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Às onze e meia da noite de uma terça-feira, Camila abre um e-mail em seu computador pessoal, lê, relê e não entende nada. Trata-se de alguém dizendo que estava na hora de cobrar uma dívida. Não dá importância, acha que é um trote, talvez um erro de destinatário, quem sabe um vírus. Mas não há nenhum anexo. Camila deleta, depois de ver que o e-mail veio de um tal de esperancoso2009.
No dia seguinte, logo pela manhã, Camila acorda com a campainha da porta. Fica na cama, tentando acomodar os olhos à penumbra do quarto. A empregada vem avisar que chegou um envelope, entregue por um homem baixinho, todo de amarelo. Camila abre e lá está escrita quase a mesma mensagem do e-mail: "Conforme o prometido, vou cobrar a dívida". Camila corre para a janela do apartamento onde vive com o marido e duas filhas. Examina a rua, estica o pescoço, mas não vê nada de anormal, até que um sujeito de calça, camisa, boné e sapatos amarelos sai do prédio e embarca apressadamente em um táxi que passava pelo local.
Camila gesticula, faz sinais para o porteiro do seu edifício, tenta pedir através da mímica que ele anote a placa do táxi, mas não é compreendida. Pouco depois, o porteiro sobe com uma caneta e um pequeno bloco de papel em branco, certo de que era isso que dona Camila estava querendo dizer, com seus gestos de quem finge escrever com a mão direita na palma da esquerda. Camila agradece, fecha a porta do apartamento e fica por um instante pensando: "Ainda bem que esse cara não achou que eu tava pedindo o seu telefone..."
Camila não consegue tirar da cabeça a tal "dívida" que o misterioso cobrador queria receber. Revisou os últimos dias, nada... Lembrou-se o mais que pôde dos meses e anos anteriores, também nada... Ficou jogando aquela pergunta de um lado para o outro da própria cabeça. Afinal, que dívida era aquela? Alguma coisa que deixou de pagar? Não era provável, Camila sempre foi super-responsável na sua vida pessoal e familiar. Mas então... por que mandaram um cobrador tingido de amarelo entregar o bilhete? Tudo isso era um mistério, que, naquele momento, Camila achou que deveria resolver sozinha. Por que sozinha? Por que não contar tudo ao marido e pedir a sua ajuda? Talvez por aí o mistério começasse a se elucidar. Lembrou-se do e-mail deletado. Foi lá na pasta dos excluídos e o recuperou. Leu, releu... Tudo que conseguiu foi repetir mentalmente: "Quem será você, senhor esperancoso?" e sorriu ao ver a falta que a cedilha faz.
No dia seguinte, ao anoitecer, quando estacionava o carro na garagem do prédio, Camila já nem se lembrava dos fatos que tanto a intrigaram. Uma jornada de trabalho estafante tem o poder de se sobrepor a intrigas e mistérios sem importância. Enquanto aguardava o elevador, atendeu a uma ligação em seu celular. Uma voz rouca trouxe Camila de volta ao mundo das ameaças: "Calcinha vermelha, hein...? Gostei, Camilinha. Mas ainda falta pagar a promessa". No mesmo instante em que Camila gritava o teledramático "Quem é você?!", a ligação foi interrompida. O tal porteiro, que na véspera dera a Camila o bloco e a caneta, abriu a porta do elevador, olhou desconfiado e disse ao ouvir a pergunta: "Dona Camila, sou eu, o porteiro Amarante, lembra de mim?" Camila murmurou um "boa noite, seu Amarante" e subiu, atônita, imaginando como é que o infeliz ficou sabendo? Será que alguma colega de trabalho... Quem sabe uma câmera escondida no banheiro feminino... Enfiou a chave na porta de casa e disse baixinho: "Ainda acabo num hospício..." O marido, que também chegara há pouco do trabalho, ouviu aquilo e concordou: "O trânsito a essa hora é mesmo uma loucura, amor".
