvi ela dizendo que você é o maior babaca do colégio...” Pra quê? O cara só faltou torcer meu pescoço, mas como todo mundo tava rindo e tirando um sarro dele, fui eu que acabei por cima, no bom sentido, é claro...
Mas a verdade é a seguinte: toda essa conversa foi só pra dizer que aquilo que aconteceu foi a coisa mais sensacional e inesquecível de toda a minha vida. Patrícia é show, cara...! Sei lá o que é que vai acontecer daqui pra frente, não sei se eu vou encontrar uma garota, como ela disse, não sei se vou pôr uns maluquinhos no mundo – isso, ela não disse, mas deve ter pensado. O que eu sei é que nunca mais vou esquecer aquele rostinho lindo, desprotegido, com medo da própria sombra. Acho que nunca na vida uma mulher acreditou que eu poderia protegê-la, logo eu... Isso é que foi o mais bacana de tudo. Ela nem quis saber se eu era louco, nem se de repente eu ia surtá e sartá fora e deixá-la sozinha naquela tal suíte de luxo do Lua de Cristal, que de suíte tinha muito pouco e de luxo não tinha era nada. Essas dúvidas não passam pela cabeça de uma mulher que ama um cara. Aquela noite foi de foder, em todos os sentidos...
Uma Boa Ação Por Dia
Agora você me diz uma coisa: todo mundo acha que eu tinha o direito de me recusar a fazer certas coisas que vão contra os meus princípios. Por exemplo, não quero passar a vida em pé, na frente de uma espelunca, vigiando uma pobre coitada que já perdeu o rumo. Todo mundo diz o seguinte: “Porra, cara... Você não tá gostando desse trabalho? Acha que não foi pra isso que você nasceu? Então... Vai lá e fala com o homem. O máximo que ele pode fazer é te tocar pra fora do gabinete, te dizer um monte de palavrões, te xingar de filho da puta pra baixo, ameaçar te cobrir de porrada. Mas e daí? A boneca vai ficar corada?”
O negócio é que eles esquecem um pequeno detalhe: o homem não vai nem levantar a voz comigo. Vai só abrir uma gaveta que ele tem lá na porra da escrivaninha negra e sinistra, vai puxar uma pasta e balançar o conteúdo para mim, como quem segura os culhões mandando o outro se foder. E você sabe o que tem dentro dessa pasta, não sabe? Pois, então... É a merda do dossiê, aquele que põe a culpa em mim, diz que fui eu que comecei com tudo depois de ter errado um tiro. Puta merda, né? Um errinho de nada e o cara se fode pro resto da vida... Mas não tem nada, não... Ainda vou sair liso dessa história. Você vai ver, uma hora dessas vou errar um outro tiro, e acertar bem na cara daquele corno, malparido, o “homem de ouro” que ainda vai ser governador, presidente, o caralho...
Engraçado, o sujeito se mete onde não é chamado, louco pra levar uma bala perdida no meio dos olhos, depois sou eu o culpado? Quem mandou? Não sabia o risco que estava correndo? Claro que sabia.... Mesmo assim sou eu o culpado, o cara que apertou o gatilho na hora errada. Vai ver que alguém lá em cima não gosta de mim.
Deixando um pouco de lado essa história, que já encheu o saco de meio mundo, duro é a gente não ter pra onde correr. Outro dia eu estava no plantão com um amigo, segurei o braço dele e disse, olho no olho: “Sabe, cara, a maior sujeira é que a gente nunca tem pra onde correr”. Primeiro ele me olhou sério, depois caiu na gargalhada: “Ainda bem que você se lembrou desse pequeno detalhe. Quantos você já viu na tua frente que também não tinham pra onde correr? E o que foi que aconteceu com eles? Onde é que eles foram parar?” O cara não parava mais de rir. No início eu acompanhei, achei que tinha feito uma piada; depois, me deu um negócio por dentro. Não é essa história de remorso, não... isso é bobagem. Mas é que, de repente, te jogam isso na cara, sem mais nem menos, quando você é que era a vítima do sistema. É duro... Me chocou.
Agora você pode me responder o seguinte: “Tá vendo? Quem mandou não estudar? Se tivesse feito uma faculdade de direito, podia ter se formado bacharel, quem sabe não estava numa delegacia do interior, vida mansa, coisa e tal...?”
