Atendendo a pedidos e com o honroso patrocínio da Casa de Carnes "Aperta A Picanha Que Eu Mordisco a Maminha", a Churrascaria apresenta sua entrada da semana. Aí vai a pecinha, sem vergonha. Apreciem com moderação.
AO CHIFRE DE OURO
- Achei muito lento, infelizmente não vai dar, Samuca.
- Lento como?
- Lento, lento... Sem movimento, as pessoas não gostam de ler coisas assim.
- Mas é um conto, não é um filme.
- Hoje em dia tudo é filme, entendeu? Desde que inventaram os "efeitos especiais" ninguém mais quer saber dessa coisa parada, entediante.
- Entediante? Entendo, acho que entendo...
- Leva pra casa, dá uma revisada, muda algumas coisas.
- Tipo o quê?
- Por exemplo, essa parte que o cara beija a mulher do amigo.
- Que que tem? Acha que ficou muito forte?
- Mas que forte? Em que mundo você vive? Acho que ficou foi fraco... Só dizer que o cara a beijou "dos pés à cabeça" não resolve, entendeu? Tem que ser mais explícito, as pessoas gostam dos detalhes.
- Mas aí não fica meio pornô, dona Selma?
- Vamos acabar com esse negócio de "dona", já te falei... Que coisa mais chata isso.
- Tá bom, Selma... Fica ou não fica?
- Fico.
- Como assim?
- Não era isso, Samuca... Onde é que eu tô com a cabeça, menino?
- Se não é pra chamar de "dona", também não é pra falar "menino".
- Tá certo, tem razão... Você perguntou se ficava pornô, não é? Fica não, Samuca. Mesmo que fique, é o que as pessoas gostam, entendeu?
- Entendi, só não sei se vou conseguir ser mais explícito. Não tô acostumado.
- Tá se vendo...
- O que?
- Nada, deixa... Tava pensando alto. Mas, como eu ia dizendo, tem que ter movimento, agitação, umas pegadinhas talvez.
- Tipo as que tem nesses programas de TV?
- Por aí...
- Gosto não.
- Então não põe. Pensa em algo mais quente entre o cara e a mulher do amigo. O amigo descobre e os dois se pegam no tapa, que tal?
- Pode ser. Se a senhora acha...
- Daqui a pouco vai me chamar de tia, Samuca?
- Desculpe, Selma, se você acha...
- Quem tem que achar é você, eu só digo que do jeito que está não vai dar.
- Pensei que o amigo não devia descobrir a traição, ficava uma coisa que só quem lesse ia entender, mesmo assim sem ficar totalmente claro, percebeu?
- Percebi, só que não é isso que os leitores querem, Sam. A turma tá de saco cheio de tanto problema que tem na vida real, problema no trabalho, problema em casa com a família, problema de grana, cartão com limite estourado... Se for pra ler alguma coisa tem que servir pra tirar esses problemas da cabeça, não pra por mais alguns, concorda?
- Pra isso tem o cinema, o teatro, a TV. Literatura é diferente, tem que dizer alguma coisa, mesmo que não seja agradável de se ouvir.
- Por isso que vocês, poetas e escritores, são todos uns mortos de fome, vivem forçando a barra, querendo enfiar coisas na cabeça dos outros. Pensa bem nesse teu conto, Samuca. Um cara tá comendo a mulher do amigo...
- Não sei se ele tá comendo, você é que tá dizendo.
- Ah, não? Se não está é porque o cara é broxa, broxinha da silva. A história não começa com o sujeito abrindo a porta do quarto e encontrando a mulher do amigo deitada na cama, inteiramente nua?
- Começa... Mas foi um acidente, entendeu? Talvez ela tenha feito de propósito, mas o cara não sabe.
- Ah, vá... Samuca, deixa de ser bobo. Claro que o cara sabe que a mulher quer dar pra ele. Toda mulher quando quer dar o cara descobre na hora. Só não descobre se não for do ramo.
- Como assim?
- Broxildo ou boiolildo, entendeu?
- Nem uma coisa nem outra.
- Eu sei, tava mexendo com você. Não te acho nada disso.
