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Parece um filme que a gente entra no meio: estavam os dois na sala vendo uns vídeos do Ballet Bolshoi, ouvindo uns cds de Duke Ellington, uma coisa assim que ninguém dá a mínima hoje em dia.
Um dos quatro telefones da casa toca sem piedade. Marcinha começa a se levantar, mas para no meio do caminho, entre a poltrona de veludo e as pernas esticadas do marido. Ao descobrir que o som era do celular do Teixeira. Diz para ele: “Levanta, cara... é o teu!” Mas Teixeira fez um gesto de desprezo, de cansaço, algo que soou como: ”Pega lá, amor. Atende você...” Tava um calor infernal.
Ela atendeu, não porque fosse obediente, mas porque não estava a fim de arrumar encrenca à toa. Mal chegou a dizer “alô”, e já desligaram no outro lado da linha. Teixeira, é lógico, perguntou quem era; Márcia Regina respondeu que não sabia, que tinham desligado na sua cara.
O marido, que não estava devendo nada naquela época, disse: “O número taí na memória... Liga pra saber quem é, pô...” Márcia não pensou duas vezes, ligou mesmo. Uma voz de mulher atendeu suavemente, ela perguntou quem era e a voz respondeu: “É você, Marcinha? Aqui é a Paula, a Paulinha... Não tá me reconhecendo?”
Parece que Márcia achou meio esquisito: a Paula Cordeiro, colega de faculdade e sua amiga de tantos anos, ligando pro Teixeira, à noite, assim sem mais nem menos...?!
Disfarçou como pôde: “Oi, Paulinha... Como vai você, querida? Tô tê ligando porque tocou o celular do Teixeira, ele pediu que eu atendesse...”
A amiga interrompeu dizendo que já sabia, que ela mesma tinha ligado para aquele número, mas achava que era do celular dela, Marcinha: “Assim que você atendeu caiu a ligação...Vê que confusão, menina...?”
Falaram umas bobagens, riram muito... Teixeira ficou na mesma, assistindo aos movimentos do Bolshoi, no compasso do mais puro e negro jazz.
Antes de dormir, Márcia ainda falou: “Paula mandou um beijo pra ti”. Teixeira quis saber: “Que Paula?!” Sua mulher quase que soltou um “Não seja cínico, seu cachorro!”, mas se controlou e teve a maior calma para explicar que era a Paula Cordeiro, sua amiga de infância, a mulher que tinha ligado para ele no celular. Teixeira ficou olhando, meio abestalhado, com aquela escova de dentes presa no canto da boca.
Não há como provar, mas parece que Márcia pensou: “Safado! Você me paga! Nem sabe disfarçar, e ainda por cima com essa espuma gosmenta saindo boca afora...”
Dois dias antes tinham brigado feio. Teixeira disse ter surpreendido sua mulher na rua, saindo de um shopping e conversando com um sujeito alto, de terno marrom, moreno, cabelos pretos, queixo quadrado, olhos... Bem, isso ele não viu. “Que sujeito era aquele?!”
A briga acontecera à noite, em casa, quando Marcinha jurou de pés juntos que não tinha saído de shopping coisa nenhuma, muito menos acompanhada por um sujeito de cabelos pretos, que terno marrom que nada...Teixeira, evidentemente, não se conformou. Disse que ela estava mentindo, falou o nome do shopping, mencionou as horas com precisão, comentou que estava um sol de rachar, disse até que tinha um guarda se abanando com o boné. Márcia se defendeu como pôde. Seu último argumento: “Como é que uma pessoa passa de carro e consegue reparar em tantos detalhes assim?” Teixeira, conforme veio, devolveu: “Quem foi que te falou que eu tava de carro?” Ficou aquele clima... sabe, né? Teixeira achando que tinha ganho a briga, Marcinha com medo do que poderia acontecer. O marido não era chegado à violência, mas nunca se sabe... Um homem que se sente traído é sempre imprevisível.
