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quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

A SAGA DE VIRGÍLIO


O Fornecedor de Álibis

Quando pegaram o suspeito para interrogatório e futuras averiguações, todos nós ouvimos sair de seus lábios trêmulos estas palavras muito bem ensaiadas: "Com que interesse eu mataria alguém que amo e depois deixaria a arma de minha propriedade no local do crime? Tudo isso sem possuir um único álibi, a não ser o de estar vagando naquele momento pelas ruas desertas de uma outra cidade, alheio à fina garoa da madrugada, me protegendo apenas com a gola do paletó erguida, talvez para que ninguém mais viesse a me reconhecer e a testemunhar a meu favor? Podem me dizer se acham que eu seria capaz de tamanha estupidez para me autoincriminar?"
Primeiro que ninguém fala assim, de um modo tão, tão, tão..., disse um dos nossos.
Em seguida, outro dos nossos homens acrescentou que não era seu trabalho averiguar a índole das pessoas, muito menos escavar suas neuroses, deixava isso a cargo das... Não chegou a terminar a frase (a palavra devia ser “psicólogas” ou “psiquiatras”), mas não chegou a concluir porque alguém entrou na pequena sala de paredes espelhadas e resmungou algo no ouvido do chefe, que esmurrou a mesa, soltou uns dois ou três palavrões cabeludos, acompanhados pela tradicional e inofensiva expressão: "Só faltava essa..."


Quase todo mundo vê o futuro como uma continuidade do passado, olham para trás e acreditam que assim também será o futuro. Não se dão conta que o espelho que procuravam é falso, ilusório, quando não, traiçoeiro, demoníaco. O espelho do passado raramente joga luz no presente. O futuro? Não se meta com quem você não conhece, pode ser um bom conselho.

O suspeito quase perguntou se aquele "essa" que o chefe proferiu poderia ser a sua advogada que acabara de adentrar com o tão esperado habeas-corpus. Conteve-se a tempo, tendo em vista a real possibilidade de vir a ocupar o lugar da mesa nas mãos do chefe. O encarregado do inquérito retomou: "Acha que alguém vai acreditar nessa boboseira? Desde quando levamos em conta o que um sujeito faz ou deixa de fazer contra si mesmo?" Ficamos naquilo de montar a peça acusatória, baseada em evidências, que eram muitas e apontavam para uma só pessoa.
Hoje, depois de todas as surpresas que tiveram que engolir, fico pensando naquele momento do inquérito, quando alguns olhavam para o único suspeito e chegavam a sentir uma certa simpatia pelo seu desolamento. Mais tarde, muitos confessaram que jamais lhes passou pela cabeça que era tudo parte de uma encenação. Eis porque, como lhes disse, os olhos do passado só servem para olhar o próprio passado.
Não é que a arma encontrada no local do crime não pertencesse ao suspeito. A perícia, no entanto, comprovou que a bala que matou sua amante não havia saído daquele revólver. De qual, então? O suspeito teve seu primeiro motivo para sorrir levemente.
O segundo motivo veio com fitas de vídeo apresentadas pela tal advogada, que sabia como ninguém irritar o chefe (há quem insinue que existia algo entre os dois, que nunca teria sido revelado). As imagens gravadas por diversas câmeras de ruas e prédios comerciais identificaram alguém muito parecido com o suspeito, caminhando com a gola do paletó levantada, na mesma madrugada em que a mulher fora morta. As ruas, como todos devem imaginar, pertenciam à região central daquela cidadezinha que o acusado blá-blá-blá-blá...
Mais tarde, surgiu um misterioso frentista de posto de gasolina que jurou ter visto o ex-suspeito atravessando a pracinha da prefeitura, a defesa ainda teve a desfaçatez de juntar ao processo um bilhete de ônibus interestadual, em nome do acusado, em data e hora que se encaixavam como uma luva para comprovar sua inocência. Eu disse, só por dizer, é claro, que poderia ir atrás do motorista do ônibus e tomar seu depoimento para confirmar o embarque do quase-bode-expiatório, mas todos riram do meu "exagero", o chefe deu um tapinha nas minhas costas e disse um “deixa pra lá, Virgílio”, como quem mastiga as cápsulas de um 38, de modo que só me restou a alternativa de embolsar a grana que os mandantes do crime me pagaram para destruir uma a uma as evidências de um assassinato a sangue frio, torpe, porém altamente lucrativo, mesmo depois de subornar o detetive da seguradora.
Enquanto me dedico a essa nova e promissora profissão de "fornecedor de álibis", volto a pensar que as pessoas ingênuas talvez tenham uma certa razão, quando dizem: "O futuro, a Deus pertence". Pode ser... mas só se esse “Deus” de que eles falam não for aquele do passado que ninguém esquece.