- Ei... A história não é biografia, muito menos autobiografia.
- Mas que tem umas coisas tuas aí, lá isso tem, fala a verdade.
- Um pouco.
- Voltando, vai refazer?
- Não.
- Então, tá.
- Você diz que tem que ser como num filme, mas o Saramago...
- Ah, lá vem o Saramago de novo. Faz o seguinte, vai pra casa, escreve uns duzentos romances, ganha o Nobel e depois vem aqui que eu publico e nós dois ganhamos uma bela grana.
- Mas não é só isso que importa.
- Tem mais, Saramago é mais ou menos como Umberto Eco. Todo mundo compra, mas quase ninguém lê. O Nome da Rosa, por exemplo, tirando uns intelectuais e os ex-seminaristas que sabem latim, quem mais leu de verdade?
- Eu li. Pulei as partes em latim.
- Sucesso mesmo foi o filme, com o Sean Connery. Infelizmente, nem isso aconteceu com Saramago.
- E ele não tá nem aí. Gostou, ótimo; não gostou, paciência...
- Nessa altura do campeonato é só isso mesmo que ele precisa dizer. A minha posição é que a união perfeita entre talento e sucesso acontece de cem em cem anos de solidão.
- Ahahaha... Gostei dessa. Talvez tenha razão, mesmo assim vou continuar escrevendo do meu jeito. E não esqueça que Cervantes e Shakespeare foram contemporâneos, os dois morreram no mesmo dia, 23 de abril de 1616, sabia?
- Poxa, Samuca... Você leva tudo a sério. Eu não quero te convencer de nada, muito menos mudar sua história, acho que você escreve bem demais, só queria que apimentasse um pouco.
- O problema não é esse, Selma, o que eu não aceito é a ditadura do realismo, entendeu? Até o cinema já caiu nessa.
- Como assim?
- Você pode ver, é a receita do sucesso, de uns tempos pra cá só dá comediazinha burguesa estilo Rede Globo, realismo AR-15, favela do alemão, naturalismo amarelo-manga... Isso tudo no século XXI. Vende bem aqui e é "For Export" também.
- Paciência, eu te digo, é o que o povo quer.
- Não é nada. O problema é que ninguém pode querer o que não conhece. Você já sentiu tesão por um marciano?
- Eu?! Senti.
- Sério?
- Por você, revoltadinho.
- Primeiro, eu não sou marciano.
- Com essas idéias, até parece.
- Segundo, não faz assim. Seu Fonseca pode chegar a qualquer momento.
- Fonsequinha tá viajando. Só volta semana que vem. E nós estamos meio que separados, entendeu?
- Terceiro, eu e seu filho somos amigos, amigos de verdade... Não acho certo.
- Quê que tem isso? Vem aqui, eu só quero te mostrar como é que teu personagem devia fazer com a mulher do amigo.
- Para... Tô pedindo.
- Sentiu? Vejo que sim.
- Tranca a porta, então.
- Tá tudo trancadinho, menos eu, Selminha natureza viva... Tá entendendo agora do que é que o povo gosta, Samuquinha, seu bobo?
- II -
- Um filme é coisa que você passa uma hora e meia, duas horas assistindo e sai dali com uma sensação qualquer. Pode ser boa, pode não ser tão boa, mas o filme cumpriu o que prometeu, fazer você sentir algo depois de duas horas dentro de uma sala escura. Um livro, um texto literário é diferente, você não passa duas horas com ele e fim, não é essa a proposta.
- Ah, não... Vai me dizer que mudou mesmo de pensamento?
- Acho que fui convencida pelos seus argumentos, Samuel.
- Nossa... antes era Samuca pra cá, Samuquinha pra lá... agora é Samuel? Seco assim?
- Não faz assim. Já te pedi, melhor manter o profissionalismo.
- Por que isso agora, Selminha?
- Tô na minha casa, não acho certo. Depois, meu filho e meu marido...
- Péra, péra, péra... O filho tá viajando; o marido, encontrei com ele na garagem lá embaixo. Até acenou pra mim, disse que ia trabalhar.