Aí eu vou te dizer o seguinte: Em primeiro lugar, você tá enganado a meu respeito: eu fiz faculdade, só que não foi por minha vontade, entrei pela janela, pra vigiar uns escrotos de uns filhinhos de papai que andavam aprontando um monte. Depois saí, é claro... Ninguém me queria lá. E eu não fico em lugar onde não sou querido, quaquaquaquá....
Me ouvindo falar assim você há de pensar que eu sou o “cão chupando manga”, como se diz na minha terra. Por falar nisso, que saudades de um caldinho de feijão na xícara... O melhor tira-gosto que já inventaram. Um calor de uns quarenta e sete graus na sombra e a gente só na Pitú de cabeça com caldinho pelando, se você nunca provou, não sabe o que está perdendo. Mas voltando ao assunto, você deve estar achando que eu sou mau pra caralho, não é? Pois sinto decepcioná-lo. Até que tem horas que eu sou um cara bem humano. Sem frescura, é verdade, mas sou humano, mesmo. Depois eu vou até te provar isso que eu tô dizendo. Mais tarde. Agora, não... Agora eu quero que você me responda uma outra coisa. Vou te contar uma história, é rápida, não esquenta. Lá onde eu moro tem um cara que é ajudante de cozinha num hotel da zona sul, um Hilton desses aí, sei lá... Mas não importa. A história é a seguinte: andou sumindo umas coisas do hotel, coisas pequenas, umas roupas de cama, umas latas de leite condensado, pratarias... parece que também andaram mexendo nas coisas de uma hóspede e levaram umas joiazinhas sem vergonha.... porcaria, não valia nada. O negócio é que esse cara que eu tô te falando descobriu quem foi a figura, o ladrãozinho, ou melhor, a ladrazinha. Sabe quem era? Nada mais, nada menos do que uma neguinha que andava de rolo com um cara do escritório, da contabilidade, da gerência, sei lá... Uma figura que falava grosso, entendeu? Bom, nada mais natural do que esse cara chegar no gerente e abrir o bico, não é? Até porque o pessoal da copa e do serviço de quarto acabou sob suspeita. E mais: todos eles foram descontados no pagamento. Quer dizer, usaram a lógica do quartel: como não apareceu quem roubou, todo mundo é ladrão. Resultado, o cara ficou pra morrer. Primeiro porque ele precisava de cada centavo da mixaria no fim do mês; depois, achou que era covardia ficar quieto, sabendo que a tal neguinha era a culpada. Chamou os amigos e contou tudo, disse que tinha visto a neguinha enfiando umas colheres de prata dentro da blusa, passou a ficar de olho e não deu outra, todo dia era ela que levava alguma coisa do hotel. Agora vem a parte mais filha da puta da história. Sabe o que os caras disseram? Os amigos dele, que também estavam sendo acusados, sabe o que disseram? “Ô, cara, deve ser verdade o que você tá falando. Mas já pensou nas consequências? Se a gente sair por aí entregando a neguinha, vem chumbo grosso pro nosso lado... Deixa pra lá. Emprego hoje em dia não tá fácil. Vamos pagar o mico, segurar esse foguete. O resto, a gente vê depois.”
O que eu quero que você me diga é uma coisa só: tá certo isso? É assim mesmo que tem que ser? Pensa bem se não é a lei do cão, na verdade, a lógica que impera no mundo do crime, é ou não é? Você não fez uma determinada coisa, mas segura porque sabe que se disser quem fez vai sobrar feio pro teu lado.
Tá achando estranho? Nunca pensou que um tirazinho desqualificado como eu pudesse se preocupar com esse tipo de sacanagem? Tá certo você... Até um tempo atrás, se viessem me perturbar com essa encheção de saco, eu era capaz de cortar a língua do filho da puta. Mas as coisas mudaram pra mim, tá entendendo? Eu hoje sou um cara que tô do lado dessa turma injustiçada, sabe como é, o demo, o coisa-ruim, o chifre-de-ouro, não me deixou outra escolha. Te digo mais, tô mais revoltado que viado quando cai do carro alegórico no desfile de domingo... Se fosse comigo, enfiava o Quincas na boca do almofadinha, pegava os dois, ele e a neguinha, e levava direto na gerência. Os dois iam contar tudo de joelhos, tá entendendo? O almofadinha, principalmente, ia se arreganhar todo. Quem sabe até não confessava que era ele que mandava a neguinha surrupiar os apetrechos. Tô até vendo a cara do sujeito, tremendo mais que mão de bêbado: “Nós vamos nos casar, doutor... Isso era pro nosso enxoval...” Enxoval com a grana dos outros... Sabe de uma coisa? Não suporto covardia.
