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terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Epifania - O Anel Central

      
Imagem: bucf.wordpress.com

Era uma quadra irregular. Vista de cima, a uns dez mil pés de altitude, seria impossível perceber suas armadilhas. Nuvens azuladas cercavam as fontes de realimentação de energia, patrulhas surgiam e tornavam a desaparecer através de pequenas artérias sinuosas, disparando sucessivos feixes pontilhados entre uma e outra construção metálica. Descendo, avistavam-se becos e reentrâncias cavadas no solo. Entregues ao abandono, lembravam esconderijos milenares, torpes testemunhas dos piores crimes que uma cidade pode cometer contra si mesma.

A partir de uma certa altura, a quadra passava a ser vista como um poliedro disforme: algumas de suas arestas pequenas; outras enormes, desproporcionais. Quando descíamos ao nível das construções pré-fabricadas, o que antes parecia ingênuo e desabitado tornava-se, no mínimo, ameaçador, intrigante, algo que de uma hora para outra poderia nos barrar o caminho com um punhal reluzente na boca imunda e uma gargalhada metálica a ecoar em cada muro de pedra semi-destruído.

Mil olhos pareciam espreitar o silêncio. Não havia nada que pudesse sugerir a tranquilidade ou a inocência , que algumas ruas de bairro conseguem transmitir nos fins de semana. Esperava-se um desastre a qualquer momento; a qualquer momento uma catástrofe. Todos agiam como se estivessem preparados para ver um pequeno ponto de luz começar a brilhar, cada vez com maior intensidade, tomando corpo, forma e cheiro, fazendo crescer também a temperatura à sua volta, tudo isso em fração de segundo, de tal maneira que nem a defesa civil, em permanente estado de alerta, seria capaz de dar o alarme e sustar a propagação de um sem-número de incêndios, criminosamente químicos ao que parece... Sobrevinha o dilúvio por dias e dias, e com ele novos martírios.
Na face menor do poliedro, próximo ao vértice inferior, o movimento é intenso. Ele ainda é bem jovem quando acorda nesta manhã cinzenta como todas as outras. Envolto em sua capa avermelhada e transparente, começa a falar por meio de gestos e grunhidos. Já não chora, porém. Antes que venham reclamar de seu aspecto repulsivo, rola para dentro do abrigo, onde jaz sua mãe, que ele mesmo matou para lograr nascer. Livra-se, então, da baba e da gosma, que já se cristralizavam em seu corpo nu. Observa que alguns não mais o acusam, sequer olham para ele. No entanto, sabe que não é pacífica a indiferença: logo estarão apalpando, inquirindo, sorvendo algo que certamente ele não cogita decifrar.

“Sinto-me como um bombom crocante”, ele resmunga e esfrega as costas na saliência da rampa. “Uma bala embrulhadinha em papel celofane, é o que sou”, cospe para o lado, em direção contrária à plataforma dos viajantes. Com o tédio e a displicência, próprios de quem já conquistou o seu lugar nas ruas, ele se delicia com a pseudo-passividade dos inimigos, saboreia o momento em que sua quadra de nascença estará pronta para triturá-los com seus dentes de aço fosco, lambê-los com a língua esverdeada por muitas enchentes, envolvê-los com a saliva de uma garoa intermitente, porosa o bastante para entupir todos os canais por onde a vida ameace fluir.

Inicia assim a caminhada. Tão inseguro como o leve bater de asas de uma borboletinha que acaba de abandonar o casulo. A quadra é sempre fria e de aparência nebulosa. Há muito o sol não ultrapassa a barreira formada por milhões de partículas em suspensão, justaposta a bilhões de outras camadas espessas e polimorfas. As nuvens são fixas e mudam de cor a um simples piscar de olhos: ora cinzentas e carregadas; ora violetas e transparentes. Este fundo e o contorno metálico das construções lembram antigas fantasias bidimensionais, que retratavam com pessimismo e uma certa doçura épocas perdidas na imaginação. Talvez a era dos desbravadores, aventureiros que há muitos e muitos séculos partiram em busca de mundos distantes, gente que ainda assistia embevecida a explosões de sóis, vendo o universo se curvar em suas pontas e sugar para dentro de si o que poderia haver de real em tudo isso. O prazer? Brota de orgias e divagações que, ao menos, tiveram o mérito de empurrar o bom senso pra bem longe do futuro, que hoje nos acolhe.

Sente-se só e, por mais que caminhe, tem sempre a impressão de que não andou nem a milionésima parte do que estava previsto para esta jornada. Em alguns momentos julga-se observado por olhos invisíveis. Vira-se rapidamente e vê que apenas brilham nos visores pontos luminosos, projetados no lado de fora das vitrines. Ouve com certo fascínio o barulho infernal que brota das casas de jogos e o compara com a frieza silenciosa e ascética dos módulos de regeneração celular. Cada pedra em seu caminho soa como lembrança. Por trás de seu pequenino cérebro observa o passado, revive em silêncio multicoloridas e minúsculas cenas acopladas à travessia. É nesta hora que pode parar seu pensamento e experimentar um sabor qualquer, desconhecido por inteiro ou levemente nostálgico, quem sabe um gosto espumante e sensual, algo que as sucessivas mutações tenham varrido para um canto apaziguado da memória.

O trânsito, de pedestres e viaturas, como sempre, é lento e confuso. A quadra está entulhada de gente, veículos, animais que não se parecem com nada. Soam apitos, ruídos de vozes sintetizadas, tudo isso de propósito para aproximar dois extremos que faz tempo já se tocam. Quando alguém se desespera há de haver uma escapatória, para os antros ou para os templos, através de uma simples portinhola como essa que ele pensa já ter cruzado.

Se olhar fixamente para o disco de cores, ativará as ilusões: poderá vestir o entusiasmo, aspirar o erotismo, calçar as luvas das sensações e a partir daí sorver, tragar, embeber-se, embebedar-se... Mas sabe que será sempre algo sobre algo que já não existe, no sentido imortal da palavra “existir”, se é que me entendem.

Sem que ninguém lhe ensinasse aprendeu que só há dois caminhos possíveis: um é andar pela quadra, dar voltas e voltas, contornando o anel central, para talvez desfalecer antes que se repitam os cenários em sua memória; outro caminho é perder-se nos labirintos dos sonhos e pesadelos que não lhe pertencem. A quadra não tem fim; é infinito este anel de torniquete. Devaneios despertam uma saudade longínqua, vem a nostalgia, a angústia, a solidão, quem sabe...

De sua espécie ele não tem registro. Nenhum outro ser é igual a ele; nenhuma referência ou alusão. Nada nesse mundo com que pudesse se achar parecido, nem de longe... Herdeiro e precursor do vazio, era o que era. Talvez não passe de uma simples lembrança, impulso, ilusão, algo que jamais irá acontecer na realidade. Um sonho, colorido e assustador, como devem ser os sonhos para os quais não temos imagens em arquivo... Alguma coisa improvável, fora do comum, como essa quadra gigantesca a engolir seus mortos-vivos...


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