- Pois é, Samuel... Vai que ele volta. Depois, eu e Fonseca estamos numa fase tão romântica.
- Ah, é??? Bom, se você não quer, esqueça. Só vim aqui mesmo pra saber o que achou da nova versão. Gostou? Tá mais picante?
- Demais, picante até demais.
- Então, quer dizer que tudo bem?
- Mais ou menos, Samuel. Vamos ter que fazer uns ajustes.
- Pronto. Voltou com a mesma história. Que ajustes, Selminha?
- Me chama de dona Selma por enquanto, tá bom?
- Ihhh... Tá certo, que ajustes são esses no texto, dona Selma?
- Sabe o que é, Samuel, eu e Fonseca conversamos...
- Mas o que é isso? Seu Fonseca também entrou pro departamento de marketing da editora? Isso é quebra de sigilo literário.
- Hahaha... Boa essa, desde quando literatura inédita tem sigilo? Ninguém tá plagiando o texto, ouviu?
- Tá bom, o que é que você, a senhora, e seu Fonseca acharam?
- Sabe aquela parte que o personagem assedia a esposa do amigo?
- Sei, claro... Assedia coisa nenhuma, o cara come a mulher do amigo, você que me pediu pra colocar isso.
- Olha os modos, olha os modos... Aí é que está, andamos lendo umas pesquisas, assistimos a um vídeo sobre as preferências dos leitores. Não é que esteja ruim, entendeu? Mas tá fora do escopo.
- Escopo??? Que escopo, Sel... dona Selma?
- Já vi que você não entende nada de marketing editorial. O negócio é o seguinte: não pode ser tão direto, tão, tão, tão...
- Porra...
- Olha os modos, Samuel. Já falei. O fato é que nesse meio tempo, decorrido entre aquele primeiro texto que você escreveu e esse agora, o gosto dos leitores mudou, tá entendendo? A onda agora é romantismo. Conversa com o Fonsequinha, ele quer te dar umas dicas.
- Me explica essa história das pesquisas. O gosto das pessoas mudou como?
- Vou tentar, escuta bem o que eu vou te dizer: as pesquisas mostram que as mulheres estão lendo muito mais que os homens, ainda mais nessa área de ficção.
- Ah... E vai dizer que mulher só gosta de romantismo? Descobriram isso também?
- Claro que não, né? Acontece que as mulheres que interessam à linha editorial da nossa empresa...
- Ihhhh...
- Conversa com o Fonseca, ele vai te explicar melhor. Outra coisa, teu livro ainda não foi recusado oficialmente, entendeu?
- Não tô a fim de conversar com seu Fonseca porra nenhuma, Sel... Acho que vou levar o texto pra outra editora, uma que goste de sacanagem explícita, tal como você gostava.
- Samuel, para com isso. Tira a mão, por favor... Como você está mudado, antes era um menino tão quietinho.
- E dizer que foi a senhora que me deixou assim.
- Larga... Mas será...?
- Tá bom, vou pra casa escrever o roteiro de um curta, vai se chamar: "O dia em que Sam se perdeu nas curvas de Sel".
- III -
- Seu Fonseca?! O senhor por aqui?
- Surpreso?
- Não, não... E com uma arma? Pra que isso, seu Fonseca?
- Calma, rapaz... É de brinquedo, veja. Vou dar de presente pro meu sobrinho, ficou com medo?
- Não, que isso... Foi só a surpresa mesmo.
- Ah, bom. Você deve saber o que me traz aqui, não é?
- Mais ou menos.
- Mais ou menos? Como mais ou menos?
- Mais ou menos, mais ou menos, ué... Mais pra mais do que pra menos.
- Ah, bom... Selma falou consigo?
- Falou, dona Selma falou sim.
- Então, se falou, você já está sabendo de tudo, rapaz.
- Tudo o que, seu Fonseca?
- Sobre aquele texto que você mandou pra editora, Samuel, onde é que você tá com a cabeça, rapaz?
- Ah... Tem razão, tô meio confuso hoje.
- Tá confuso hoje e também quando escreveu o texto, não é que esteja ruim, entendeu? Mas vai ter que mudar umas coisas, vai ter que mudar...