Na semana seguinte, quando a história do celular já estava de certa forma esquecida, Márcia Regina ligou para Paula e marcou um encontro. Sabia que estava correndo um risco, mas precisava fazer aquilo, com urgência.
Sentaram-se, uma diante da outra, na mesa de uma confeitaria perto do escritório de Paula Cordeiro. Márcia foi logo dizendo que ia abrir o jogo, mas que ela, Paulinha, tinha todo o direito de não participar daquilo que, no seu entender, ia salvar a sua vida e também seu casamento.
Como era de se prever, a amiga arregalou os olhos e esteve a ponto de pedir desculpas e se levantar da mesa, mas, sabe como é, certas tentações parecem incontroláveis, a curiosidade feminina é uma delas.
Eis, em poucas e singelas palavras, o que disse Marcinha:
“Teixeira anda meio desconfiado, você entende? Não que ele tenha razão pra isso, não tem mesmo... Mas sabe como é, aquele lá quando põe uma coisa na cabeça, não há Cristo que o faça mudar de idéia. Em resumo, meu casamento tá ameaçado porque ele diz que me viu saindo de um shopping ao lado de um homem de terno marrom, vê se pode...”
Paula Cordeiro custou um pouco a entender onde a amiga queria chegar. Ouviu as desculpas, as negativas, os temores... O que Marcia Regina queria afinal?
“Eu sei que você sempre foi minha amiga e nunca teve intimidades com o Teixeira... Aliás, aquele lá é jogo duro... Eu queria armar um flagra, entendeu? Uma situação que provasse ao Teixeira que uma pessoa pode ser inocente e parecer culpada aos olhos dos outros ... Tive essa idéia depois que o celular tocou por engano, lembra, Paulinha?”
Paula Cordeiro, de boba não tinha nada:
“Você quer que eu e o Teixeira... Nós dois... é isso?”
Marcinha respondeu que sim, que era mais ou menos aquilo que a amiga estava pensando:
“Tô querendo pegar o Teixeira numa situação que ele perceba que as aparências enganam, entendeu? Aí, quem sabe, ele pára de pegar no meu pé e acredita em mim de uma vez...”
Marcinha continuou dizendo que só confiava nela, Paulinha, porque ela sim era sua amiga de verdade, e coisa e tal...
Dois anos antes, o casamento de Márcia Regina e Teixeira estava por um fio. O cara chegava em casa tarde da noite, com as desculpas mais esfarrapadas que um sujeito pode arrumar: pneu furado, reuniões de emergência, até assalto ele inventou... A mulher não engolia aquilo. Disse pra si mesma: “Ah, safado... Se você pode, eu também posso...” e passou a chegar mais tarde ainda. Vendo que a coisa caminhava para o litígio, Paula Cordeiro resolveu dar um basta e acabar com aquela encrenca indigesta. Por mais que doesse, ia mandar o amante de volta para a mulher: “Teixeira, chega! Volta pra sua mulher.... Marcinha não merece isso que estamos fazendo...”
Teixeira relutou, é claro... Mas quando uma mulher está decidida a não fazer alguma coisa, não há homem que a convença, pelo menos não só com belas palavras e juras de amor eterno.
O tempo passou; Teixeira esqueceu. Paulinha teve uma recaída naquela noite em que ligou pro celular do ex-amante e logo se arrependeu amargamente, assim que ouviu a voz de Márcia Regina... tudo por culpa de uma solidão extemporânea.
Agora estava ali, sem saber o que fazer. Não podia trair o Teixeira e armar uma arapuca daquelas; mas também não podia deixar a amiga na mão, até porque ela parecia desconfiada... Quem sabe não era só um sentimento de culpa que Paula Cordeiro não conseguia controlar...
Resolveu não mandar bilhetes, não usar o telefone, nem o celular, nem o computador ou qualquer coisa que deixasse rastro. Foi direto ao trabalho do Teixeira, sem avisar nem nada.