Naquela noite, Camila considerou seriamente todas as possibilidades: antes de trocar de roupa, fechou as cortinas da sala e dos quartos para ter a certeza de que ninguém da vizinhança a observava; vasculhou o computador, atrás de uma nova mensagem; sem saber por quê, abriu a pasta do marido e revirou seus bolsos; perguntou à Conceição, sua empregada, se alguém a procurara, ninguém de amarelo, Ceição? Em seguida, trancou-se no banheiro à procura de alguma pista, talvez uma microcâmera camuflada, um buraco na parede ou no teto. Nada. Naquele dia, de novidade mesmo só a voz rouca comentando a sua calcinha vermelha. "Tarado! - Camila pensou - Deve ser um desses que andam atrás de fetiches..." Mas, e a promessa?
Contou para Juliana, a melhor amiga desde os tempos do colégio, que, para seu espanto, caiu na gargalhada: "Ô, Camila... Depois que lançaram a moda do cós baixo, todo mundo sabe a cor da nossa calcinha e às vezes até se tem ou não tem rendinha". Meio sem graça, Camila teve que concordar que a amiga tinha razão, "...mas e a promessa? Que diabo de promessa é essa que eu não me lembro de jeito nenhum?" Ouviu de Juliana: "Pague pra ver. Ou é alguém que tá de gozacão, tirando um sarro da tua cara, ou uma hora vai ter que revelar que dívida é essa que tá te cobrando".
Camila gostou da idéia, ia pagar pra ver.
Em casos assim, nem tudo acontece de acordo com a nossa vontade. Camila esperou em vão por algum sinal. Entrava e saía do computador, corria para atender o telefone. No trabalho, começou a olhar torto para alguns colegas de quem mais desconfiava. Domingo à noite, logo depois de ter colocado as filhas para dormir, o telefone tocou e o marido atendeu: "É pra você, voz de homem", disse de mau humor. No outro lado da linha, uma mulher avisava: "Seu marido anda impossível, Camila... Cada um cuide do que é seu", e desligou sem esperar perguntas nem respostas. É claro que a semente da desconfiança estava plantada e Camila, que de tola não tinha nada, rapidamente concluiu que o telefonema e a cobrança da tal dívida misteriosa deveriam estar intimamente relacionados. Contou ao marido o que se passava? Só comentou o telefonema, mesmo assim apenas a parte do "cada um cuide do que é seu...". O marido fez uma cara de quem não engoliu a história, uma voz de homem que se transforma em voz de mulher, e no final deixa um recado sem pé nem cabeça. Camila deu de ombros. Como disse Juliana, ia pagar pra ver.
No dia seguinte, logo pela manhã, a misteriosa ligação da véspera voltou à cena. O marido de Camila acusava o ex-noivo de sua mulher como provável responsável pelo "trote", se é que era trote. Camila respondeu que não devia nada ao ex-noivo, que não tinha feito nenhuma promessa a ele. O marido, é claro, quis saber: "Promessa? Que história de promessa é essa agora?" Só então Camila lembrou que o marido não sabia de nada a respeito do homenzinho de amarelo, nem do e-mail, tampouco dos outros telefonemas cobrando uma dívida misteriosa. Viu que não tinha outra saída a não ser abrir o jogo. Abriu. Contou tudo, menos a parte da calcinha, achou que seu marido ia subir pelas paredes se revelasse os detalhes. Lembrou-se das amigas de faculdade, que diziam: "Homem é tudo igual. Qualquer coisa que lembre sexo, senão for com ele é traição".
De nada adiantou esconder. O cara ficou uma fera do mesmo jeito: "Por que não me contou na hora em que aconteceu, Camila? Falou com mais alguém?" Camila achou melhor "confessar" que Juliana sabia de tudo, menos do telefonema da noite anterior, o tal em que a voz de um homem de repente se transforma em voz de mulher. O marido balançou a cabeça, olhou para ela com tristeza e disse: "Confia mais em Juliana do que em mim..." Não era uma pergunta, era um lamento.