- Vou mudar sim... Vou mudar o quê?
- Vamos com calma, não quero parecer dono da verdade.
- O senhor, seu Fonseca? Logo o senhor?!
- Por que "logo eu"?
- Nada. É só o modo de falar, o senhor que sempre foi tão, tão, tão...
- Entendi, tão educado e gentil, é isso?
- Pode ser.
- Tá certo, mas vou te falar a verdade nua e crua.
- Ai, ai, ai...
- Não entendo nada de literatura, nem de livros...
- Ah, tá... Nem eu, seu Fonseca.
- Pra te dizer a verdade, não entendo nem gosto. Prefiro filmes, principalmente aqueles que passam de madrugada...
- Ai
- Que que foi?
- A cotovelada que o senhor me deu nas costelas... Uhhh...
- Deixa de frescura, foi só um toquezinho de nada. Mas como eu ia te dizendo, Sam, posso te chamar de Sam?
- Pode, seu Fonseca, chama do que o senhor quiser, mas chega de toquezinhos iguais a esse, tá bom?
- Hahaha... Você é engraçado, rapaz. Devia escrever pra televisão, aí sim ia ganhar muito dinheiro. Por falar em money, o fato é que tive que fazer um aporte de capital na editora, entendeu? Se não fizesse, ia tudo pro buraco.
- Inclusive a dona Selma...
- Como disse?
- Nada... esquece, não disse nada.
- Pois então, não entendo nada de literatura nem de livros, mas quero meu rico dinheirinho de volta.
- Por essas e por outras é que está querendo que eu mude o texto?
- Na mosca, rapaz.
- Pode ser mais explícito, seu Fonseca? Leu meu texto todo?
- Uns pedaços, achei meio chatinho, entendeu? Não tenho o hábito de ler, mas sei quando a coisa vende ou não vende.
- E do jeito que está, não vende?
- Vou ser sincero, novamente, consigo: fiz umas pesquisas, andei sondando, entendeu?
- Não.
- Mostrei o texto para algumas pessoas e perguntei o que elas achavam. A maioria gostou, mas não a ponto de comprar o livro, entende? A opinião mais interessante foi de um cara lá da corretora.
- Que corretora? Que cara?
- A corretora é a minha, porra... Vai dizer que não sabe que eu tenho uma corretora na bolsa de valores?
- Sabia não.
- Pois é, uma home-broker. Esse cara é um sujeito que gosta de ler, já leu um monte de livros, até esse tal de Saramago ele já leu, por isso que eu pedi sua opinião.
- E que nota que ele me deu?
- Seis e meio.
- Seis e meio?!
- É... Ele é um cara muito rigoroso, mas disse que você tem futuro.
- Ainda bem, essa é a parte boa, o meu futuro.
- O diabo é que eu e Selma estamos na maior contradição.
- Ah, é?
- Sim, por que a surpresa? Contradição não quer dizer desavença, rapaz. Contradição é quando o dólar sobe e a bolsa também; desavença é quando tudo cai... ahahahaha
- Boa essa, seu Fonseca, muito boa.
- Para de puxar meu saco só porque eu sou o novo dono da editora.
- Pensei que o senhor fosse sócio de dona Selma.
- No papel, só no papel... Na verdade, quem manda sou eu. Lá em casa sempre foi assim. Mas, como eu estava lhe dizendo, o problema é que Selminha gosta de ver as coisas do lado feminista, fica dizendo que mulher é que lê, que mulher faz isso, faz aquilo...
- E faz mesmo...
- O quê? Faz o que, rapaz?
- Eu sei lá, seu Fonseca... O senhor é que falou que mulher faz isso, faz aquilo.
- Eu tava te explicando o que Selma fala a respeito de literatura, mas você hoje tá com a cabeça meio fora de órbita, acho melhor voltar outra hora.
- Também acho, seu Fonseca. Outra hora é melhor.
- Antes deixa eu te falar o que o Maylson sugeriu.
- Maylson? Que Maylson é esse?
- O cara da corretora, o tal que já leu até O Empinador de Papagaios.
