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segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Telepatia

Fn

Tinha com ela uma comunicação telepática. Não que fosse espírita ou esotérico, muito menos paranormal convicto... A telepatia era só com ela. Vinha assim de repente: ele na Serra Gaúcha; ela tomando sol na piscina de um transatlântico.
Mordia uma uva e ouvia sua voz: “Está quente aqui no Adriático... Tem um cara dando em cima de mim, é parecido com você”
Ouvia com extraordinária nitidez. Não era como essas mensagens telepáticas que vêm em ondas curtas... A dela, não... Vinha com som de cd, dolby stereo, como se estivesse ali ao lado, falando no seu ouvido.
Cuspia o caroço e dizia, isto é, pensava: “Pois eu estou aqui juntinho da Rainha da Uva... Uma alemã de um metro e oitenta... Tem uma parte do corpo dela que me lembra você... Sabe qual, né?”
E lá ficava ele com cara de bobo esperando a resposta. Podia esperar sentado, pois ela jurava que nunca tinha ouvido nada da parte dele. Telepatia não era o seu forte.

Curioso é que ao reencontrá-la ele fazia questão de conferir: “Como é, tava gostoso o sol na Sardenha? E o cara que deu em cima de você na piscina? Era mesmo parecido comigo?”
Ela levava um susto e perguntava, sempre com aqueles olhos negros arregala­dos: “Como é que você sabe disso? Quem te contou?” Ele sorria, malicioso: “Te levou pro camarote ou ficaram só nos amassos e beijinhos no convés?”
Se a resposta fosse: “Deixa de ser bobo... Não aconteceu nada”, era briga na certa. Ele ia jogar na cara dela que também entre ele e a alemã, que, aliás, era muito parecida com ela em certos detalhes do corpo, não tinha acontecido nada, etc., etc... Ela ia se enfurecer e perguntar que alemã era aquela, logo ele que não gostava de louras... Ele respondia, com a voz alterada e os olhos saltados: “...Aquela alemã, Rainha da Festa da Uva, eu te falei..”
“Que me falou coisa nenhuma...! Agora vem você com essa história de telepatia. Explica isso direitinho, seu galinha poliglota!”
Aí ele ficava pra morrer de verdade e era capaz de se sair com essa: “Melhor ser galinha poliglota do que ser desfrutável em transatlântico de quinta categoria.” Era pra ofender, mesmo... Ela sabia e se ofendia, embora permanecesse um tempo calada, com os olhos perdidos, como se estivesse mais admirada com a estrutura da frase do que com a ofensa em si... Pensava: “Ele é rápido... Tem bala na agulha”.
Iam embora sem se despedir, cada um pra sua casa, batendo portas e cantando pneus. Ficavam assim uns dias sem se falar. Ela ligava para as amigas e dizia que nunca mais na sua vida ia vê-lo novamente, que ele não prestava, que todo homem era assim... Tinha uma que se interessava além do normal. Perguntava se a briga era pra valer, se tinham mesmo rompido, etc., etc.... Uma vez chegou a insinuar que se ela quisesse podia fazer uma visitinha a ele, só pra tentar descobrir suas verdadeiras intenções...
Nesses momentos, quando alguém, além dela mesma, se interessava por ele, parece que aí um sino tocava e ela percebia que não era possível viver muito tempo mais naquele fingir-que-estava-feliz-sozinha... Então, pensava, somente pensava: “Você sabe que eu te amo, que não posso viver sem você, seu cachorro...!”
Mais uns minutos e lá estava ele tocando a campainha da porta: “Você sabe que eu também te amo e que não posso viver sem você, mas não me chama de cachorro, pô...!”
E os dois se amavam com estardalhaço, ali na mesa da cozinha, derrubando panelas, soltando uns grunhidos e sussurros incompreensíveis, até o síndico surgir de pijama e pantufas, falando mais educadamente do que era de se esperar: “Três e meia da madrugada e ninguém consegue dormir. O garoto do 303 tá querendo instalar uma câmera e pôr num site da internet...”

Mas nem sempre as transmissões telepáticas surtiam o efeito esperado. Uma vez ele a ouviu dizer nitidamente: “Sabe que você é a coisinha mais linda que eu já vi na minha vida?” Não pensou duas vezes, a primeira menina que passou na sua frente ouviu o mesmo elogio: “Sabe que você é a coisinha, etc., etc...” O pior (ou o melhor) é que a garota gostou e saíram dali para outros elogios, um pouco mais inflamados. No dia seguinte ficou sabendo que a frase tinha sido endereçada ao filho de sua melhor amiga, um garotinho de seis meses, com aquela carinha de joelho... “Coisinha mais linda, pois sim...” Ele, visivelmente arrependido, balançou a cabeça e cuspiu: “O que está feito, está feito...”

Talvez por isso, por se sentir culpado, mudou a partir desse dia. Procurou maneirar nas interpretações. Não era a qualquer mensagem que ele dava ouvidos. Um gritinho que ela soltava e ele refletia: “Pode ser que tenha cortado o dedo com o facão da cozinha”. Um suspiro bem poderia ser um sonho; a voz mais rouca, uma gripe... Mais tarde, quando se encontravam, ele dizia: “Cortou o dedinho com o facão?”; “Pegou no sono hoje de tarde?” “Tá gripadinha?” E ela, meio sem graça, achava que a telepatia já não estava funcionando...

E assim foram vivendo: ele recebendo os sinais; ela os enviando diariamente, com precisão telepática. Para não incorrer de novo no mesmo erro de julgamento, passou a perdoar por antecipação. Quando a ouvia dizer: “Claro que eu também quero, mas não sei se posso”, ria e imaginava que ela deveria estar diante de um sundae, com cobertura de chocolate, conversando com uma de suas amigas, candidatas a esquelética do milênio. Na primeira oportunidade, ele dizia: “Claro que você pode, querida... Nada tem o direito de nos roubar o prazer nesta vida que é tão curta...” Ele pensava no sundae; ela, nem tanto...
Se ouvia: “Tira a mão daí!”, imaginava que era um sobrinho a assaltar a geladeira; “Vai mais, vai mais...” haveria de ser a tentativa de organizar o estacionamento na garagem do prédio. “Eu quero abraçar teu corpo inteiro” era a letra de uma música que ele mesmo cantava no banheiro...

Um dia, ouviu: “Com você, vou até o fim do mundo”. Gostou daquilo, estava mesmo pensando numa viagenzinha, até o Caribe, quem sabe...Amor com amor se paga... Só os dois, o mar e o céu azuis... Voou para o apartamento dela. Meteu a chave na porta, mas já era tarde... Tinha embarcado numa jardineira caindo aos pedaços, com destino a Cuzco... Na mesa da cozinha, um bilhete: “Não me procure. Parti em busca de alguém que entenda os meus poderes telepáticos. Você??? Faz tempo que não consegue traduzir minhas mensagens.”

Desde esse dia dedicou-se a ganhar dinheiro e a levar uma vida normal, longe dessas bobagens esotéricas...Pelo menos, de galinha, ninguém mais podia chamá-lo.

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