Os dois se despediram meio friamente e cada um foi para o seu trabalho, pelo menos era o que Camila pensava.
À noite, o clima pesou ainda mais. O marido de Camila já não sabia se a atitude correta era ficar desconfiado ou preocupado com sua mulher. Foi direto ao ponto: revelou que dona Conceição andava muito esquecida, como era de se esperar para uma senhora da sua idade, e que não se lembrava de cobrador algum; o porteiro Amarante achava que dona Camila, com todo respeito, estava muito nervosa, contou a história do bloco e da caneta, disse que Camila não o reconheceu na porta do elevador, mas não viu ninguém de amarelo saindo do prédio, pelo menos não se lembrava de ter visto. O marido de Camila disse ainda que em conversa com Juliana soube de um cara misterioso que tinha o hábito de adivinhar a cor da calcinha que Camila estava usando, mas que ela mesma não viu bilhete algum, não leu e-mail nenhum, nada além do que lhe revelara a amiga de tantos anos. Depois, perguntou olhando nos olhos de Camila: "Você tá ficando louca, amor?"
Camila não estava louca, mas deu um soco na mesa que quebrou o vidro, cortou sua mão e assustou as crianças. Enquanto o marido procurava acalmá-la, Camila correu para o computador, atrás do e-mail cobrando a dívida. Abriu e fechou arquivos, revirou todas as pastas, pesquisou, fuçou, digitou... Nada.
Aquilo estava ficando cada vez mais estranho. E o marido ali, olhando para ela com aquela cara de pena. Difícil aguentar em silêncio, pelo menos até encontrar o bilhete do cobrador. Bilhete? Que bilhete?
Abriam-se para Camila dois caminhos a seguir: achar que aquilo tudo não passava de uma armação, envolvendo o marido e sabe-se lá quem mais; considerar a possibilidade da coincidência - esta última hipótese, difícil de acreditar, mas não impossível. Depois de muito chorar e garantir que não estava louca, apenas um pouco nervosa, acabou por adotar, inconscientemente, a primeira alternativa. Por dois singelos motivos: primeiro, todos sabem como homem é; segundo, também sabemos como é a mulher quando desconfia de um homem. Achou que foi o marido quem inventou toda a história, "inventou porque está se envolvendo com alguém", a mulher no telefone bem que avisou e ela ouviu direitinho, "cuide do que é seu", não estava ficando louca, ainda não. Juliana? Sua amiga apenas contara a verdade, coitada. Ou será que...
Naquela mesma semana recebeu umas fotos pelo correio. Seu marido e uma mulher, que Camila não conhecia, em atitudes digamos excessivamente amistosas. Na hora não disse nada, não pensou em pedir explicações. Guardou aquilo como quem esconde o coração ferido. Para ela, o quebra-cabeças já estava montado.
A gota dágua que entornou o caldo surgiu no momento em que Camila surpreende uma conversa ao telefone do marido com, pasmem, a própria mãe de Camila. Ficou um tempo ouvindo na extensão aquelas mentiras sobre seu estado preocupante, o nervosismo excessivo e fora de propósito, suas estranhas manias, entre elas a dívida que ninguém sabia qual era e um suposto mágico que adivinhava as cores de sua roupa íntima. Camila, em determinado momento, percebeu que sua mãe, no outro lado da linha, chorava ao murmurar: "uma menina tão inteligente..." Aquilo era demais, precisava pôr um ponto final na armação deslavada. Se queriam levá-la à loucura, pois muito bem, agora teriam motivos.
Acusou o marido de traidor, chamou a tal mulher que andava com ele de vagabunda, gritou que sabia que eles dois estavam por trás de tudo, chorou, se descabelou, ameaçou quebrar a casa inteira, pegou as crianças e levou para a casa da mãe, ela mesma, Camila, foi pedir asilo no apartamento de Juliana.