Novíssimas Profissões

O homem parou sob a estátua do herói a cavalo, acendeu o cigarro. A outra mão, enfiou-a no bolso do casaco de lã. Apertou o frasco gelado. Passou pela sua cabeça uma irresistível vontade de olhar o vidrinho, talvez para conferir se ainda era o mesmo, com sangue até a metade. Conteve-se. Soltou uma baforada e atirou o cigarro quase inteiro na rua deserta. Parou de apertar o frasco, tirou a mão do bolso do casaco, vestiu as luvas cor da pele e atravessou a rua em direção à casa onde deveria fazer o "serviço".
Com o passar do tempo, desenvolveu o que chamava de "habilidades", a principal de todas: olhar para três, quatro posições ao mesmo tempo e conciliar situações, muitas vezes conflitantes. Um exemplo estava bem ali à sua frente: teria que entrar sem ser visto, driblar olhos humanos e eletrônicos, fazer o que devia ser feito, sem perguntar nada a ninguém, muito menos à sua própria consciência abandonada. E o que devia ser feito, além de espargir o sangue de um inocente (que em breve se tornaria culpado) na casa de uma vítima, cujo corpo lá deveria estar em repouso no chão da sala? Apertou de novo o vidrinho, olhou em volta e pensou que ninguém deveria ter pena do tal "inocente" que iria pagar o pato , pois era ele mesmo culpado de uns tantos outros crimes dos quais se safara até então, alguns bem piores do que esse de "matar" um vigarista igual a ele.
O verdadeiro culpado? Aquele que ia se livrar incólume tendo em vista as novas evidências? Sobre esse, tudo o que podia dizer é que sabia honrar seus compromissos e que não era a primeira vez que financiava esta novíssima profissão de fornecedor de DNA, que ele agora exercia com todo cuidado e respeito às normas.
Entrou na casa como um gato sorrateiro. Abriu o frasco, espalhou com parcimônia o sangue imundo. De lá mesmo ligou para a polícia usando o celular do morto. Serviço completo, todas as pistas foram deixadas conforme o roteiro, passo-a-passo na sua cabeça, que agora pensava que estava na hora de sair de cena e deixar que outros concluíssem o resto da trama. Cuspiu o chiclete e foi para casa sem tirar as luvas: a noite era negra e fria.