- O Caçador de Pipas?
- É, isso aí... O Maylson acha que a tua história tá boa, mas tá meio chocha. Você deveria colocar uma trama, como ele mesmo disse, "a vingança do corno"
- ...
- O que foi? Engasgou, rapaz?
- ...
- Péra que eu te dou umas porradas nas costas e já desengasga, vem cá...
-...
- Vem cá, porra! Tá com medo de quê?
- Pronto... passou, seu Fonseca, me engasguei do nada. Vamos deixar essa conversa pra outra hora?
- Vamos... Mas vai pensando nisso que o Maylson falou: o corno trama sua vingança sem que a mulher e o amigo desconfiem, entendeu? Que tal?
- Pode ser, seu Fonseca, pode ser...
- IV -
- Para de coçar a testa, Fonseca. Vem cá, meu amor...
- Sei não, sei não...
- O que é que você não sabe?
- Ainda agora te perguntei se o tal do Samuel, vulgo Samuca, já tinha terminado o novo livro de autoajuda e se você deu uma olhada nele. E o que é que você me respondeu, Selminha?
- Eu disse que sim, ué... Que já tinha dado uma olhada.
- Hãhã... O que você disse foi: "Dei sim e que olhada!"
- Ah, Fonsequinha, esquece isso. Tô meio confusa hoje.
- Tô sabendo... Você confusa aqui, o Samuca confuso lá, e eu no meio dessa confusão levando chifre.
- Que chifre, Samuca? Tá louco? Vai ficar com ciúme do pirralho agora?
- Do que é que você me chamou?
- De Fonseca, Fonsequinha... Oras.
- Hãhã... Não foi não. Do que é que você me chamou, Selminha?
- De Carlos Eduardo?
- Que Carlos Eduardo é o caralho!
- Olha os modos, olha os modos...
- Você me chamou de Samuca, Selma... De Samuca!
- Foi?
- Foi!
- Tem certeza?
- Tenho!
- Tá vendo como você me deixa? É esse teu ciúme doentio. Você sempre foi assim, Carlos Eduardo Fonseca.
- Ah, é?! Troca o meu nome pelo do amante e ainda vai colocar a culpa em mim, sua cachorra!
- Olha os modos, olha os modos...
- Sua vadia!
- Me larga, tá machucando...
- Vagabunda... vagabundazinha.
- Para, Fonseca... Já pedi.
- Me chama de novo de Samuca pra ver se eu não te encho de porrada, safada.
- Detesto violência, você sabe disso. Tira a mão daí, Fon... Não faz.
- Safadinha. Vem cá.
- Espera, deixa eu trancar a porta.
- Tranca não, nem precisa se preocupar, Selminha.
- Como assim? E se chegar alguém?
- Pensa que eu ainda tô a fim de alguma coisa contigo? Pode ir tirando o cavalinho da chuva, ou melhor, a eguinha.
- Fonseca!
- Voltando à vaca fria...
- Olha os modos, olha os modos...
- Não era de você que eu tava falando, é só uma expressão antiga, minha avó que gostava de dizer; (imitando a avó): "Voltando à vaca fria..."
- Fala logo que o Samuca tá pra chegar.
- Você não tira a porra do Samuca da cabeça, não é?
- Nossa, Fon, você fala cada coisa. (Em aparte, para a platéia): A porra do Samuca, ai, ai...
- O que foi que você disse?
- Nada, nada... Tava divagando, deixa pra lá. O que é que você queria saber afinal, Fonsequinha?
- O livro de autoajuda que o Samuel tava escrevendo, o Maylson já deu uma lida?
- Que Maylson?
- O Maylson da Corretora, mas será possível?
- Ah, aquele que é teu sócio e que já leu até o tal de Tchecov em russo?
- Em primeiro lugar, Maylson não é meu sócio, trabalha pra mim na Corretora, entendeu? Em segundo lugar, não sei e não quero saber se ele leu Tchecov em russo, de russo eu só conheço o Yashin, que foi goleiro da seleção.
- Um russo? Goleiro da seleção?!
- Da seleção russa, não é, estúpida?