"Camila, você tem certeza? É isso mesmo que você quer, amiga?", Juliana perguntou depois de ouvir quinze vezes a mesma história. Camila disse que sim, é claro que sim.
Dormiram juntas, abraçadas, na cama de solteira de Juliana. Insegura, deprimida, Camila deixou que a amiga fizesse tudo que há muito tempo desejava. No dia seguinte, remexendo no armário da área de serviço, Camila descobriu um boné amarelo. Nesse mesmo instante, lembrou de algumas promessas de adolescente que tinha feito à amiga nos tempos de colégio. "Será?", pensou. Eram umas dez, dez e meia da manhã. Ainda não estava na hora de acordar Juliana, que dormia como um anjo em sua cama de solteira.
A VIDA E A VIDA DE CAMILA
Raiva, frustração, sede de vingança, sentimentos por muitos considerados perigosos e negativos, capazes de deformar a personalidade de alguém, quando combinados com amor-próprio, determinação e astúcia, também podem influir positivamente, ajudando a pessoa a vencer barreiras, a resistir aos tão famosos momentos de fraqueza e a encontrar o verdadeiro amor.
Camila nasceu, filha única de uma família de classe média, bem de vida. Pessoas honestas, conscientes, dedicadas a preservar a felicidade que sempre lhes sorriu, sem prejudicar quem quer que fosse. Camila teve, como se costuma dizer, tudo que precisava e queria da vida: estímulo da família , boas escolas, amigos divertidos, lazer à sua escolha, liberdade sem omissão. Cresceu, enfim, sem maiores traumas, nem mesmo o da superproteção. Sua mãe e seu pai viviam e a deixavam viver.
Namorou, sem compromisso. Achou engraçado descobrir que era possível sentir uma forte amizade e um relativo amor, aquele que em certa fase da vida não sabemos até onde vai, nem ao menos se vai ou se fica. Logo se cansou. Percebeu que não levava a nada sair hoje com um, amanhã com outro, depois de amanhã sozinha. No último ano da faculdade, ficou noiva. As dúvidas se dissiparam, um horizonte claro e promissor se abria para os dois. Como era de se prever, teve que ouvir das tias e amigas das tias as tradicionais e surradas expressões: "casal perfeito", "parece mesmo que nasceram um para o outro" e outras baboseiras do gênero. Camila sorria, compreensiva. Marcaram a data, distribuíram os convites.
Às vésperas do casamento, por uma feliz ou infeliz coincidência, na hora não sabia dizer qual dos dois adjetivos se aplicava melhor à situação, descobriu que sua melhor amiga também era a "melhor amiga" de seu noivo e mantinha com ele um relacionamento que ia muito além da amizade pura e simples. Em resumo, encontrou os dois sozinhos, abraçados e despidos no quarto do apartamento onde iria morar com o tal noivo, que um dia julgou amar loucamente. Ainda se lembra de ter ouvido a voz engasgada da ex-amiga balbuciando algo como "foi só a despedida de solteiro..."
Passou a noite inteira rolando na cama, chorando. O ódio tomou conta de todo o seu corpo e espírito. Mais tarde, sua mãe contou que ela chegou a ficar roxa, literalmente roxa de raiva. Quase de manhãzinha, Camila pensou: "Por pouco não mato os dois com um facão de cozinha". Em momentos como esse, tão nervoso e tenso, não é possível lembrar de coisas simples e práticas, tais como o fato de que não havia talheres e facões na cozinha do apartamento ainda desabitado. Faqueiros e louçaria ganham-se como presentes de casamento. Eis aí um detalhe que, portanto, não vem ao caso.
O tempo passou. Camila se formou em arquitetura, a ex-amiga sumiu, não se sabe se sozinha ou acompanhada do ex-noivo. Embora não tivesse uma índole rancorosa, era natural que Camila se fechasse para o mundo ou, pelo menos, para certas coisas do mundo. Ninguém dizia nada, e Camila preferia assim.