Pêndulo

Naquele cartaz não tem um cara sentado? Isso, o cara olhando o cartaz, esse mesmo... Está sentado no banco da praça, desta praça onde estamos agora, de costas para nós, olhando o cartaz aqui em frente, no outro lado da rua, tá vendo? Só para ter certeza de que falamos da mesma pessoa, refiro-me ao sujeito de calça bege, paletó azul marinho, com um boné igualzinho ao que você usava antes do acontecido. Ele mesmo, é você... Só não sei quando, se ontem ou se amanhã, creio que ninguém pode afirmar. Pensam as pessoas que se é você no cartaz tem que ser uma foto, e uma foto só pode ter sido tirada antes dessa nossa conversa. Entendo que pensem assim, mas e se esse "você" que olha o cartaz e ouve minhas perguntas, for um "você" anterior à foto do cartaz? Como é possível? Muitas coisas nessa vida parecem impossíveis, Virgílio, eu mesmo não acreditava que você, esse você que está aqui do meu lado agora, fosse capaz de se levantar calmamente do banco de praça naquela foto e, como quem vai ali no bar comprar um cigarrinho a granel, fazer o que fez, só a título de vingança. Não foi vingança? Foi o quê, então? Diletantismo talvez; espírito de aventura? Queria eu saber, Virgílio, o que você sentiu de fato quando Manu se insinuou para o seu lado, e você pensando que devia ser pena ou um arrebatamento que algumas mulheres lindas como ela não conseguem controlar. Foi isso que pensou no primeiro momento, Virgílio? Manu com pena ou apaixonada?! Tá bom... Entendo que qualquer um, na situação em que você se encontrava, poderia pensar qualquer coisa, qualquer besteira mesmo, como essa de se iludir com a pequena e deslumbrante Manu. Armaram odiosamente contra você, isso todos nós sabemos. Só não o defendemos porque um pequeno detalhe, que só você não sabia, barrava qualquer ação em sua defesa. Agora que você já sabe que tudo não passou de um plano para testar duas coisas - sua capacidade de reagir nos piores momentos e sua efetiva lealdade -, o que nos diz, Virgílio? Arrepende-se da intriga que tentou construir contra mim e outros amigos, valendo-se de Manu e de suas ilusórias falsidades? Ou será que nem arrependimento você é capaz de sentir? No final das contas, fomos todos prejudicados, porque os diretores não gostam que seus planos se modifiquem no meio do caminho, você entende? Culpam a mim, por não ter alertado você no momento exato, mas como iria eu adivinhar que momento era esse? Culpam você porque não confiou cegamente na missão que lhe destinaram, mas, reconheço, como iria você adivinhar que a tal “missão” não passava de um teste? Culpam Manu por ter se envolvido, dizem eles, além da conta, mas, como disse a própria Manu, como iria ela adivinhar qual era o ponto certo para desiludi-lo de seus propósitos, Virgílio? Sobrou até para o marido de Manu, se você quer saber, consideraram “exagerado”, “despropositado”, o ciúme que sentiu, sentimento bem mais forte, segundo analistas, do que a tal lealdade que de todos nós é exigida. Parece que há mesmo um divisor de águas entre sentimentos pessoais, como o ciúme, a covardia ou a ganância, inerentes a todos, e os sentimentos ditos sociais, que muitos não possuem, como a honestidade, a fé ou a lealdade. Finalmente, meu caro, gostaria de saber se você já imaginou o que poderia ter acontecido se o seu plano de vingança alcançasse os objetivos que você mesmo traçou? Se a tal pessoa que lhe ouviu não fizesse parte também da encenação? No mínimo, Virgílio, você seria encaminhado a um manicômio, enquanto investigavam os detalhes do “crime”, tão torpe quanto falso. Sim, meu amigo, você sairia daquela foto no cartaz para um manicômio, que é o lugar adequado para quem insiste em atrapalhar o bom andamento da vida, inventando histórias sem pé nem cabeça. E se eu te disser que até hoje, até agora, neste exato instante, você está sendo analisado e podem não estar gostando do jeito que você aceita as coisas, com toda essa passividade? Até com um certo desencanto? Infelizmente para todos nós, a vida não é só aquilo que passa diante dos nossos olhos, Virgílio, pense nisso.