Teixeira dava aulas. Quando viu Paulinha na porta da sala, parou no meio de uma frase, verdadeira “boutade “, um achado sobre a proximidade entre céticos, sofistas e cínicos nos dias de hoje, principalmente entre a classe política brasileira. Na turma, ninguém dava a mínima – para a tese, é claro. Parada na porta e recebendo todos aqueles olhares masculinos, Paulinha se sentiu lisonjeada, tanto que olhou para a barriguinha de Teixeira com ar de nojo.
Não é necessário descrever em detalhes o teor da conversa que os dois tiveram. Paula Cordeiro explicou a situação ao seu ex-amante Teixeira, pedindo uma opinião, um conselho, um caminho que pudesse seguir, sem traí-lo, mas também sem magoar a amiga, nem deixá-la ainda mais com “a pulga atrás da orelha”.
Teixeira se sentiu o “corno-manso” em pessoa. Esbravejou, socou o tampo da mesa da cantina, xingou Marcinha de tudo que é nome. Depois elogiou Paula Cordeiro, disse que ela estava linda naquele terninho verde (era azul...) e pediu um beijo. Paulinha respondeu: “Pára, Teixeira... Vamos resolver essa encrenca de uma vez por todas...”
Doze anos antes, Paula Cordeiro e Márcia Regina eram amigas inseparáveis. Estudavam na mesma faculdade e frequentavam o mesmo curso, que tinha em Teixeira um de seus mais brilhantes professores-assistentes. As duas se interessaram ao mesmo tempo, mas não com a mesma desenvoltura: Márcia Regina foi mais rápida e insinuante, tanto que acabou casando com Teixeira. Paula Cordeiro fez pós, abriu o escritório, ganhou dinheiro e o resto a gente já sabe.
Tudo isso lhe veio à cabeça como um filme que se rebobina em velocidade máxima, no tempo do vídeo-cassete, é claro. Teixeira não soube dizer que caminho Paula Cordeiro deveria seguir. Movida por todas as lembranças involuntárias, e ainda com o beijo que Teixeira pedira ecoando em seus ouvidos, Paulinha disse: “Passa lá em casa hoje à noite... Vamos ver se a gente encontra a solução.”
Teixeira topou, ora se não... Foi até a porta do prédio da amiga, mas não subiu. Do carro, ligou para o celular de Paulinha e explicou que era melhor não dar as caras, o porteiro poderia reconhecê-lo. Paula Cordeiro, que já estava descalça, de shortinho e camiseta, não gostou da idéia de se arrumar novamente e sair ao encontro de Teixeira, mas não havia alternativa.
Meia hora depois lá estava ela pedindo desculpas pelo atraso e perguntando a Teixeira se não era perigoso conversar no carro. Teixeira concordou e propôs que fossem a um lugar reservado, um motelzinho pequeno e discreto, na saída da cidade: “Um amigo me indicou faz tempo...”
É claro que Paula Cordeiro, que de boba não tinha nada, não acreditou naquela história de amigo que indica motel, assim sem mais nem menos. Mas o momento não era de inquéritos e cobranças: “Tudo tem seu tempo...”, pensou ela.
Resolveu se fazer de difícil: “Teixeira, acho que não convém reviver um passado que já nos trouxe tantos problemas...”
Teixeira já esperava por isso, “nenhuma mulher aceita de cara, nem a nossa...”, tanto é que já estava com a resposta na ponta da língua: “Quem falou em reviver o passado, Paulinha? Vamos apenas conversar. Não importa se é um quarto de motel, vamos apenas conversar... Não é você quem está querendo descobrir uma saída?”
Foram. Teixeira quis abrir uma champagne pra comemorar. Paulinha perguntou, com a cara mais cínica do mundo: “Comemorar o quê, Teixeira?”