No dia em que completou vinte e cinco anos sentiu que toda a sua vida prendia-se ao passado. Embora trabalhasse num escritório de arquitetura com projeção internacional, ainda que recebesse diariamente o carinho de sua família, sempre presente, mesmo assim Camila julgou que estava na hora de mudar, enterrar o passado de sofrimentos e sair em busca de uma vida realmente nova.
Foi o sinal que seu chefe no escritório esperava para inicar a corte. Primeiro convidou-a para uma ida juntos à Casa Cor; depois, uma peça de Ibsen; a sinfônica no Municipal, o último filme de Almodóvar. Quando Camila percebeu, já eram mais do que simples colegas de trabalho.
Como não queria correr os mesmos riscos do outro noivado, Camila sondou, jogou verdes, espionou, revirou bolsos e gavetas, testou o namorado de todas as formas possíveis e imagináveis. Parece que não havia como errar: o rapaz era atencioso, cortês, apaixonado e, o que era mais importante de tudo, fiel. Camila pensou em pedir a uma amiga que se insinuasse para ele, mas, felizmente, desistiu a tempo: "...assim já é demais", pensou.
Dessa vez não houve noivado. Marcaram a data e distribuíram os convites. As velhas tias nada disseram que lembrasse a euforia do primeiro noivado. Apenas uma delas perguntou baixinho, no ouvido de Camila: "Você tem certeza que está casando por amor, minha filha? Se não for, vai ser a pior coisa que já fez na vida".
O tempo voa quando se é feliz. Veio a primeira filha, depois mais uma menina. Seu antigo chefe no escritório, agora um marido apaixonado, mostrava-se sensível a tudo que a mulher desejava. Viagens, presentes, lembranças, novidades... Como nada na vida é perfeito, às vezes pensava por que não conseguia desfrutar com o homem que amava intensamente o prazer a dois que tanto desejavam, tal como sempre acontecia com o ...? Mas, para quem possui uma vida atribulada e repleta de atividades, não é difícil tirar essas coisas da cabeça.
Foi para sair um pouco da rotina que, na última sexta-feira de dezembro, quase Ano Novo, os dois resolveram esticar em uma luxuosa casa noturna recém-inaugurada. Beberam, dançaram, sorriram, se beijaram como dois namorados. A caminho do toillete, Camila sentiu uma leve pressão em seu ombro direito, voltou-se para ver o que era, lá estava ele, o cínico, o imoral, o atrevido do seu ex-noivo, aquele mesmo que a trocara pela ex-amiga nas vésperas do casamento, magoando-a como poucos homens conseguem magoar uma mulher. Reconheceu-o de imediato. Afastou-se rispidamente e por pouco, por muito pouco, não imita as grandes atrizes de Hollywood, desferindo naquela face asquerosa uma sonora bofetada. Para evitar o escândalo, apenas murmurou algumas ofensas e grosserias, terminando com a previsível pergunta: "Como é que você ainda tem a coragem de vir falar comigo?!"
O encontro morreu ali mesmo. Camila não disse nada ao marido, temendo as consequências. Escondeu como pôde os sinais de irritação, simulou um mal-estar e pediu para ir pra casa, no que foi prontamente atendida, como sempre.
No dia seguinte, um pouco antes do jantar, recebeu o telefonema de uma antiga colega da faculdade, que há tempos não via nem tinha notícias. Depois das perguntas rotineiras sobre a vida, o trabalho, a saúde, a família, etc., qual não foi sua surpresa ao ouvir a amiga perguntar: "E aí? Ele te procurou afinal?" Com toda certeza, "ele" era nada mais, nada menos do que o ex-noivo, o crápula que tivera a audácia de se dirigir a ela na noite anterior. Camila permaneceu em silêncio enquanto ouvia a amiga contar o quanto "ele" estava arrependido e sofrendo, como "ele" queria tanto se desculpar pelo erro que cometera, embora soubesse que não merecia o seu perdão. Pensou em desligar o telefone sem ao menos se despedir, mas antes que o fizesse ainda ouviu a outra dizer: "Ele voltará a te procurar. Se achar que deve, converse, ouça o que ele tem a dizer, não custa nada".