Coisas da Vida

Virgílio, você não é burro, longe disso. Assim sendo, ou não sendo, já deve ter-se perguntado alguns milhares de vezes: “Por que diabos uma vagabunda que eu nunca vi na vida viria aqui na porta da minha  casa me ofender e dizer que eu devia a ela não sei quantos meses de pensão?” Perguntou ou não perguntou, amigo Virgílio? De nada adiantou você jurar para a sua mulher que nunca tinha visto a infeliz mais gorda, aliás, esse negócio de “mais gorda”, na hora, levou Raquel Maristela a cogitar que você e a infeliz tiveram um filho juntos, um só, Virgílio? Claro que uma pessoa como você, que de burro não tem nada, entendeu perfeitamente a posição desagradável em que sua mulher se encontrava, é ou não é? Até deu razão a ela, embora culpa mesmo você não tivesse nenhuma, não nesse caso. Mas, como diziam os antigos carbonários, onde há fumaça, há fogo, e Maristela, sua esposa e minha comadre, estava coberta de razões para suspeitar de tudo que você jurasse dali pra frente, porra, Virgílio, voltamos à estaca zero, o que levaria uma vagabundazinha a fazer o que ela fez se você sequer a conhecia? Mulheres são mulheres, meu amigo, e nessas horas sempre levamos a pior, é o que pensa você? Já sei que você chegou até a se ajoelhar na sala da sua bela residência, contou que nessa hora Raquel Maristela jogou na sua cara detalhes que a putinha falou a seu respeito e que só uma pessoa que viveu a seu lado poderia saber. Sua mulher chorou, Virgílio? Tá certo, isso não vem ao caso. Você me diz que os tais detalhes podem ter saído apenas da cabeça de Maristela pra te encostar na parede, que por sinal anda precisando de uma bela pintura, ahn? Eu não digo nada, nem que sim, nem que não, você ainda acha que toda essa armação só pode ser obra de alguém querendo prejudicá-lo, um inimigo oculto, desses que comemoram o Natal nas penitenciárias, mas eu penso, amigo Virgílio, que uma pessoa que deseja prejudicar a outra dessa forma, primeiro mandaria cartas anônimas para depois chegar ao extremo da encenação. O quê?! Houve as tais cartas? Sua mulher nada revelou porque pretendia investigar a fundo o conteúdo da intriga? Poxa, Virgílio... Parece que a trama foi bem armada, pegaram você direitinho, meu amigo. Mas, me responde uma coisa, já pensou na hipótese de ter alguém querendo semear a discórdia entre vocês para, em seguida, seduzir Raquel Maristela? Já pensou? Acha que só pode ser isso, ou algo do gênero? Não se apresse em suas conclusões, Virgílio, e também não precisa ficar me olhando desse jeito, o quê que há...? Somos amigos há mais de sete meses e uns quebrados.
P.S. Me responda uma última dúvida: será que você insistiu que não conhecia a tal piriguete e que nunca teve nada com ela, muito menos um filho, só porque sabia perfeitamente que na época em que a engravidou, com toda certeza, ela devia ter menos de 14? Neste caso, você sabe a burrada que fez, Virgílio. Sabe o que significa “estupro de vulnerável”, não sabe? Agora aguenta as consequências, não vai ser fácil...