Teixeira tirou a camisa e sentou no chão, encostado no frigobar. Paula Cordeiro ligou pra recepção e deu o maior esporro porque o ar não funcionava. Teixeira disse: “Não liga pra isso... Tem ventilador de teto.” Depois perguntou se Paulinha não queria tomar um daqueles banhos relaxantes na hidro, ela que gostava tanto... E assim foram perdendo a cerimônia, esquecendo o falso motivo (ou o verdadeiro pretexto) que os trouxera até ali.
Duas horas depois o telefone toca. Os dois deram um pulo na cama, mas era uma voz de homem avisando que a “diária” tinha chegado ao fim.
No caminho de volta, Paula pergunta: “E agora? O que é que eu faço com a Marcinha?” Teixeira deu de ombros, largou o volante e abriu os braços. Paula Cordeiro cobrou: “Você que é o marido não sabe? Eu é que vou saber?”
Antes de deixar Paulinha a duas quadras do prédio em que morava, Teixeira disse que já tinha encontrado a solução, mas preferia pensar um pouco mais. “Amanhã, entre meio-dia e uma hora, passo no teu escritório. No almoço, te conto tudo...”
Despediram-se só com um beijinho no rosto, pra não chamar a atenção. Na calçada, Paula Cordeiro ajeitou o vestido e Teixeira pensou: “Por que será que toda mulher tem que puxar a calcinha quando volta de um motel?”
“Isso são horas?! Por onde o senhor tem andado, professor Carlos Teixeira?” Márcia não era mulher de deixar barato os deslizes do marido. Teixeira não deu a mínima, disse qualquer coisa como: “Ainda não engoli aquela história do homem de terno marrom, dona Márcia... Pode ir tirando o cavalinho da chuva...”
Depois explicou que tinha sido eleito para o comitê de greve e que dali por diante talvez começasse a chegar cada vez mais tarde em casa. Márcia Regina pôs as mãos na cintura e soltou um “Ah, é?!” tão agudo que ela própria se assustou. Teixeira foi tomar banho e ficou tudo por isso mesmo.
Três meses antes, Teixeira também estava no banho, quando o porteiro do prédio avisou Dona Márcia que tinha um sujeito lá embaixo querendo entregar um convite em mãos. Marcinha perguntou que convite era aquele, mas o porteiro era meio surdo e deixou o visitante subir pelo elevador de serviço. Márcia Regina ainda estava de robe. Entreabriu a porta e recebeu o convite das mãos do homem de terno. Disse duas ou três frases espirituosas, sorriu e agradeceu a atenção, sempre olhando para trás, na direção do banheiro. Teixeira tinha o hábito de cantar uma ária e demorar demais no banho. Nessa manhã, Márcia Regina não reclamou.
Paula Cordeiro estava sozinha no escritório quando Teixeira deu duas batidinhas, empurrou a porta, meteu a cara sorridente e perguntou: “Posso entrar?”
Almoçaram ali mesmo, na mesa de Paulinha: dois sanduíches do Bob’s, um suco de laranja, sem gelo e sem açúcar, e uma coca-diet. Como sempre, Teixeira achou que a ocasião merecia algo especial, mas Paulinha usou seu senso prático: “Pára com isso, Teixeira.... Vamos ao que interessa.”
Em brevíssimas palavras, eis o que a empresária Paula Cordeiro e o professor Carlos Teixeira combinaram:
Teixeira disse que Paula ia ter que inventar umas desculpas e cozinhar o galo com Marcinha.
Paulinha disse que estava bem, mas queria saber como é que se cozinha o galo com uma mulher nervosa e desconfiada.
Teixeira pediu que ela inventasse alguma história porque ele tinha contratado um detetive particular para seguir Márcia Regina vinte e quatro horas por dia.
Paula perguntou por que o detetive.
Teixeira disse que tinha os seus motivos. Por enquanto, o importante era cozinhar o galo.
Nessa mesma noite, Paulinha recebeu em casa
um telefonema de sua amiga e rival. Seguiu a orientação de Teixeira e disse, como uma bela atriz: “Marcinha, pode contar comigo. Tô preparando tudo direitinho pra não dar errado. Quando for a hora eu te aviso, querida...” Falava baixinho como para demonstrar que o segredo deveria ficar só entre elas duas.