Era muita ousadia. Parecia um plano bem orquestrado para arruinar seu casamento, sua vida, e levá-la de volta aos tristes tempos de inércia e isolamento. Não podia contar a seus pais, não achava justo envolvê-los nesta nova sordidez; não se lembrava de nenhuma amiga, íntima o bastante para desabafar. Seu marido? Qual seria a reação se soubesse de tudo? Resolveu permanecer calada, guardando para si a revolta, o ódio, a repulsa, sentimentos tão fortes que chegavam a apertar e a oprimir seu coração.
Na terça, saiu para as compras e o encontrou do outro lado da rua. Decidiu que estava na hora de pôr um fim naquela triste história. Deu a ele o endereço de um restaurante no outro lado da cidade e pediu que a esperasse por volta das cinco da tarde.
Quando o encontrou, já estava decidida a escutar no mais absoluto silêncio tudo o que ele tinha para falar, precisava manter o controle, antes de explodir e deixar que a raiva acumulada durante tanto tempo viesse à tona. No início, achou que não ia aguentar sem agredi-lo fisicamente, mas ouviu as desculpas, as explicações esfarrapadas, considerou que o sujeito era ainda mais sórdido do que parecia por insinuar que a maior parcela de culpa cabia à ex-amiga de Camila, que o seduzira. Depois o canalha revelou que continuava sozinho e apaixonado por Camila, que seria para sempre a única mulher de sua vida. Contou que assistiu incógnito ao casamento, que descobriu onde ela morava, onde trabalhava, o carro que dirigia... Disse tudo isso e mais umas frases que Camila não ouviu. Em seguida, chorou na mesa do restaurante, àquela hora inteiramente vazio.
Camila nem por um momento sentiu pena do infeliz. Quando chegou sua vez de falar, foi calma, fria. Com a voz suave e segura chamou o sujeito de crápula, covarde, mentiroso. Sem se alterar, disse tudo o que estava guardado há tanto tempo. Humilhou o ex-noivo, chegou a dizer que uma pessoa como ele, capaz de fazer o que fez, não merecia sequer continuar vivo e que por pouco ela não matara os dois naquele dia em que descobrira a traição, no que havia um fundo de verdade. Finalmente, exigiu que ele nunca mais a importunasse, que jamais aparecesse de novo na sua frente. Levantou-se para ir embora, mas nesse momento ele tocou seu rosto de leve e tentou passar a mão nos seus cabelos. Camila não pensou duas vezes e esbofeteou o canalha, com toda a força que a ira pode dar a alguém que durante tanto tempo rumina a vingança.
Contudo, não era a atriz hollywoodiana que encarnava, não era a vontade de agredir e humilhar ainda mais um pobre-coitado que rastejava arrependido, não era sequer o desejo incontrolável de externar todo seu ódio, pois este já tinha sido expresso em palavras duras, cruéis, infames. Era o que afinal?
Chegando em casa, Camila beijou as filhas, deu orientações à empregada para o jantar e foi tomar banho. Enquanto ensaboava o rosto para ver se tirava qualquer vestígio da mão daquele homem, Camila percebeu o quanto estava difícil, quase impossível se controlar. Chorou, soluçou, puxou seus próprios cabelos, chegou a socar os ajulejos do box. A água quente escorria sobre seu corpo. Fechou os olhos enquanto sentia um estranho desejo tomar conta de tudo. Abriu-se novamente para algo que há muito tempo andava esquecido. Não se conteve. Lá dentro dela, uma voz rouca, masculina, repetia baixinho: "Vagabunda, vagabunda..."