Testemunha

Eu, Raquel Maristela de Jesus, encontro-me neste momento sob os escombros de uma casa de dois andares e um sótão, que veio ao chão após o terremoto, ou a explosão, ou sei lá o que seja, pois só agora recobrei em parte a consciência.
Consciência, será que ainda a possuo? Ou o que restou foi apenas a memória? Tenho aqui comigo uma caneta esferográfica vermelha e uma pequena agenda, onde pretendo escrever meu nome, assinar com a minha assinatura e acusar o responsável pelo que aconteceu aqui. Por ora é o que preciso, além do ar que respiro, é claro, embora não saiba até quando irá durar.
A luz é fraca, entra por uma fresta no teto, ou o que sobrou dele. O terremoto, a explosão ou sei lá o quê, não sei quanto tempo durou, mas isso também não importa, sei que abriu uma cratera na minha cabeça, vamos dizer que uma nova vida se inaugura a partir do que aconteceu. Está acontecendo? Acha melhor?
Sempre quis descobrir o que uma pessoa como eu pensa quando está nas mãos de Deus, quando não pode fazer nada por si mesma. Juro que nunca me ocorreu uma situação como essa: a caneta de tinta cor de sangue, a agenda do ano passado e tantas lembranças.
Sinto até vergonha de falar, mas a primeira coisa que pensei ao me ver imóvel, caída no chão depois do estrondo, foi algo assim, bem rápido: "Pronto, o mundo acabou, eu morri, estou no inferno e tenho que pagar meus pecados".
No auge do meu delírio achei que o diabo em pessoa ia aparecer a qualquer momento pra me interrogar. Foi aí que abri a pasta caída no chão a meu lado, depois peguei a agenda e a caneta vermelha. Fiquei esperando o diabo chegar para colocarmos os pingos nos ii.
Não sei se é assim com todo mundo, mas acho que a pessoa que perde a consciência nunca a recobra de uma vez, as lembranças vêm aos poucos. E a verdade é que em momentos como esse duvido que algum de vocês se preocupe com lembranças. O que eu pensei, e que todo mundo deve pensar, foi no futuro, no futuro imediato, colado no presente, esse que a gente nem sabe se vai ter. A gente quer se agarrar a alguma esperança, tipo "acho que isso aqui não vai desabar. Tô ouvindo vozes, latidos, o socorro há de chegar a qualquer momento".
Terremoto não foi, não há por aqui, não havia. Pode ser um tiro de revólver de grosso calibre, fuzil? Me acertaram, só a mim? Caíram muito mais pessoas e coisas, não foi uma arma que alguém disparou junto aos meus ouvidos. Ouvi dizer que vinha chuva, dilúvio, pode ser? Me digam vocês que viram tudo aí de cima, porra...
Se for pra confessar começamos logo pelo mais grave de todos os pecados: fui eu, sim, Raquel Maristela de Jesus, quem enfiou a faca na barriga daquele filho da puta do Virgílio. Virgílio, ele mesmo, o vendedor de álibis, o semeador de DNAs, o assassino cruel, que muitos elogiavam a aparência e pouquíssimos o conheciam por dentro, não pensaria duas vezes antes de explodir a casa só por vingança.
"Por que, Raquel, você deixa o infame invadir sua cabeça quando mais precisa manter a lucidez?"
Não creia, nem de longe, que furei o canalha para punir o bandido,  isso pra mim não tem nada a ver, cada um faz o que quiser da sua vida. O que nunca perdoei foi Virgílio ter jogado as crianças contra mim, trazendo pra dentro de casa as mentiras e traições que ele aprendeu no mundo do crime. Merecia morrer? Não me cabe julgar se escapou da hemorragia pelas mãos de Deus ou se vendeu o que nunca teve para enganar o Diabo (estou falando da alma de Virgílio). Mas juro que não vou perder meus últimos minutos de vida falando nesse ...
Se tivesse que confessar alguma coisa importante de verdade teria que falar do Chefe, vamos deixar assim, sem mencionar o nome de ninguém para evitar riscos desnecessários. Quando eu falar do Chefe, vamos fingir que todos já sabem quem é, está bem?
Engana-se quem acha que uma mulher não pode trair para salvar seu homem. Engana-se a mulher que acha que seu homem pode perdoá-la se a traição que praticou foi por motivo nobre, como este de salvar a família. Quando não há perdão, a culpa une-se à injustiça, e desse amálgama de sentimentos pode brotar o ódio, um ódio avassalador.
Bem de longe chega aos meus ouvidos uma música que repete: "Que maravilha, que maravilha...", acredito que pode ser mesmo uma maravilha, se não tiver nenhum osso quebrado, principalmente os quadris, não sinto dor aguda, mas sabe lá... Preciso dizer que não estou na minha casa, não moro aqui, nunca morei, Deus me livre e guarde. O que é que eu faço debaixo desse entulho? Aí é que está, guardava uns documentos, talvez uns dólares, talvez não. Fui pega de surpresa e agora preciso pensar rápido para explicar o que estou fazendo aqui debaixo dessa casa demolida, isso quando as equipes chegarem aqui onde estou.
Se eu já gritei, se já pedi por socorro? Não, não gritei, não chorei, nem pedi socorro. A mulher que teve a coragem de furar Virgílio não pode demonstrar fraqueza, foi o que a vida me ensinou. Você tem que estar à altura dos seus inimigos. Enfrente os monstros, se não decepar a medusa, morra lutando, sem baixar os olhos.
Não sei se acontece com todo mundo em momentos decisivos, mas comigo está sendo assim, aquilo que eu penso chega de fora pra dentro na minha cabeça, um ruído, o som daquela música distante, lá dentro detona as lembranças. Correu um boato, antes da fatídica facada que quase matou Virgílio, algumas mulheres invejosas da minha posição diziam que eu teria agredido o infeliz e corrido atrás dele aos gritos de "Corno! Corno! Corno!", enquanto ainda era sua legítima esposa, mas foi apenas um boato que o povo inventa para pisotear quem já está a caminho da sarjeta.
Como ninguém está livre da influência da televisão e de seus noticiários moralistas, logo um grupo de senhoras mal casadas tentou formar o "Viva Raquel", um movimento que pretendia acusar Virgílio e sua laia de forjar uma agressão com faca só para prejudicar a mim, sua abnegada esposa. Nem imaginam o trabalho que deu para agradecer às boas intenções, mas ao mesmo tempo pedir que parassem com o protesto, antes que o tiro saísse pela culatra. O lado cômico não podia faltar: a mulher do Chefe apareceu para saber se havia alguém nos ameaçando, sugeriu que os dois ex-maridos, o dela e o meu, poderiam estar tramando para me derrubar.
No final, para todos os efeitos, ninguém furou a barriga de ninguém, não para os tiras, bem entendido. Derrubaram a casa em cima de mim e eu nem sei quem foi ou se foi de propósito. Pelo menos nisso eu era inocente. Inocente, estranha palavra. Uma vez Virgílio, não sei se falou inocente, mas a ideia era essa: "São negócios, Raquel, só negócios de gente inocente". No crime também é assim, ninguém é culpado de nada. Trabalhamos como qualquer pessoa comum, para conseguir o que desejamos, e você, por exemplo, sempre desejou muitas coisas, amor."
Será que tem alguém que duvida que o submundo é feito por gente desse mundo?