No final do dia seguinte, Teixeira recebeu o primeiro relatório do tal detetive particular: sua mulher estava de fato se encontrando às escondidas com um elemento alto, moreno, cabelos pretos, queixo quadrado, olhos castanhos e de terno marrom. O sujeito era sócio de uma loja no shopping próximo ao apartamento de Márcia Regina e Carlos Teixeira. Tinha pinta de ator italiano e costumava fazer promoções nas redondezas. O detetive relatou ainda que Marcinha e o elemento se beijaram com entusiasmo descabido no interior do automóvel que pertencia ao elemento, estacionado na garagem do último piso do shopping, um Ford Focus, ano 2.004, placas...
Teixeira não sabia se xingava a mulher ou se despedia o detetive. Para ele, era insuportável conviver com uma só traição e tantos detalhes...
Na primeira oportunidade contou tudo a Paula Cordeiro. Chorou, arrancou os cabelos, disse que ia matar a puta... Paulinha pediu que Teixeira falasse mais baixo porque alguém podia ouvir as ameaças e, se Márcia Regina viesse a morrer, ele, Teixeira, estaria encrencado.
Teixeira parou um pouco de chorar e perguntou se Paulinha toparia matar sua mulher – a bandida, a despudorada, a .... Ao que Paula respondeu indignada: “Tá maluco, Teixeira? Por que iria eu matar a pobre da Márcia? Não foi em mim que ela pôs os chifres....” Aí Teixeira começou a chorar de novo, a arrancar o resto de seus cabelos, a dizer que ele sim é que ia se matar... Chegou a dar uma bofetada no próprio rosto e a se xingar com raiva: “Cornuto! Maledeto...” Paulinha quase perguntou se Teixeira era filho de italianos, mas teve medo da reação do amigo e amante, agora em sua versão de corno-desesperado.
Quinze dias antes, quando a tragédia ainda estava em gestação, Paula Cordeiro recebeu pelo correio um convite com direito a um “Superdesconto de 30% na apresentação deste”.
Na hora nem ligou, mas agora, depois que Teixeira fez todo aquele escarcéu por Marcinha, resolveu espairecer um pouco, pôr as idéias em ordem... Para isso, nada melhor do que um footing no shopping, com direito a 30% de desconto para pagamento à vista. Foi lá que conheceu um vendedor insinuante, queixo quadrado, beleza exótica, com pinta de ator italiano. “Corno é que não deve ser...”, Paulinha pensou com segundas intenções.
Depois de uns dias no mais absoluto silêncio, Teixeira afinal tomou vergonha na cara e armou o barraco em casa. Surrou Márcia Regina, xingou, chamou de puta, cadela vadia, vagabunda, messalina... A mulher, em vez de chorar e pedir socorro, enfrentou Teixeira de igual para igual, chamou de traidor, corno, safado... Até “broxa” ouviu-se nos corredores. Lá pelas tantas, a vizinhança organizou um comitê de apaziguamento e ameaçou chamar a polícia se o professor Teixeira não parasse com os palavrões: “Tudo bem que bata... Ela não vale nada mesmo, todo mundo sabe. Mas a uma hora dessas ficar berrando nomes... aí também já é demais!”, disse o síndico.
Teixeira arrumou sua roupa, seus livros, empacotou o computador e se mandou. Preferiu deixar o apartamento de mão-beijada para a “sem-vergonha da ex-Marcinha” do que ter de encarar os vizinhos no elevador todas as manhãs.
Não tinha para onde ir, porque nunca havia pensado seriamente na hipótese de sair de casa, muito menos para sempre. No carro, enquanto terminava de preparar a aula sobre a convergência lógica entre cínicos e céticos, achou que Paulinha (por que não?) podia ser uma saída honrosa. Ligou e ouviu: “Nem pensar, Teixeira, nem pensar... Por várias razões, a primeira é que o apartamento entra em obras amanhã mesmo; a segunda é que pretendo viajar, Teixeira... Tô exausta; a terceira ...” Teixeira não deixou Paulinha completar o rosário de desculpas. Disse que estava bem, que não fazia mal, que ele ia para um hotel, ou quem sabe para um motel, e desligou o telefone meio abruptamente.