Naquela noite e nas subsequentes, Camila se entregou por completo ao marido. Beijou e foi inteiramente beijada, se contorceu na cama, gemeu, gritou uma, duas, várias vezes, cada vez com maior intensidade. Nunca na vida sentira tanto prazer com o ... homem que amava.
Era isso que queria? Foi isso que lhe ensinaram? E a voz lá dentro voltava a acusar. "Pouco importa...", pensou. Camila jamais imaginara que a felicidade não pede licença para entrar. Sabia o que estava para acontecer, mais dia menos dia. Não se sentia culpada nem tinha do que se arrepender.
Alguns meses depois, enquanto Camila e o ex-marido brigavam na Justiça pela guarda das filhas, a velha tiazinha ainda comentou: "É no que dá casar sem amor".
O AMOR E O AMOR POR CAMILA
Na audiência de conciliação, que obrigatoriamente antecede a separação legal e o divórcio, Camila teve que aparentar uma tranquilidade que nem de longe possuía. No seu íntimo, os sentimentos que predominavam eram o medo, a vontade de desaparecer, sair de cena, esquecer aquilo tudo. Mas... sempre existe um "mas", a guarda das filhas estava em disputa e nenhum juiz do mundo perdoa a mulher que trai e ainda por cima demonstra algum tipo de fraqueza ou covardia. Arrependimento? Pode ser bem visto, mas isso ela ainda não sentia.
"Não é o momento para se arrepender", Camila pensou. Mais tarde talvez? Quem sabe, quem sabe...
O fato é que doeu-lhe encarar o homem com quem ainda era casada. Não havia ódio nem sede de vingança em seu olhar, não era isso que lhe incomodava. O que era então?
Depois que Camila saiu de casa e obteve a guarda provisória das crianças, sua vida passou por uma verdadeira reviravolta. A tranquilidade cedeu lugar à correria; a fartura foi substituída por uma certa privação nada romântica; a monotonia saiu de cena para dar espaço a um inegável nervosismo. Felizmente, a frieza no sexo foi trocada por ... uma outra frieza, que se instalou com o passar dos dias, talvez das semanas, ou dos meses...
"Com o tempo, é natural perder o interesse. E isso acontece com mais frequência para as mulheres", Camila leu numa revista feminina, dessas que discutem o amor, o sexo e suas variantes, da primeira à última página. Será?
O marido, em vias de se tornar "ex", continuava com aquele seu olhar distante. Não se lamentava nem se sentia vítima de coisa alguma, aliás não agiu dessa forma em nenhum momento, bem ao contrário do que Camila esperava e temia. Na frente do Juiz da Vara de Família ele teve o bom senso e a coragem de reconhecer que as meninas ficariam melhor na companhia da mãe. Camila pensou que talvez ele já tivesse um novo amor, uma mulher nem um pouco disposta a aturar as filhas dos outros, quem sabe não foi isso que pesou na decisão do "ex". Pergunta daqui, sonda, investiga dali... convenceu- se que não havia ninguém, nem em projeto. A tia quis saber: "Por que tanto interesse, Camila? Tá arrependida da separação, minha filha?" Não estava, ou melhor, vai saber se estava ou se não estava...
O fato é que as escolhas que fazemos na vida estão sempre em julgamento. Camila e aquele que um dia foi seu noivo, o mesmo que a traiu com sua melhor amiga, resolveram durante uma conversa amigável que morar juntos, dividir o mesmo espaço, era coisa para o futuro. Alguém que naquele momento olhasse a cara dos dois poderia perguntar: "Que futuro?" O ex-noivo, que agora se candidatava a amante eventual, talvez não tivesse fôlego como personagem na vida de Camila, sequer para se transformar em amante fixo, que dirá em marido ou companheiro. Além disso, havia as meninas, as famílias, os amigos... Os dois não se conheciam a não ser por um desejo recém-renascido. Quem poderia dizer que estariam destinados um ao outro? Havia, enfim, muitas dúvidas, era o que mais havia.