Depois, outra coisa que eu não gosto é essa novidade de dizer que polícia e bandido é tudo igual. É o caralho! Do jeito que tá indo o barco, vamos ter que ressuscitar o Lúcio Flávio, o Cara-de-Cavalo, o detetive Lecock e mais uma meia dúzia de vinte ou trinta. Vamos pôr todo mundo no spa e fazer um congresso. O tema vai ser: “O futuro de tiras e bandidos à luz da sociopilantragem”. Precisa acabar com esse negócio de dizer que é tudo a mesma coisa. Bandido é bandido; polícia é polícia. Tá certo que às vezes a gente nem sabe de que lado está, mas isso também acontece com uns e outros que se vestem de negro, né não? Os famosos togados, homens de preto... Mas ninguém diz que justiça e bandido é a mesma coisa. Ou será que dizem?
Tá certo, o que tem de juiz vendendo sentença e desembargador desembargando traficante... Não tá escrito. Nós tamo é tudo fudido mesmo. Não vai sobrar um puto pra contar a história. Sodoma e Kiporra, os últimos dias de Pompéia depois da gonorreia, os vendilhões do templo... Tudo isso é fichinha perto do que está acontecendo. Na hora do juízo final é que eu quero ver. Dizem que o Homem lá em cima tá vendo tudo, anotando no caderninho...
Pra cortar caminho e acabar com essa conversa de cerca lourenço, eu sei que você deve estar duvidando de mim, acha que eu vou “esquecer” a promessa que eu fiz, de provar que eu sou um cara humano, que se preocupa com o seu semelhante e coisa e tal... Não esqueci, não, viu? Primeiro escuta, depois diz se eu tenho ou não tenho razão:
Quando eu vi a moça passar por mim, na calçada em frente à espelunca onde ela estava hospedada, pensei: “Pintou sujeira. Porra! Logo agora que o homem tá vindo aí...” Bom, como ela não carregava nenhuma sacola, achei que talvez estivesse indo comprar alguma coisa, sei lá... Achava difícil uma mulher fugir e deixar roupa, sapato, bolsa, maquiagem... Ainda mais ela, que não tinha ninguém no mundo. Aí me bateu o seguinte: “Será que ela não tem mesmo ninguém no mundo? Será que não foi o amante daquela outra, a dona do sobrado, que andou telefonando pra ela?” Depois, também podia ser que ela mesma tivesse ligado pra alguém no antigo trabalho, nunca se sabe. Aí resolvi ir atrás. Larguei o posto e fui ver onde é que ela ia, tudo com o maior cuidado pra não aparecer, nem pra ela nem para quem viesse encontrá-la.
Vi que a moça subiu em direção à pracinha, a tal do colégio abandonado. Deu uma volta por ali, olhou em todas as direções e acabou se sentando no único banco que não tinha ninguém. Eu fiquei bem atrás, como quem não quer nada. Achei que ela podia me reconhecer porque já tinha me encarado quando atravessou a rua na frente da pensão. Comecei a achar aquilo estranho. Ninguém sai às pressas, do jeito que ela saiu, pra se sentar num banquinho de praça e ficar olhando os pombos. Ainda por cima, de vez em quando ela virava a cabeça, desconfiada, como se estivesse esperando alguém.
Não deu outra, mais um pouco e um moleque sentou a seu lado. Disse alguma coisa que eu, naturalmente, não podia adivinhar o que era, mas podia, isso sim, reconhecer o infeliz: nada mais, nada menos do que o louco, o maluquinho, filho bastardo do coisa-ruim. Levei o maior susto: “O que é que esse anormal tá me fazendo aqui, sentado ao lado da putinha? Não era só o que me faltava...?” Na hora tudo o que eu pensei foi que talvez a coisa tivesse sido armada pelo próprio pai do garoto, aquele que-não-se-diz-o-nome, mas logo em seguida, quando o guri e a moça se levantaram e foram caminhando em direção a um táxi preto, um desses carrões que já saíram de linha faz anos, concluí que estava na hora de me mexer, caso contrário.... sabe como é, né? Conheci um cara que não se mexeu na hora certa. Aí quebraram as duas pernas dele. Nunca mais andou, o coitado...