Água é o que primeiro falta, embora nem pense em me afogar, ficar aqui imóvel, debaixo de tábuas, tijolos quebrados, poeira sufocante, é bem melhor, acho eu. Depois da sede virá a fome, mas antes o medo, na hora em que a escuridão tomar conta de tudo, até da pequena fresta por onde ainda entra a luz amarelada.
A voz de uma jovem sem rosto e sem nome brota do fundo do meu cérebro: "Não seja louca de enfrentar Virgílio. Um dia, quando menos esperar, ele vai dar um jeito de derrubar tudo isso em cima de você, dona Raquel." Pode ser que a voz seja inventada? Pode ser uma simples alucinação provocada pela sede? Sabia que alguém ia perguntar isso, os advogados de Virgílio sempre usam esse argumento nos tribunais. Quem acusa não pode provar e está passando por um momento difícil em sua vida.

Os cães acharam alguém. Pararam de latir aqui perto. Sei que os homens do resgate se afastaram, o som das batidas, quase não escuto, vem de longe, muito longe. Penso que um juiz podia tomar agora meu depoimento, juro que diria: "Foi um acidente, doutor. O mundo desabou de repente. Ninguém tem culpa de nada."
Não sinto as pernas, não vejo a fresta por onde entrava aquele facho de luz, não tenho forças para pedir socorro e meu grito nem eu mesma escuto: "Virgílio, Virgílio..."


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