- Ah, tá... Não me chama de "estúpida" que eu não gosto. Você acha que todo mundo que não entende de futebol é estúpido. Esse tal de Maylson é a mesma coisa...
- O quê??? Com o Maylson, você também...
- Para, Fon... Mas que homem desconfiado. Eu disse que esse tal de Maylson deve ser a mesma coisa, eu só o conheço de vista.
- E eu de testa...
- Para de coçar a cabeça bem aí na testa, mas que mania... Não sei direito se o Maylson leu o novo livro do Samuel, parece que deu nota cinco.
- Cinco?! Ele tinha dado seis e meio pro outro.
- Bem que o Samuquinha avisou que autoajuda não é a praia dele. Gosta mesmo é de ficção. Você que insistiu, dizendo que autoajuda é que vende, que você precisa do seu capitalzinho de volta, essas coisas que o senhor fala sem parar, seu Fonseca.
- Nota cinco, nota cinco... Eu tô é ferrado com vocês.
- Você? Tá bom... Você só se ferra quando o dólar cai e a bolsa despenca, não é isso que diz?
- Não gosto de perder dinheiro, me dá alergia, fico todo vermelho de raiva. Aliás, não gosto de perder nada, nada, tá ouvindo?
- Você nunca perde, nasceu pra ganhar. Desde pequeno Fonsequinha é do time dos winners.
- Devia ter deixado a editora se ferrar. Você que fosse pro cartório, Selminha.
- E você ia junto, esqueceu que é meu fiador e sócio na Editora?
- Assinei os contratos com a mão esquerda, até o carimbo de reconhecimento de firma é falso, tudo fake, tudo fake...
- O quê??? Você fez isso comigo, Fon?
- Fiz, mas depois fiquei com pena e meti aquela grana pra salvar vocês. Aí é que eu me ferrei de verdade, entendeu?
- E o nosso casamento? Também é fake?
- Mais ou menos... O casamento é de verdade, mas tem uma cláusula no contrato que diz que se você entrar numa fria no mundo dos negócios, sai sem nada, com uma mão na frente, outra atrás, entendeu?
- Agora entendi. Você deve me achar a pior das piores, não é?
- Não gosto de julgar ninguém, Selminha. Não tô aqui pra julgar as pessoas.
- O problema é que você tá sempre dizendo isso. (Imitando o marido): "Não gosto de julgar ninguém", mas acontece que não faz outra coisa na vida, Fonseca.É assim mesmo, todo mundo julga o tempo todo. Julga o que é certo, o que é errado; o que devia fazer, o que não devia. Você, por exemplo, diz que não julga, mas vai ferrando todo mundo, sem direito de defesa.
- Vai chorar agora?
- Devia... Eu é que vou sair perdendo nessa história: "uma mão na frente; outra atrás".
- Nada, Selma. Quem mais vai sair perdendo é o Samuel.
- Samuel?! Como assim?
- Então, começou escrevendo literatura, passou pra autoajuda, se bobear ainda faço ele escrever um livro só de crítica literária, ele em parceria com o Maylson, arranjo um patrocínio, umas verbas do Ministério e pronto, não precisa nem vender.Tá pensando que vida de artista é moleza? ahahahaha...
(Soa a campainha da porta. Fonseca abre e diz):
- Samuel, tava todo mundo te esperando.
- Bom dia, seu Fonseca. Bom dia, dona Selma.
- Bom dia, Samuca. Entra, pode entrar... (baixinho para Samuel): Ele merece.
- Não entendi, dona Selma.
- Esquece, tava só pensando alto. Entra, vai...
- E aí, Sam? Já sei que você terminou de escrever o livro. O Maylson já leu e te deu nota cinco.
- Nota cinco, seu Fonseca?! Isso não é justo... Nota cinco?!
- Também achei sacanagem, Samuquinha... Mas não se preocupe que o Fon tá querendo te propor um outro livro, não é, Fonsequinha?
- Já escreveu crítica literária, Sam?
- Crítica literária?
- É, critica literária. Mas tem que ser diferente, bem movimentada, entendeu, Sam? Uma coisa que ninguém fez ainda, Como num filme...