Aos sábados, pela manhã, bem cedinho, o pai levava as meninas. Trazia de volta no dia seguinte, depois do almoço. No início, Camila gostou da "liberdade" novamente conquistada. Saía com o ex-noivo, voltava de madrugada, às vezes no domingo de manhã. Um dia, surpreendeu-se pensando que até a liberdade vira rotina e começa a pesar além da conta. Em conversa com uma de suas melhores amigas no trabalho, Camila disse: "Não quero ser um mero objeto, alguém que simplesmente reage às coincidências da vida". A amiga desconfiou de quais coincidências Camila estava falando, mas preferiu não dizer nada.
Em setembro, no domingo que antecedia o aniversário da filha mais velha, o ex-marido de Camila voltou um pouco mais tarde do que costumava, com as duas meninas e várias sacolas de roupas e brinquedos. Pediu desculpas, Camila sorriu ao ouvi-lo dizer que a indecisão para escolher vestidos, sapatos e blusas acompanha as mulheres desde a mais tenra idade. Perguntou se ele não queria entrar para um café. O ex quis saber se ela estava só. Camila disse que sim, que estava quase sempre só. Depois ficou pensando em suas palavras, mas não se corrigiu. Conversaram, Camila contou como estava se saindo em seu novo emprego. O ex, que tinha sido seu chefe, a encorajou, disse que Camila era sempre útil em qualquer equipe. Camila agradeceu, olhou para o ex com ternura e recebeu de volta o mesmo carinho.
Ao contrário do que muitos que acompanham estas linhas devem estar pensando, não houve nada, nada de concreto entre os dois naquele fim de tarde. Mas foi esse "nada" que seduziu Camila e a fez apagar o passado de suas lembranças. Pode acontecer com qualquer um de nós: de repente, sem nenhum motivo lógico, o passado sai de cena para dar lugar ao futuro, que, como todo futuro, não passa de um sonho em nossa cabeça e às vezes no coração também.
Mais tarde, quando as meninas já estavam dormindo, o ex ligou para saber se estava tudo bem. Mas não era seu ex-marido e sim o ex-noivo que viajara a trabalho. Camila julgou ter ouvido algumas vozes ao fundo, interferindo na ligação, mas o ex-noivo disse que era uma turma de turistas que acabara de chegar ao hotel em que se hospedara, nada mais. Perguntou de novo se estava tudo bem, Camila respondeu que sim, um "sim" sem muita convicção.
Durante a semana só uma coisa a incomodou: por que as pessoas crescem e diminuem em importância na vida das outras? Imaginou um palco de teatro, onde a luz ora incide sobre um dos atores, ora sobre outro. O que foi momentaneamente esquecido será apagado e sairá de cena, ou ficará na penumbra. Por que há de ser sempre assim?
Na sexta à noite, bem tarde, ligou para o ex-marido com a desculpa de saber se ele viria pegar as crianças no dia seguinte, como era seu direito. Ele disse que sim, claro que iria. Conversaram, contaram coisas que as crianças faziam, riram de algumas perguntas. Ao final, quando o ex-marido perguntou se poderia passar a noite em seu apartamento, Camila teve que engolir em seco para dizer: "Não... ainda não, acho melhor". Ele insistiu, ela quase cedeu. De madrugada, remoendo a solidão, pensa ter ouvido novamente aquela voz masculina sussurrando: "Vagabunda, vagabunda...". Camila era uma mulher que sabia ser desejada.
No dia seguinte de manhã, bem cedinho, a misteriosa mulher ligou para ameaçar: "Cada uma cuide do que é seu". Camila não entendeu por quê, mas nessa hora lembrou que Juliana andava sumida...