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segunda-feira, 9 de maio de 2011

Um Peixe Fora D'Água

Massimo abriu a janela e deixou entrar em ondas as cores do cartaz luminoso. Piscavam as imagens, arregalava os olhos: era pra ser uma propaganda de cigarro, ou de whisky, mas não o de sua marca. 
No edifício em frente alguém fez um movimento semelhante: abriu a cortina, ou ergueu a persiana, pôs a cara pra fora da janela... Era ela: Júlia. 
 M. segurava o copo enquanto J. acendia o cigarro. Ficaram por ali fumando e bebericando, a rua estreita, os edifícios quase colados, as janelas se entreolhavam. À noite, na cidade suja e decadente, a escuridão nunca era plena.


Massimo viu alguém chegar por trás da mulher que fumava. Os braços a enlaçaram. De onde Massimo estava, só podia ver o rosto de Júlia, seus peitos pequeninos debaixo da blusinha azul e as mãos do homem os enconchando. J. parecia gostar. M. não viu se ela ria, mas imaginou que rir talvez não fosse a melhor reação para o momento.


Mascou, murmurou, tossiu...Disse, até que bem alto: “Vagabunda...” Nessa hora, não por raiva ou frustração, mais por desejo.


Queria estar no lugar do homem que apertava Júlia? Queria, muito mais, apertar alguma coisa em direção ao homem que prendia Júlia.
Deu três passos para trás e saiu do pequeno campo de luz que invadia o quarto. Enfiou o olho esquerdo na mira a laser, lente infravermelho, e lá estava ela: J. em transe, a mão do homem por baixo da blusinha azul transparente. Viu quando o cara mordiscou a nuca de Júlia, levantou os longos fios de uma densa e ondulada cabeleira, apertou de leve seu pescoço, como se estivesse fazendo uma simples massagem, depois beijou, passou os lábios, fungou, esfregou o queixo... Lente de alta definição, dava pra ver, na cara do porco, os pelos de uma leve barba por fazer. Sentiu J. arrepiar-se toda, até a alma.
O gatilho roçou no dedo de Massimo. Naquela hora, algo o segurou. Quem sabe, o prazer de Júlia, o desejo ardente do homem que a abraçava...


O que faz um sujeito alugar um quarto minúsculo bem em frente ao apartamento da mulher que o trocou por outro? Na lógica de Massimo certas coisas não devem ser respondidas, pura e simplesmente. Pensa ele que todos os crimes que porventura venha a praticar já foram muito bem pagos com a prisão injusta, longos meses na cela imunda, até provar que não tinha intenção de matar ninguém, sequer pensou em atirar. Foi por falta de provas que ele saiu livre, sorrindo para o promotor e repetindo mil vezes: “a arma disparou acidentalmente, acertou a puta de raspão...” A mesma puta que agora o provoca na janela em frente. Excelente advogado aquele. 
O que faz um homem como Massimo se julgar no direito de julgar-se a si mesmo e dar quitação a um crime que irá cometer mais dia menos dia? Nada o atrai tanto na vida como apertar o gatilho, talvez só o calor de Júlia, ardendo no próprio corpo recém-ensanguentado. E uma coisa é consequência da outra: o gatilho neste lado da rua; o riacho de sangue no assoalho do apartamento em frente. 


O amante de Júlia, o canalha que em breve irá morrer por ter ajudado J. a se vingar de M., agora desabotoa a camisa e encosta nela o peito nu. Estão os dois agarrados à mesma sofreguidão. Ele arranca a blusa de Júlia e a puxa  para o interior do quarto semiescuro. Massimo pensa que o homem não pretende se esconder, muito menos proteger-se  de olhares indiscretos. Talvez apenas procure a cama ou o chão frio, para fornicar com a mulher que Massimo sempre amou. 

No cartaz, a luz que emana do copo é amarela; a fumaça do cigarro é azulada. “Tem cor de lâmpada de geladeira velha”, Massimo pensa. 


Agarrados, voltam à janela. Agora sim Júlia está inteiramente despida e o sujeito a possui por trás. Os peitos de Júlia balançam para quem quiser ver. Massimo enxerga no rosto de J. o desespero do prazer. De seus lábios brotam doces ofensas, tão familiares: “Animal... animal...” 
Júlia verga seu corpo, encosta o tórax no parapeito da janela. O homem enfia as unhas nas costas de J. Ela grita. Massimo não acredita na dor que deve estar sentindo.


Júlia se desvencilha. O homem agarra com força seus cabelos negros, empurra a cabeça para baixo, obriga J. a ficar de joelhos na sua frente. Massimo não vê senão a cara em êxtase do amante de sua amante.  
Depois é a vez do homem se ajoelhar na frente de J., que levanta a perna esquerda até a altura da janela. M. imagina que é nele, Massimo, que ela pensa. São os mesmos lábios crispados, os mesmos olhos perdidos, o mesmo gozo que tantas vezes alcançou a seu lado.


Massimo acha que os dois estão nus, trepando na frente da janela só para o provocar. É ele que Júlia quer, ninguém duvide.


Depois desaparecem. Massimo sabe que estão deitados no chão, se esfregando, se unhando, se mordendo... um sorvendo a entrega da outra. “Como dois gambás imundos...”, ele diz baixinho.


Nos ouvidos de Massimo entram as risadas da cela e a pergunta: “Pode um homem morrer de ciúmes por uma mulher que nunca o amou?”


"É uma puta? Quem mandou se apaixonar?”, ouve uma voz, idêntica à sua, martelando seus ouvidos.


Apenas uma bala deverá vazar o corpo de J. e atingir o amante que a envolve. O impacto é tão forte que os dois se estilhaçam na parede ao fundo do quarto. O dedo abandona o gatilho. O nariz de Massimo, peixe fora d’água, sai à procura de um ar que não é dele, oxigênio podre, como qualquer fumaça a sair de copos e canos.   
fn

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