- V -
- Maylson, é verdade que você anda dizendo por aí que é meu sócio na Corretora?
- Eu, heim, Fonseca... Quem falou que eu quero ser teu sócio?
- Outra coisa, Maylson, você anda comendo a minha mulher?
- O quê isso, Dr. Fonseca? Como pode pensar uma coisa dessas a meu respeito?
- Deixa de viadagem, comeu ou não comeu? Pode falar, eu não tenho mais nada com a Selminha.
- Bom...
- Bom o quê?! Comeu e gostou?
- Você não me deixa falar, cara... Puta que o pariu!
- Palavrão aqui não, seu Maylson! Essa é uma Corretora de respeito, porra...
- Porra agora não é mais palavrão, Fonseca? É o novo acordo ortográfico?
- Não fode... Fala logo se comeu ou não comeu a Selminha.
- Não, não comi... Esquece isso e vamos trabalhar. Sabe aquele fazendeiro de Goiás, rico pra caralho, de setenta e cinco anos?
- Sei, quê que tem ele? Vai dizer que morreu?
- Mas que morreu... Vai ser trágico assim lá na editora. O que ia te contar é que eu ofereci uns titulos do tesouro direto, longo prazo, os melhores rendimentos da praça.
- Aqueles títulos de cinquenta anos?
- Isso mesmo... Sabe o que o cara respondeu? "Meu filho, eu tô com setenta e cinco anos, casado com uma menina de vinte, daqui a cinquenta anos vou ter 125. O que é que um cara de 125 anos vai fazer com um título? Só se for o título de investidor mais velho da bolsa", disse isso e caiu na risada.
- Hahahaha... Foi boa mesmo. E essa menina que é casada com ele?
- Quê que tem ela? Você não conhece.
- O casal se dá bem?
- Sei lá, Fonseca... Uma vez ela me disse que o velhinho tem ejaculação precoce, pode? Tem uma prótese e ejaculação precoce.
- Porra, Maylson... Você também tá comendo a mulher do cliente? Além de cornear o chefe, ainda por cima espera o velhinho pegar no sono, vai lá e créu na menina?
- Mas que sono? Quem falou em sono?
- É com ele acordado mesmo? Pouca vergonha...
- Fonseca, você tá com idéia fixa, cara... Desde que teve uns problemas com a Selmi..., com a dona Selma você só pensa nisso.
- Mudando de assunto, o que achou do novo livro do Samuel?
- Gostei, dei nota cinco.
- Porra, você gosta e dá cinco?! Sabia que ele também tá papando a Selma? Aquela lá eu acho que metade da cidade já comeu.
- Sério? Tá falando sério, Fonseca? Aquele filhozinho da puta... Deixa estar que vou dar nota quatro pra ele; quatro não, três; três não...
- Ôwww... Pó parar, seu Maylson. Você é o amante e amante não sente ciúmes, entendeu? Só quem pode sentir ciúmes é o maridão, o supercorno Fonsequinha.
- Tem razão... Desculpe, meu amigo. Mas você também não é nenhum santinho.
Maylson sai da sala repetindo "Santinho, ninguém é... Santinho, ninguém é...". Fonseca aperta a tecla do vivavoz no pabx e fala, autoritário:
- Dona Cris, liga para aquele nosso investidor, o tal que tem setenta e cinco anos e uma esposa de 20, como é mesmo o nome deles? Ah, tá... dr. Leôncio e dra. Joice... O quê, dona Cris? Joyce com "Y"? O que é que isso tem a ver, porra? Desculpe o "porra", é que eu ando meio nervoso, sabe? Como sabe? Sabe o quê? A senhora também já sabe, dona Cris? Hã? Nada, deixa pra lá. Liga pro Leôncio e marca uma reunião pra hoje, aqui na Corretora, no final do expediente. Avisa que é imprescindivel a presença da Joyce com "Y", imprescindível, tá escutando?. O motivo? Que motivo? Inventa qualquer coisa, diz que é pra assinar uns papéis, dona Joyce, desculpe, dona Cris...