Dá para imaginar um táxi seguindo outro sem pensar em filme americano? Não dá, né? Pois foi o que aconteceu aqui com essa figura que atende pelo nome honrado de Chico Simeão, e que tem o desprazer de encher vosso saco com histórias sem pé nem cabeça. Aliás, pé tinha o crioulo que dirigia a Caravan preta. Quando a moça olhou pra trás e viu que a caravan deles estava sendo seguida, o motorista mandou ver. Pisou de verdade. Cantou pneu, subiu na guia, quase capotou.... E nós atrás....! Eita, vida...! Lá pelas tantas percebi que andávamos em círculo: já era a terceira ou quarta vez que eu via aquela padaria, aquelas fachadas de prédios, os mesmos carros estacionados. Perguntei ao motorista e ele confirmou: “Acho que os caras estão nos gozando...” Gozando, é? Estão é perdidos, pensei eu, os filhos da puta não têm para onde ir e soltei uma gargalhada. O motorista achou que eu estava rindo do que ele disse e riu também, alto, crente que tinha entrado numa gincana, qualquer coisa assim... Tá vendo? É assim que um pobre coitado se ferra. Tava ali no ponto, lendo seu jornalzinho, de repente aparece a figura que vos fala e solta aquela velha frase: “Siga aquele táxi...!” O cara vai, tem que mostrar que é profissional, mas não sabe com quem está se metendo. Pode ser que não aconteça nada e o cara saia liso. Mas também pode ser que numa dessas quebradas da vida, alguém surja com uma automática nos cornos da gente e comece a atirar. Aí, cara, não dá nem tempo de gritar: “Cuidado!” Quando a gente vai ver, o motorista foi o primeiro e único a se ferrar, porque azar, o inocente é quem tem; lá isso é verdade...
Não sei se foi excesso de confiança, não sei se a gente pensou que os caras estavam perdidos e daí não conseguiriam fugir, o que eu sei é que, de repente, entramos numa ruela à esquerda, quase um beco, tinha umas crianças jogando bola, até parecia uma rua de bairro, bem naquela região central, cheia de boates e casas noturnas. O motorista freou instintivamente, os garotos ficaram olhando desconfiados e... Cadê o Chevrolet? Parece brincadeira, mas veio de novo na minha cabeça aquela gozação das três tartaruguinhas. Um cara pra lá de lerdo toma conta das três e duas fogem. Fiquei pra morrer, dei um esporro no chofer como ele nunca tinha levado em toda a sua vida. Rodamos devagar, observando cada detalhe, mas... nada do carro nem dos três espertinhos. Então eu disse ao sujeito que ele não dirigia era porra nenhuma... Mostrei meus documentos, esfreguei minha arma nas fuças dele. Gritei que eu era o famoso Chico Simeão! O sujeito se borrou todo. Só faltou se ajoelhar e me prometer que ia encontrar o tal motorista, mesmo porque ele achava que aquele táxi era roubado. Aí eu fiquei puto: “Roubado é o caralho!!! Roubado tô eu agora, seu....!” Desci do carro e mandei o cara se foder... Por pouco não descarreguei o tambor nos pneus, mas aí como é que o cara ia embora, não é mesmo?
Demorou até eu juntar os pauzinhos, acho que ando meio lerdo, mesmo... Durante esse tempo não falei com ninguém, nem dei sinal de vida. Mas de repente me deu um estalo: “Porra, se o garoto já chegou de táxi pra buscar a moça. Se ele é filho do homem e eu sei onde é que o homem mora... O que é que me custa dar uma olhada no ponto de táxi bem na frente do apartamento do rabudo? Dito e feito: Mais umas horinhas e o crioulo me apareceu sorridente dentro do seu carrão preto. Podia tranquilamente entrar no táxi, encostar o cano do revólver na nuca do crioulo e dizer com toda a calma do mundo: “Me leva agora para o lugar onde você deixou aqueles dois, se não quiser puxar um ronco aqui dentro desse teu táxi fedorento, pra não acordar nunca mais, seu nego de merda!” Mas achei que seria melhor fazer a coisa certa, isto é, esperar calmamente que uma hora ele saísse sem passageiro, para então pegar um outro táxi fora do ponto, fazer a mesma jogada, só que dessa vez não ia perder o negão de vista, por nada desse mundo.
