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Ok?
quarta-feira, 20 de janeiro de 2010
O NOVO GÊNERO
A linguagem do século XXI ?
f.n.
O novo gênero não será descoberto por ninguém isoladamente. Há de ser uma conquista coletiva, talvez uma praga, que precisaremos domar, quem sabe tão sedutora quanto a multimídia em nossos dias. O avanço tecnológico, em ritmo jamais sonhado, não só põe em guarda o que muitos gostam de chamar de “cabeças privilegiadas”, como também encurrala o próprio homem, cada vez mais desconfiado e arredio com a incômoda posição que arranjaram para ele, a de objeto do seu próprio destino.
É certo que não terá sido a primeira vez na história, nem será a última. Foi assim no expressionismo, no entreguerras, na invenção do rádio e da TV. Mas é a escala que faz a diferença. Se entender o mundo que nos rodeia está cada vez mais difícil, projetá-lo no futuro relativamente próximo e garantir um mínimo de integridade, isso nem se fala...
Certamente não há como prorrogar a linguagem do absurdo, muito menos o realismo fantástico. Kafka se impôs como a matriz do século passado. O realismo fantástico nada mais fez do que dar a ela uma nova roupagem – moderna, atualizada, mas igualmente absurda. Na verdade, a matriz kafkiana deu à luz algo que ainda não sabemos definir por completo, mas que soa para nós como inquestionável e, ao mesmo tempo, incompreensível; lógico e inaceitável; agregador e fragmentado. Talvez o zero ou um, o dígito binário esteja na base desta linguagem que mal podemos vislumbrar. A unidade dos contrários levada a seu extremo.
Imagine, por exemplo, um livro, ou melhor, o e-book do futuro. Vai haver uma certa interatividade, autor e leitor estarão mais pertos, tende a sumir a figura onipotente do criador, mas isso não há de ser o determinante. Vamos dizer que o autor tenha criado um texto. Esse texto poderá ser lido e, em alguns momentos específicos, poderá se transformar em filme, sons, odores... O que vai determinar a troca de gêneros? Não creio que se deva deixar ao arbítrio do leitor. Acho que ele não deve ter o direito de escolher aleatoriamente, até porque isso prejudicaria o conteúdo da obra. O leitor não pode apertar uma tecla e dizer: ‘Bom, agora quero ver a cena que esse cara narrou’, ou: ‘Quero ouvir os gemidos da garota, sentir seu hálito...’
Não se trata de censurar um desejo do “leitor”. Provavelmente vai haver mecanismos para medir o que mais prendeu sua atenção, o que mais o seduziu, o que ele mais gostou. Tudo isso sem a interferência consciente desse leitor. Em determinado momento, o texto desaparece na tela e é substituído por uma visita, em 3D, à galeria de arte. A frase que deu origem à transposição poderia ter sido: “Olhou com ternura para aquela marinha de Pancetti e se imaginou caminhando à beira-mar, dentro do quadro.”
O barulho das ondas, a maresia, a água refletindo raios de sol, um certo gosto de passado... Voltar à estória pode não ser tão simples, ainda mais se o autor não tiver a pretensão de substituir a vida pela obra, o que de resto já não é novidade em nossos transitórios dias.
Que forma física deverá ter este novo gênero? Esqueçam as letras impressas ou seus simulacros ilustrando monitores. Esqueçam a passividade de uma sala de projeção com sua tela plana, esqueçam as luzes da ribalta, picadeiros e capacetes futuristas. Para quem está apenas engatinhando na era da conexão full-time, o mais seguro é supor que a forma há de manter alguma correspondência com o conteúdo. Neste caso é bom ir pensando em algo que há de ser e não ser ao mesmo tempo. Descartável vestimenta, talvez um adesivo que adere sem deixar marcas à testa do honorável leitor, mas nada de óculos especiais enganando nossa tosca visão... Acessório oneway, vendido em diversas tonalidades, inclusive nas cores roxo e pink. Pode vir sob a forma de hipnose? Quem sabe um novo ácido, sem contra-indicações de qualquer natureza? Ondas de rádio? Ou apenas a auto-indução, porque, afinal, todas as estórias já estavam previamente carregadas na cabeça de cada um de nós?
Seja o que for, convém não esquecer o fenômeno da concentração, que inaugura o século com jactância e, quem sabe, venha a explodi-lo mais adiante. O novo gênero não é para qualquer um. A começar pelos recursos necessários, gerenciados por grandes corporações, quem sabe, uma só, com tentáculos enraizados nos quatro cantos do planeta. Certamente nada se produzirá sem pesquisa; nada chegará ao fim sem outra pesquisa, de modo a garantir o sucesso permanente. O poder de gerar lucros milionários será exarcebado ao infinito. A linguagem universal há de tornar obsoleta a quase sempre malvista figura do tradutor. Uma ou outra adaptação estará restrita à troca da marinha de Pancetti por uma lata de sopa Campbell, ou pela mancha azul, talvez escolham os chifres de um touro desconstruído, e nisso se resumirá a interatividade.”
Ficou pensando se deveria ou não anotar algo sobre o provável acesso elitista a esse novo gênero que se anunciava. Pensou em escrever: “Seja qual for esse novo gênero, o fenômeno da concentração – tônica dos nossos dias – irá limitar cada vez mais o acesso à arte, à cultura, ao saber em geral...” Mas desistiu, porque achou que estaria, digamos, colocando o carro adiante dos bois. Pegou um lápis e rabiscou no verso da última folha: “Quem sabe, o novo gênero não será apenas uma idéia – solitária e poderosa, mas apenas uma idéia...? ”
(Escrito em 2 de fevereiro de 2003)
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