Sete anos antes, quando Paulinha saiu da casa dos pais para viver sua vida, lembrou que Teixeira e Marcinha podiam ser fiadores do apartamento que pretendia alugar. Teixeira não recusou diretamente, mas disse que Márcia Regina jamais assinaria a fiança, ainda mais porque Paula Cordeiro naquela época nem emprego tinha.
Agora, balançando distraída o telefone na mão, pensava: “Essa vida é engraçada... As pessoas esquecem rápido as sacanagens que fazem com os outros”.
Por falar em esquecimento, Teixeira passou o fim de semana na casa da praia, esquecido de tudo e de todos. Desligou o celular, não viu TV, não ouviu rádio... Quando voltou na segunda-feira, deu de cara com o detetive na porta da faculdade. O cara não tinha vindo cobrar, mas Teixeira puxou o talão de cheques e disse: “Não preciso mais dos seus serviços. Quanto é?”
O detetive, que podia ser tudo, menos um profissional relapso, sorriu: “Engano seu, professor, engano seu... O mundo dá muitas voltas e quando a gente menos espera, olha a porta de novo escancarada pra quem quiser entrar”.
Teixeira nem teve tempo de dizer que não entendera a metáfora. O detetive, seu contratado, completou: “Se quiser compreender o que estou falando, voe até o apartamento da sua, digamos, amiga Paula Cordeiro e tudo se esclarecerá”.
Os quinze minutos mais longos na vida de uma pessoa podem ser passados em cima ou embaixo de alguém, à beira de um precipício ou até dentro de um carro, preso a um engarrafamento imaginário. Tudo depende das circunstâncias... Teixeira vivenciou essa última alternativa. Vinha ainda sem um quadro formado do que poderia encontrar, mas sua intuição lhe dizia que o detetive tinha descoberto algo sujo e inconfessável. O que seria?
Largou o carro em fila dupla e seguiu direto para o apartamento de Paulinha. No elevador já começou a ouvir a gritaria. Depois, na porta, escutou Paulinha aos berros: “Sua cadela! Deixou o corno do Teixeira pra me roubar o Santini... Isso não vai ficar assim.”
Não esperou a resposta, empurrou a porta, que estava apenas encostada, e deu de cara com Paula Cordeiro e Márcia Regina em luta corporal. No canto da sala, encolhido, portando uma ridícula cueca samba-canção e um paletó marrom em cima da pele, lá estava o queixo quadrado, moreno, cabelos pretos, olhos... Bem isso não interessou nem um pouco.
Teixeira deu um urro animalesco. As duas mulheres tentaram segurá-lo, mas ele berrava: “Duas vezes corno, da mulher e da amante? É demais pra mim!” e se jogou pela janela.
Por sorte ou por azar, Paulinha morava no 201. Lá embaixo, no pátio interno, Teixeira chorava de dor, com a perna quebrada. A vizinha do quinto andar se abaixou e disse: “Coitadinho....” Teixeira não teve dúvidas, pediu na hora: “Dá um beijinho, dá...?
Há Trinta e poucos anos, Carlinhos, no quarto escuro, abraça a priminha e faz o mesmo pedido: “Dá um beijinho, dá...?
A menina contou pra mãe, que contou pra avó. Austera e intransigente, chamou o pequeno Teixeirinha para uma conversa “olho-no-olho: “Não me venha com sofismas...”, alertou.
Depois de algumas desculpas esfarrapadas, a avó balançou tristemente a cabeça e deu o veredito: “Carlinhos Teixeira, o senhor é um cínico...Sempre será.”
Parece que foi aí que o filme começou.