O lugar onde paramos? Você nem pode imaginar... Um bordel, meu camarada, um daqueles dos velhos tempos. O nome era “Lua de Cristal”. Pensei: “Porra esse crioulo tem cabeça, levou a dupla para um puteiro, quem é que ia imaginar? O garoto é menor de idade, a moça é toda classe média, cheirosinha, coisa e tal... Quem é que ia procurar os dois num lugar como esse?
Mostrei minha identidade para o taxista que tinha me levado e deixei “sem querer” ele ver o que eu carregava na cintura. Pra quê? O cara nem quis receber a corrida, tava era louco pra se mandar. Eu ainda recomendei, ou melhor aconselhei: “Bico calado, hein... Senão já sabe.” Esperei o crioulo descer as escadas, atravessar a rua e entrar no seu velho e destemido táxi do século retrasado. Depois que ele já estava longe, foi a minha vez de subir as escadas. Na porta, um sujeito me olhou com cara de poucos amigos e disse, bancando o durão: “Tá fechado. Só abre às dez...” Quem me conhece, sabe o que é que eu faço numa hora dessas. Puxei de novo os documentos e abri o paletó pra ele ver o que eu tinha na cintura. Depois falei baixinho no ouvido dele: “Não tá fechado porra nenhuma, seu otário! Eu entro na hora que quiser...” Ele não disse nada. Saiu da frente e baixou os olhos. Acabei de subir as escadas, olhei para trás e soltei: “Porteiro de zona é foda!”, mas aí foi alto pra caralho...
Na recepção já tinha um viadinho me esperando. Parece que adivinhou que eu estava subindo, porque veio logo me dizendo: “Pois não...? Em que posso ajudá-lo?” Eu olhei para aquilo e pensei: “O tempo passa e a putaria continua a mesma: é cafetão na porta e viado dando uma de gerente”. Expliquei em poucas palavras o que eu desejava e antes que ele tivesse tempo para inventar uma desculpa, agarrei seus cabelos cor-de-fogo como se estivesse querendo puxá-lo para fora do balcão, esfreguei na cara dele meu distintivo e um três ponto oito turbinado. Tudo o que ouvi foi um “Por aqui, senhor...” tão acanhado que por pouco não dei um peteleco na bichinha, certamente acompanhado por um “Seja homem, rapaz!”.
O pior, meu amigo, é que na porta do quarto onde os dois se escondiam, aliás não era quarto, eles diziam que era uma suíte de luxo, pois lá na porta foi que eu ouvi aqueles sons que a gente sabe reconhecer em qualquer lugar do mundo: um sujeito ofegante e uma mulher gemendo baixinho, acho que até em marte não dá pra disfarçar. Tentei abrir cuidadosamente a porta, mas estava trancada. Olhei para o viadinho da recepção e ele abriu os braços, como quem diz: “Agora só arrombando..” Colei o ouvido na porta e percebi com toda a nitidez a mulher falando o nome do maluquinho e ele o dela, os dois sussurrando com paixão.
Aí é que eu te digo: tinha duas alternativas, ou metia o pé na porta e entrava de 38 em punho; ou deixava os dois ali se amando, sabe-se lá até quando. Recuei uns dois ou três passos, até me encostar na parede do corredor e fiquei pensando: “Sabe o que mais? Eu é que não vou estragar a primeirona, nem a segundona ou a terceirona desse doido. Quem sabe ele até não fica bom da cabeça. Depois, o cara nunca me fez nada, é filho bastardo do coisa-ruim e os dois, ele e o pai, parece que se odeiam...”
Saí dali muito mais leve, como se tivessem tirado umas duas toneladas de cima das minhas costas. O viadinho da recepção me viu passar sem entender coisa alguma. Estava me sentindo tão bem que até me deu vontade de jogar uns beijinhos pro sujeito. Os inimigos do meu inimigo são meus amigos, falou? E o futuro, os dois que se virem...
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