Fonseca esfrega as mãozinhas gordas e diz:
- É hoje, é hoje...
- VI -
- Maylson, tua mulher me ligou.
- A Terezinha?
- Ela mesma, a Terezinha. Ao que eu saiba, ela é a tua mulher, a não ser...
- O que ela queria comigo?
- Não é com você, Maylson. Eu disse: "A tua mulher ME ligou", entendeu agora?
- Sei, a Terezinha te ligou, o que é que ela quer contigo, Fonseca?
- Transar.
- O QUÊ?!
- Isso mesmo que você ouviu, a Terezinha, tua mulher, quer transar comigo.
- Porra, Fonseca... Não fode.
- Acho que não vou mesmo, não que a Terezinha seja de se jogar fora, não é isso, mas...
- Você quer que eu te encha de porrada, Fonseca?
- Experimenta pra ver... Olha bem o tamanho das minhas mãos, Maylson.
- Tá certo, vamos resolver isso como duas pessoas amigas e inteligentes.
- Melhor assim.
- Melhor assim.
- Foi o que eu disse, Maylson. A Terezinha quer transar comigo, mas eu não posso, entendeu? Ela descobriu que você é o maior comedor da Bolsa de Valores. Descobriu que você anda traçando a Selminha faz tempo, daí veio com essa proposta indecente, mas eu não posso.
- Posso saber por que não pode, Fonseca? Você mesmo disse que a Terezinha não é de se jogar fora.
- E não é mesmo, Maylson. Mas acontece que eu já tenho a dona Cris...
- O QUÊ???? Você também tá comendo a dona Cris, a nossa secretária, recepcionista, consultora, coisa e tal? Porra, Fonseca!
- Eu também por que, Maylson? Vai dizer que você...
- Não posso negar, já dei as minhas beliscadas.
- Puta-que-o-pariu... Isso aqui tá parecendo um prostíbulo e não uma Corretora de respeito, todo mundo come todo mundo.
- Não é bem assim, não é bem assim...
- Vou pedir pro Samuca escrever o roteiro de um filme. Vai se chamar "Mulheres em Ação", patrocínio cultural: Corretora Fonseca Ltda.
- Não me fale naquele pivete indecente... Vamos rememorar: Terezinha descobriu que eu créu na Selma, ficou puta da vida e resolveu se vingar, é isso?
- Batata.
- Que batata?
- É o modo de falar, antigamente, as pessoas falavam "batata" quando queriam dizer "perfeito", entendeu?
- Perfeito... Mas me diz uma coisa, por que com você, Fonseca? Por que a Terezinha quis se vingar de mim transando com você? Logo com você...?
- Por que logo comigo? Acha que eu não tô à altura do mercado? É isso? Pensa que eu fechei meu capital?
- Não é isso, é que...
- Fala, Maylson. É o que?
- É que um cara como você, na sua idade, gordo, careca, barrigudo, nem dinheiro tem mais, pelo menos não muito... Apesar de tudo isso, anda comendo a dona Cris, a Joyce com "Y" e quase deglutiu a Terezinha...
- Quase por quê?
- Você que disse que não vai comer, vai ou não vai?
- Não sei ainda, pode ser que sim, pode ser que não...
Maylson anda pela sala repetindo:
- Isso é que é amizade, isso é que é amizade...
- Vamos ou não vamos produzir “Mulheres em Ação”? Dá pra ganhar dinheiro?
- Hoje em dia ganhar dinheiro com cinema é a coisa mais fácil do mundo, nego filma até a vida do presidente e as salas lotam.
- É, mas tem que ter financiamento, as empreiteiras...
- Faz o seguinte: abre uma sexy-shop, transforma em S.A., faz o IPO e com o capital financia a campanha para a reeleição da...
- Ô, pode parar, seu Maylson. Política aqui, não.
- Então produz logo um remake de pornochanchada, melhor ainda, algo que lembre uma peça do teatro de revistas.
- Acha que dá pra ganhar uma grana?
- Isso eu não sei, mas dá pra comer do bom e do melhor, isso dá, isso dá... Só filé mignon. Jantamos todos no Chifre de Ouro.
Fn